Crônica: Magia e milagre da palavra
As palavras pesam. Talvez porque sejam
a mais genuína invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não
escapam de seus limites atávicos. Curioso é organismo humano não possuir um
órgão específico da fala. O olho é a fonte da visão, como o ouvido, da audição.
A língua facilita a deglutição, como a traqueia, a respiração. No entanto, a
ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da
respiração e da deglutição, para proferir palavras.

"No princípio era o Verbo",
reza o prólogo do evangelho de João. Deus é Palavra e, em Jesus, ela se faz
carne. O mundo foi criado porque foi proferido: "E Deus disse: 'Haja a
luz' e houve luz", conta o autor do Gênesis.
Vivemos sob o signo da palavra. Unir
palavra e corpo é o mais profundo desafio a quem busca coerência na vida. Há
políticos e religiosos que primam pela abissal distância entre o que dizem e o
que fazem. E há os que falam pelo que fazem.
A palavra fere, machuca, dói. Proferida
no calor aquecido por mágoas ou ira, penetra como flecha envenenada. Obscurece
a vista e instaura solidão. Perdura no sentimento dilacerado e reboa, por um
tempo que parece infinito, na mente atordoada pelo jugo que se impõe. Só o coração
compassivo, o movimento anagógico e a meditação livram a mente de rancores e
imunizam-nos da palavra maldita.
Machado de Assis ensina que as palavras
têm sexo, amam-se umas às outras, casam-se. O casamento delas é o que se chama
estilo.
A
palavra salva. Uma expressão de carinho, alegria, acolhimento ou amor, é como
brisa suave que ativa nossas melhores energias. Somos convocados à
reciprocidade. Essa força ressurrecional da palavra é tão miraculosa que, por
vezes, a tememos. Orgulhosos, sonegamos afeto; avarentos, engolimos a expressão
de ternura que traria luz; mesquinhos, calamos o júbilo, como se deflagrar vida
merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar.
Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada na balança dos
sentimentos.
Vivemos cercados de palavras vãs,
condenados a uma civilização que teme o silêncio. Fala-se muito para dizer bem
pouco. Nas músicas juvenis abundam palavras e carecem melodias. Jornais,
revistas, tevê, outdoors, telefone, correio eletrônico – há demasiado
palavrório. E sabemos todos que não se dá valor ao que se abusa.
Carecemos de poesia. O poeta é um
entusiasmado, no sentido grego de en + theós = com um deus dentro. Como
sublinha Platão no lon, nele fala a divindade, o Outro. Em linguagem
psicanalítica, fala o inconsciente. Como Orfeu, o poeta desce à noite dos
infernos para recuperar Eurípides, o fantasma do desejo.
Nossa lógica cartesiana faz do
palavrório uma defesa contra o paradoxo. No entanto, sem paradoxo não há arte.
O belo é irredutível à palavra, mas só a palavra expressa a estética. O
silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo silêncio, mais
significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu
matraquear de frases ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra como
fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo.
Há demasiado ruído em nós e em torno de
nós. Tudo de tal modo se fragmenta que até a hermenêutica se cala. Hermes, o
deus mensageiro, já não nos revela o sentido das coisas, mormente das palavras,
que se multiplicam como vírus que esgarça o tecido e introduz a morte.
Guimarães Rosa inicia Grandes sertões,
veredas com uma palavra insólita: "Nonada". Não nada. Não, nada.
Convite ao silêncio, à contemplação, à mente centrada no vazio, à alma despida
de fantasias.
Sabem os místicos que, sem dizer
"não" e almejar o Nada, é impossível ouvir, no segredo do coração, a
palavra de Deus que, neles, se faz Sim e Tudo, expressão amorosa e ressonância
criativa.
Frei Betto.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 24-25.
Entendendo a crônica:
01 – Por que o autor afirma
que "as palavras pesam" e qual a sua principal distinção em relação à
comunicação animal?
O autor afirma
que "as palavras pesam" porque são a mais genuína invenção humana,
distinguindo-nos dos animais. Enquanto papagaios apenas repetem sons e não
escapam de seus limites atávicos, os humanos conjugam mente e boca para
proferir palavras, revelando uma capacidade de expressão única e complexa que
lhes confere peso e significado.
02 – Como o texto relaciona a
palavra com a criação divina e a coerência humana?
O texto relaciona
a palavra com a criação divina ao citar "No princípio era o Verbo" e
"E Deus disse: 'Haja a luz' e houve luz", indicando que a palavra
divina tem poder criador. Para os humanos, a crônica destaca que unir palavra e
corpo (fala e ação) é o maior desafio para alcançar a coerência na vida,
contrastando com aqueles que demonstram uma "abissal distância" entre
o que dizem e o que fazem.
03 – De que forma as palavras
podem ferir e qual o caminho para superar esses impactos negativos?
As palavras podem
ferir profundamente, "machucando" e "doendo" como
"flechas envenenadas" quando proferidas com mágoa ou ira, instaurando
solidão e perdurando na mente com rancor. O caminho para superar esses impactos,
segundo o autor, é o coração compassivo, o "movimento anagógico"
(ascensão espiritual) e a meditação, que livram a mente de rancores e imunizam
contra a "palavra maldita".
04 – Qual a "força
ressurrecional" da palavra, segundo o autor, e por que, paradoxalmente, a
tememos?
A "força
ressurrecional" da palavra reside em sua capacidade de salvar, acolher e
ativar "nossas melhores energias" com expressões de carinho, alegria
ou amor, promovendo a reciprocidade. Paradoxalmente, a tememos por orgulho,
avareza ou mesquinhez, sonegando afeto e engolindo ternura, como se a palavra,
que é gratuita, fosse uma "mercadoria pesada na balança dos
sentimentos".
05 – Qual a crítica do autor à
"civilização que teme o silêncio" e ao excesso de
"palavrório"?
O autor critica a civilização contemporânea que "teme o
silêncio" e está condenada ao excesso de "palavrório", onde se
fala muito para dizer pouco. Ele exemplifica isso com músicas juvenis sem
melodia, e a superabundância de informações em mídias, concluindo que o valor é
perdido quando há abuso, gerando um ambiente de "ruído" constante.
06 – Como a crônica diferencia
o "tagarela" do "sábio" no uso da palavra, e qual o papel
do silêncio nesse contexto?
O tagarela
"cansa os ouvidos alheios" com seu "matraquear de frases"
que ecoam "sem consistência". O sábio, por outro lado,
"pronuncia a palavra como fonte de água viva", falando "do mais
profundo de si mesmo". O silêncio é apresentado não como o contrário da
palavra, mas como sua matriz, sugerindo que a palavra "talhada pelo
silêncio" possui mais significado e consistência.
07 – Qual o significado da
referência a Guimarães Rosa e a palavra "Nonada" no final da crônica?
A referência a
Guimarães Rosa e a palavra "Nonada" ("Não nada. Não, nada.")
em "Grandes sertões, veredas" serve como um convite ao silêncio, à
contemplação e à mente centrada no vazio. Isso é uma metáfora para a busca
mística do "Nada" (o "não" às fantasias e distrações) para,
então, ouvir a "palavra de Deus" que se faz "Sim e Tudo" no
segredo do coração, alcançando uma "expressão amorosa e ressonância
criativa".
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