quinta-feira, 3 de julho de 2025

CRÔNICA: MAGIA E MILAGRE DA PALAVRA - FREI BETTO - COM GABARITO

 Crônica: Magia e milagre da palavra

        As palavras pesam. Talvez porque sejam a mais genuína invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não escapam de seus limites atávicos. Curioso é organismo humano não possuir um órgão específico da fala. O olho é a fonte da visão, como o ouvido, da audição. A língua facilita a deglutição, como a traqueia, a respiração. No entanto, a ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da respiração e da deglutição, para proferir palavras.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUonCbrPkr4W_Bt9diBFddVtuOI8bhLNuUAB1EutnCWxatBcWmsfl837oIlPheXqMUBs2890RqbEzQ7ZLHV0YdfeQmGK86t0XcnpvpaWv8DhR-gf8WaIS6nb34jGKEqEHFWczunPPxQQam9vYIMyhVZg2_D-zT_criyrqjEoGQRWUwb6bnEQVqpa2wsKs/s320/maxresdefault.jpg


        "No princípio era o Verbo", reza o prólogo do evangelho de João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz carne. O mundo foi criado porque foi proferido: "E Deus disse: 'Haja a luz' e houve luz", conta o autor do Gênesis.

        Vivemos sob o signo da palavra. Unir palavra e corpo é o mais profundo desafio a quem busca coerência na vida. Há políticos e religiosos que primam pela abissal distância entre o que dizem e o que fazem. E há os que falam pelo que fazem.

        A palavra fere, machuca, dói. Proferida no calor aquecido por mágoas ou ira, penetra como flecha envenenada. Obscurece a vista e instaura solidão. Perdura no sentimento dilacerado e reboa, por um tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração compassivo, o movimento anagógico e a meditação livram a mente de rancores e imunizam-nos da palavra maldita.

        Machado de Assis ensina que as palavras têm sexo, amam-se umas às outras, casam-se. O casamento delas é o que se chama estilo.

        A palavra salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é como brisa suave que ativa nossas melhores energias. Somos convocados à reciprocidade. Essa força ressurrecional da palavra é tão miraculosa que, por vezes, a tememos. Orgulhosos, sonegamos afeto; avarentos, engolimos a expressão de ternura que traria luz; mesquinhos, calamos o júbilo, como se deflagrar vida merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar. Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada na balança dos sentimentos.

        Vivemos cercados de palavras vãs, condenados a uma civilização que teme o silêncio. Fala-se muito para dizer bem pouco. Nas músicas juvenis abundam palavras e carecem melodias. Jornais, revistas, tevê, outdoors, telefone, correio eletrônico – há demasiado palavrório. E sabemos todos que não se dá valor ao que se abusa.

        Carecemos de poesia. O poeta é um entusiasmado, no sentido grego de en + theós = com um deus dentro. Como sublinha Platão no lon, nele fala a divindade, o Outro. Em linguagem psicanalítica, fala o inconsciente. Como Orfeu, o poeta desce à noite dos infernos para recuperar Eurípides, o fantasma do desejo.

        Nossa lógica cartesiana faz do palavrório uma defesa contra o paradoxo. No entanto, sem paradoxo não há arte. O belo é irredutível à palavra, mas só a palavra expressa a estética. O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo.

        Há demasiado ruído em nós e em torno de nós. Tudo de tal modo se fragmenta que até a hermenêutica se cala. Hermes, o deus mensageiro, já não nos revela o sentido das coisas, mormente das palavras, que se multiplicam como vírus que esgarça o tecido e introduz a morte.

        Guimarães Rosa inicia Grandes sertões, veredas com uma palavra insólita: "Nonada". Não nada. Não, nada. Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida de fantasias.

        Sabem os místicos que, sem dizer "não" e almejar o Nada, é impossível ouvir, no segredo do coração, a palavra de Deus que, neles, se faz Sim e Tudo, expressão amorosa e ressonância criativa.

Frei Betto.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 24-25.

Entendendo a crônica:

01 – Por que o autor afirma que "as palavras pesam" e qual a sua principal distinção em relação à comunicação animal?

      O autor afirma que "as palavras pesam" porque são a mais genuína invenção humana, distinguindo-nos dos animais. Enquanto papagaios apenas repetem sons e não escapam de seus limites atávicos, os humanos conjugam mente e boca para proferir palavras, revelando uma capacidade de expressão única e complexa que lhes confere peso e significado.

02 – Como o texto relaciona a palavra com a criação divina e a coerência humana?

      O texto relaciona a palavra com a criação divina ao citar "No princípio era o Verbo" e "E Deus disse: 'Haja a luz' e houve luz", indicando que a palavra divina tem poder criador. Para os humanos, a crônica destaca que unir palavra e corpo (fala e ação) é o maior desafio para alcançar a coerência na vida, contrastando com aqueles que demonstram uma "abissal distância" entre o que dizem e o que fazem.

03 – De que forma as palavras podem ferir e qual o caminho para superar esses impactos negativos?

      As palavras podem ferir profundamente, "machucando" e "doendo" como "flechas envenenadas" quando proferidas com mágoa ou ira, instaurando solidão e perdurando na mente com rancor. O caminho para superar esses impactos, segundo o autor, é o coração compassivo, o "movimento anagógico" (ascensão espiritual) e a meditação, que livram a mente de rancores e imunizam contra a "palavra maldita".

04 – Qual a "força ressurrecional" da palavra, segundo o autor, e por que, paradoxalmente, a tememos?

      A "força ressurrecional" da palavra reside em sua capacidade de salvar, acolher e ativar "nossas melhores energias" com expressões de carinho, alegria ou amor, promovendo a reciprocidade. Paradoxalmente, a tememos por orgulho, avareza ou mesquinhez, sonegando afeto e engolindo ternura, como se a palavra, que é gratuita, fosse uma "mercadoria pesada na balança dos sentimentos".

05 – Qual a crítica do autor à "civilização que teme o silêncio" e ao excesso de "palavrório"?

      O autor critica a civilização contemporânea que "teme o silêncio" e está condenada ao excesso de "palavrório", onde se fala muito para dizer pouco. Ele exemplifica isso com músicas juvenis sem melodia, e a superabundância de informações em mídias, concluindo que o valor é perdido quando há abuso, gerando um ambiente de "ruído" constante.

06 – Como a crônica diferencia o "tagarela" do "sábio" no uso da palavra, e qual o papel do silêncio nesse contexto?

      O tagarela "cansa os ouvidos alheios" com seu "matraquear de frases" que ecoam "sem consistência". O sábio, por outro lado, "pronuncia a palavra como fonte de água viva", falando "do mais profundo de si mesmo". O silêncio é apresentado não como o contrário da palavra, mas como sua matriz, sugerindo que a palavra "talhada pelo silêncio" possui mais significado e consistência.

07 – Qual o significado da referência a Guimarães Rosa e a palavra "Nonada" no final da crônica?

      A referência a Guimarães Rosa e a palavra "Nonada" ("Não nada. Não, nada.") em "Grandes sertões, veredas" serve como um convite ao silêncio, à contemplação e à mente centrada no vazio. Isso é uma metáfora para a busca mística do "Nada" (o "não" às fantasias e distrações) para, então, ouvir a "palavra de Deus" que se faz "Sim e Tudo" no segredo do coração, alcançando uma "expressão amorosa e ressonância criativa".

 

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