quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: A MÃE PERFEITA - LUCINHA ARAÚJO - COM GABARITO

 Conto: A mãe perfeita

           Lucinha Araújo

Mamãe, tá certo, eu me dei mal na escola [...]

Pode parar o jogo

Você é a dona da bola [...]

        Talvez o auge de minha obsessão por fazer de meu filho um gênio da raça tenha sido a ideia fixa que me levou a procurar o Colégio Santo Inácio, de padres jesuítas, em I963, quando Cazuza tinha cinco anos. Se aquela era a melhor escola do Rio de Janeiro, era ali que meu filho iria estudar. Mas para que meu sonho se realizasse era preciso que ele passasse no exame de admissão, cuja exigência mínima era a de que o novo aluno soubesse ler e escrever. Nos preparamos para este exame como se ele fosse fatal para que eu continuasse viva. Estava tão nervosa no dia da prova que protagonizei uma cena inesquecível. De pé, debaixo da janela da sala onde ele fazia o exame, anotei uma a uma as vinte palavras do ditado nas costas de um envelope, que guardo comigo até hoje. No táxi, de volta para casa, perguntei a Cazuza como havia se saído:

        -- Não sei, mamãe!!!

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi1AbJidUeV4hZuCqeR8TSAQSG0zOsKB8JTMbzRbQllRdBnIQe7vlmvTRRchjLp1Fd5byebvWyzV5Qr18_jQJmjHn5IoNVUJ6CHt17W7m5nPCoLv7hRArtSZp-jyK4PNmsGMz03NDMJNq344lrdpIXKjT2V7u-SJ5BmG0aKmScb5leJ0YtXnQKBDdXzjBA/s1600/images.png


        Tirei então o envelope da bolsa e fiz com que ele escrevesse tudo novamente. Cazuza só errou uma palavra: escreveu verdejante com a letra "g". Fiquei bastante apreensiva até o dia em que o resultado foi divulgado. Cazuza havia conseguido! Entre mais de mil candidatos, classificou-se em quinquagésimo lugar, com nota 9,5. Qualquer mãe ficaria orgulhosa, mas não eu. Um 9,5 era pouco para mim, uma ex-estudante de colégio de freiras cujo rendimento escolar havia sido exemplar. Não podia imaginar quanto meu filho ainda iria se rebelar no futuro contra a rigidez e os métodos do Santo Inácio.

        A nossa rotina, a partir de então, era controlada. Cazuza chegava da escola, eu pegava o diário de classe na mala e organizava a sua vida de acordo com os deveres. No fim da tarde, enquanto não terminasse os deveres escritos, não podia sair para brincar. Na manhã seguinte, ele se dedicava às lições orais. Depois, eu lhe tomava os deveres. E como eu era chata nesse papel!!! João, embora ausente, não concordava com meus métodos, mesmo porque, para ele, ser um bom aluno na escola não significava muita coisa. Citava exemplos de homens brilhantes que nunca haviam conseguido um dez no boletim. Cazuza corria para ele nessa fase para se proteger de mim.

        Felizmente meu filho encontrou duas grandes válvulas de escape para suportar meu temperamento autoritário enquanto era criança. Suas duas avós. Minha mãe, Alice, representava para meu filho a liberdade desfrutada longe de casa. Tudo o que era proibido conosco era permitido na casa de Vovó Lice. Para acompanhar meu marido em seus incontáveis trabalhos noturnos, em sua trajetória como homem da indústria fonográfica, muitas vezes deixei Cazuza com minha mãe. A seu lado, Cazuza conheceu o reino dos céus. Tomava banho se quisesse, comia todas as guloseimas desejadas e, pior ainda, assistia televisão, hábito proibido por João. Às vezes, na volta para casa, ele comentava o filme da Sessão Coruja, o que deixava o pai muito bravo. Mas a paixão de Cazuza por minha mãe não tinha limites. Primeiro neto homem numa família de mulheres, Cazuza era o preferido mesmo e se orgulhava disso. Adorava ouvir as histórias que minha mãe lhe contava e, principalmente, retribuía a compreensão com que ela o tratava em todas as circunstâncias. Depois que se tornou famoso, Cazuza confessou numa entrevista que era com Vovó Lice que discutia as suas poesias, as rimas dos versos que nunca me mostrou. Mesmo assim, muitas vezes, o temperamento brincalhão e quase mórbido dessa fase de Cazuza não poupava nem mesmo a querida Vovó Lice. Uma de suas brincadeiras assustadoras preferidas era simular um desmaio no banheiro. Para dramatizar, ele colava aquele fiozinho vermelho que encapava os maços de cigarro grudado no canto da boca, para simular sangue escorrendo. Ele gritava, minha mãe corria para o banheiro e levava um susto imenso. Invariavelmente, ela apelava aos santos:

        -- Valha-me minha Santa Rita!

        Cazuza gargalhava. Ele repetia a encenação com alguma frequência e Vovó Lice não aprendia. Sempre se assustava.

        A segunda válvula de escape de Cazuza era dona Maria, sua avó paterna, em cuja casa de Vassouras ele passou as férias dos três aos quinze anos. Também ali era tratado como um príncipe, cercado de todos os mimos que uma avó sabe fazer, incluindo tirar as sementes de uva por uva para que ele não engasgasse, além de outras mordomias. Muitas vezes eu e João voltávamos tarde para casa depois de um baile de carnaval, ou outra festa, e Cazuza acordava antes do que nós. Gritava lá de sua cama:

        -- Vovó Maria, meu amor, vem me buscar!

        E os dois passavam toda a manhã se divertindo juntos. Mas nem ela escapava de seu apurado senso de humor. Quando falava ao telefone com Vovó Maria e ela começava a se queixar e reclamar de dormência nas mãos, Cazuza também não se continha:

        -- É, vovó, mas também, o que você quer? Você já está bem velhinha e não quer ter nada? Faz o seguinte vovó: corta as mãos!!!

        Em 2 de maio de 1997, Vovó Maria completou 99 anos.

        A paixão de Cazuza pelos animais começou com um periquito perdido que apareceu no nosso quarto-e-sala. O apartamento térreo tinha um pequeno quintal ao ar livre e ali ele colecionava seus animaizinhos de estimação. Tempos depois comprei uma fêmea e um viveiro e os periquitos se multiplicaram em 33 e acabaram todos na casa de minha mãe em Vassouras, para onde foram também um coelho e um aquário bastante habitado. Aos cinco anos, ganhou seu primeiro cachorro, uma cadela que batizou de Sunny. Tinha o pelo dourado que brilhava ao sol, mas seis meses depois foi atropelada, para total desespero de Cazuza. Enquanto o veterinário tentava, em vão, salvá-la, Cazuza, bastante nervoso, rasgou com as mãos as pernas da bermuda jeans que estava usando. Como presente de uma vizinha, a jornalista Sandra Moreyra, na época uma menina, ganhou outra cadela logo depois. Infelizmente, ela também ficou doente e morreu em uma semana.

        Mas meu filho não desistiu. Depois de um fim de semana em Friburgo, com tia Maryse, Paulinho e Márcia Muller, ele voltou para casa com outra cadela que, embora preta e feia, cismou em também lhe chamar de Sunny. A Sunny ll, que sobreviveu e ficou oito anos em casa – dos treze que viveu –, até mudarmos para o Leblon, quando o seu destino foi o mesmo dos outros – a casa de Vovó Lice em Vassouras. Cazuza escolheu o mais bonito filhote da última ninhada de Sunny ll. Seu nome era Wanderley Cardoso, em homenagem aos olhos verdes, parecidos aos do cantor. Cazuza carregava Wanderley para toda parte, principalmente à praia, onde meu filho ficou conhecido como o dono de Wanderley, que se parecia a um rusk siberiano, embora fosse um vira-lata de primeira. Certo dia, num carnaval, Cazuza saiu com Wanderley para brincar na Banda de Ipanema. Lá pelas oito da noite, meu filho chegou em casa sem o cachorro. Mas cadê o Wanderley:

        -- Não sei, mãe, ele sumiu. Procurei, procurei e não acho.

        -- Cazuza, você é um irresponsável!

        Zeca Neves guardou na memória outra história de Wanderley na praia do Arpoador. Cazuza, com dentista marcado para as três da tarde, ficou furioso quando Wanderley se engatou com uma cadela e não havia meio de separá-los. Às duas horas, cansado e apressado, gritava com seu cão:

        -- Logo agora você faz isso comigo!!!

        Nossa cozinheira, Cida, que era louca pelo cachorro, já organizara uma expedição de resgate quando o programa Fantástico começou a exibir uma reportagem sobre a Banda. E lá estava ele, todo fantasiado, trançando entre as pernas dos foliões. Embora a matéria tenha sido gravada de tarde, saímos, Cida e eu, à procura de Wanderley, seguindo o itinerário da Banda. Finalmente o encontramos na Praça da Paz, todo fantasiado, andando de um lado para o outro, à procura de seu dono. Cazuza nem deu bola. Nos seus dois últimos anos de vida, meu filho ganhou outro cachorro, o Mané, um weimaraner. Um cão sem a menor identidade. Conviveu muito pouco com seu dono.

        Cazuza viveu outras várias fases de interesses quando menino. Em sua prodigiosa imaginação para criar histórias, ele preencheu vários cadernos com suas histórias: criava famílias inteiras e um destino para cada um de seus personagens – desquites, traições, mortes, bigamias. Quase ao mesmo tempo surgiu o interesse por geografia. Desde os sete anos, Cazuza saciava a curiosidade, consultando com sofreguidão a Enciclopédia Barsa. Alguns amigos de João do futebol se reuniam todos os sábados depois do jogo em São Conrado, só pelo prazer de sabatiná-lo.

        -- Cazuza, qual a capital do Zaire? E a renda per capita?

        Ele acertava todas. Impressionante.

        Cazuza acabou realmente se tornando um expert no assunto, a ponto de seus colegas de escola – e outros amigos – ligarem lá para casa para tirar suas dúvidas sobre geografia, populações, capitais, culturas dos países. Ele deitava-se no chão de seu quarto com o mapa-múndi aberto e se concentrava inteiramente. Passava grande parte de seu tempo trancado no quarto, no seu mundinho particular. João, nessa fase, brincava com ele:

        -- Você vai ser o quê? Professor de geografia? Isso não dá dinheiro.

        Mais tarde, costumava ler romances com o atlas ao lado, para entender direitinho onde se passava a ti ama. Ele devia ter uns oito anos quando recebemos em casa, para um jantar quase cerimonioso, o venezuelano Manoel Guevara, casado com uma prima minha e que naquele momento exercia o cargo de ministro dos Transportes em seu país. O apartamento estava perfeito, e nós três, muito bem vestidos. Cazuza usou um de seus modelos da Bebê Conforto, a última palavra em roupas infantis no Rio de Janeiro dos anos 60. Antes da chegada das visitas, preocupado com a irreverência latente do filho, João chamou Cazuza num canto com recomendações:

        -- Olha, meu filho, eu sei que você não tem a menor cerimônia com as pessoas. Mas hoje, por favor, não faça perguntas, não diga bobagens.

        Durante o jantar, duas ou três, vezes, João cutucou Cazuza por debaixo da mesa. Como se não estivesse entendendo nada e exibindo um ar inocente, denunciou João:

        -- O que foi, pai?

        Até que o ministro começou a contar sobre um túnel que havia construído em sua terra, um túnel de trem subterrâneo. E afirmava que aquele túnel que tinha uma determinada extensão era o maior da América Latina. Cazuza retrucou no ato:

        -- Não é, não!

        Levantou da mesa e saiu correndo para o quarto. Quando voltou, trazia um livro nas mãos provando não só que a extensão do túnel alardeada pelo ministro estava errada como também que aquele não era, definitivamente, o maior da América Latina. O ministro ficou encantado. No dia seguinte mandou de presente para Cazuza um sofisticado atlas inglês.

        Tempos depois, Cazuza se apaixonou por arquitetura e urbanismo. Criava cidades com madeiras e caixas de fósforos e também todo o seu funcionamento. Na casa de minha mãe em Vassouras – que nessa época havia se mudado definitivamente com papai, já aposentado, para a cidade –, Cazuza passava horas no quintal armando suas metrópoles imaginárias, todas elas com população definida, além de renda per capita e seu cotidiano. Sempre pensei que meu filho acabaria se tornando um engenheiro, um arquiteto, um urbanista, tal a dedicação e empenho com que mergulhava compenetrado nesses assuntos. Apesar disso, o rendimento escolar de Cazuza era péssimo. Suas notas, eu pensava, eram inadmissíveis para um garoto inteligente e esperto como ele. E, invariavelmente, eram motivo de castigo para meu filho. Já com os esportes, Cazuza foi uma tragédia, para desespero do pai. Todos os sábados, meu marido frequentava um clube de futebol formado por trinta homens com mais de trinta anos, com uma exceção aberta a João, que foi admitido aos 24. Era o chamado Clube dos 30, em São Conrado. João sempre teve amigos mais velhos e ali conviveu com Paulo Mendes Campos, Luís Carlos Barreto, Thiago de Mello, Armando Nogueira, que também levavam seus filhos ao futebol de todos os sábados. Além disso, em toda a sua vida, meu marido foi um esportista que praticou tênis, vôlei e futebol. Ele queria muito que o filho seguisse seu exemplo, como conta: "Sempre desejei que Cazuza se interessasse por esportes, mas quando eu o levava ao Clube dos 30, Cazuza não demonstrava a menor vontade de jogar futebol. Às vezes até brincava com a bola, mas rapidamente se desinteressava. O que o empolgava mesmo era pegar meu carro e dirigir em volta do loteamento."

        A frustração de João com o total desinteresse do filho por seu esporte favorito foi motivo de uma crônica do jornalista Armando Nogueira, publicada no Jornal do Brasil, em sua coluna "A Grande Área", em 1968:

        Cazuza, dez anos, chegou da escola, participando ao pai uma novidade:

        -- Papai, estou jogando futebol, lá no colégio.

        O pai, que sempre bateu sua bolinha razoavelmente, ficou na maior alegria: nunca tinha confessado, mas o desinteresse do filho por futebol era uma das pequenas tristezas de sua vida. Há alguns anos ele andou tentando despertar no garoto o gosto pela pelada: no clube em que joga um racha semanal, chegou mesmo a levar Cazuza para o campo, ficava no gol e só para estimular papava frangos tremendos nos chutes de Cazuza.

        Nos últimos tempos, porém, Cazuza abandonou na garagem a bola e as chuteiras e nunca mais falava de futebol. Daí a felicidade do pai ao ouvir do menino que estava jogando bola, agora oficialmente, no time do colégio.

        -- É no time do colégio, Cazuza?

        -- É, sim senhor.

        -- No primeiro time, Cazuza?

        -- Não.

        -- Ah, é no segundo time, meu filho?

        -- Também não, papai.

        -- Não vai me dizer que te puseram no terceiro time. Terceiro time nem deve existir lá no colégio.

        -- Existe, sim, mas eu não jogo no terceiro time também, não. Sou do Fusa.

        -- Fusa? Que diabo é isso, Cazuza?

        -- Fusa é o seguinte, papai: tem o primeiro time, o segundo e o terceiro times. Aí eles pegaram a turma que sobrou e misturaram todo mundo. Isso é que é Fusa.

         -- E você joga de quê, nesse tal de Fusa? – perguntou o pai, já inteiramente desanimado com o herdeiro de suas virtudes futebolísticas...

        -- Eu sou reserva do Fusa, papai.

        Em sua carreira, João fez de tudo na indústria do disco. Começou na gravadora Copacabana e, depois, passou pela Odeon, Mocambo, Festa e Sinter, que foi comprada pela Philips. Naquela gravadora, João produziu discos de Elis Regina, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Jorge Ben. Praticamente lançou Caetano Veloso e Gal Costa no disco Domingo, o primeiro da carreira de ambos. Lançou, também, o primeiro LP dos Novos Baianos. Considero João o homem de disco mais importante do Brasil, pois conheceu a fundo o seu ofício ao trabalhar em todos os cargos dentro da indústria - foi divulgador de rádio, de imprensa, produtor de estúdio, até fundar a Som Livre, em dezembro de 1969.

        Por isso, desde pequenininho, meu filho teve sua atenção naturalmente desperta para o mundo da música. Eu e João gostávamos de música, desde o namoro. Na época, eu estudava violão e, em nossos encontros, nos distraíamos em tocar e cantar. Para Cazuza, aconteceu ainda de conhecer de perto os artistas que frequentavam nossa casa. Desde garoto, a paixão de Cazuza por Rita Lee era avassaladora. Não perdia nenhum de seus shows. Silvinha Teles foi minha colega de colégio e acompanhou Cazuza desde o seu nascimento. Elis Regina o viu crescer, assim como Jair Rodrigues, Os Novos Baianos, Caetano, Gil, Gal. Meu filho dizia que não tinha mitos, pois conviveu com todos eles.

        Nos tempos do Santo Inácio, Cazuza tinha dois grandes amigos: Ricardo Quintana e Pedro Bial, hoje jornalista e poeta. Com Pedro, aliás, ele já havia repartido a sala de aula no Colégio Chapeuzinho Vermelho. Com meu filho, Pedro frequentou o Clube dos 30, fez viagens em excursão do colégio e entrevistou o poeta Vinícius de Morais para um trabalho escolar sobre diplomatas que abandonaram a carreira. As recordações de Pedro Bial sobre a infância e adolescência de ambos:

        "Cazuza não era nada esportivo, não gostava de esportes. Era tímido e fechado. Não se socializava com o resto da turma. Nunca teve muita paciência para o social. Era inteligente e desenhava muito bem. Fazia desenhos de mapas e cidades, superorganizado. O resultado era muito bem-feito e, para cada um dos lugares, ele inventava nomes de fantasia. Na época do Santo Inácio, ele teve uma relação forte com Ricardo Quintana e, juntos, inventavam histórias, um espaço meio mitológico, um mundo só deles. Minha grande luta era a de ser aceito na brincadeira. A grande sensação da escola eram as mulheres nuas que Cazuza desenhava: todos os alunos pagariam uma nota para ter um desenho dele – mulheres eróticas, sexies, vamps, lindas, personagens marcantes. Cazuza não era do tipo popular e nem de ficar desafiando professores. Quieto, ficava no seu canto conversando com o Ricardo ou comigo. Aos treze anos - tínhamos a mesma idade –, o pai de Cazuza conseguiu marcar uma entrevista nossa com o Vinícius de Morais. Ficamos encantados com aquele líquido amarelinho que ele tomava. Achamos muito bacana aquele negócio do uísque."

        A vida escolar de Cazuza, na verdade, nunca me deixou tranquila. Ele passou a desafiar minha autoridade à medida que crescia: passou a esconder o diário de classe e a rasgar boletins com notas baixas. A primeira vez em que ficou de recuperação na escola, no final do primeiro ano ginasial, em três matérias, não teve coragem de voltar para casa. Da escola, rumou direto para o escritório de João, na Som Livre, e só voltou debaixo das asas do pai. Quando entraram, João me chamou no quarto e alertou:

        -- Cazuza ficou de recuperação e está apavorado com você. Veja lá o que vai fazer. Esses escândalos não resolvem nada!!!

        Mas, no dia seguinte, quando meu marido saiu para o trabalho, tive um duplo acesso de loucura. Primeiro, porque não me conformava com a traição de Cazuza. Como eu, que me julgava a dona do pedaço, tinha sido a última a saber? Meu ciúme era doentio. E depois veio a bronca monumental pela recuperação no Santo Inácio. Os catorze anos de Cazuza foram como uma marca de luta cega pela liberdade. Suas reações diante de minha autoridade já não eram mais de choro e quarto fechado. Ele me enfrentava, respondia e desafiava. Cada vez com mais intensidade. E eu comecei a lutar contra a dura realidade que, dali em diante, seria obrigada a enfrentar: conviver e perdoar as atitudes extremas de meu filho, até entender que ele não era mais o meu garotinho.

Lucinha Araújo.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 87-92.

Entendendo o conto:

01 – Qual era o principal objetivo de Lucinha Araújo em relação à educação de Cazuza no início do conto?

      O principal objetivo de Lucinha Araújo era fazer de Cazuza "um gênio da raça", buscando para ele a melhor educação possível, como o Colégio Santo Inácio.

02 – Como Cazuza se saiu no exame de admissão para o Colégio Santo Inácio e qual foi a reação de sua mãe?

      Cazuza se classificou em quinquagésimo lugar, com nota 9,5, entre mais de mil candidatos. Lucinha Araújo, no entanto, não ficou orgulhosa, achando que um 9,5 era "pouco" para um filho seu.

03 – Quais eram as duas principais "válvulas de escape" de Cazuza para suportar o temperamento autoritário de sua mãe?

      As duas principais válvulas de escape de Cazuza eram suas duas avós: Alice (Vovó Lice), mãe de Lucinha, e dona Maria, avó paterna.

04 – Descreva a relação de Cazuza com Vovó Lice.

      Cazuza tinha uma paixão ilimitada por Vovó Lice, que representava a liberdade. Na casa dela, ele podia fazer o que era proibido em casa, como comer guloseimas e assistir televisão. Ele se sentia compreendido por ela e até discutia suas poesias com a avó.

05 – Cite um exemplo do senso de humor de Cazuza com Vovó Lice.

      Cazuza gostava de simular desmaios no banheiro, usando um fio vermelho para simular sangue, e gritava para assustar Vovó Lice, que sempre se assustava e apelava aos santos.

06 – Como João, pai de Cazuza, via a questão do rendimento escolar e quais eram suas discordâncias com Lucinha?

      João não concordava com os métodos rígidos de Lucinha, pois para ele, ser um bom aluno não significava muito. Ele citava exemplos de homens brilhantes que nunca haviam conseguido um dez no boletim.

07 – Além da música, quais outros interesses Cazuza demonstrou ter durante a infância, que surpreendiam pela sua dedicação?

      Cazuza demonstrou grande interesse por geografia, tornando-se um expert, e também por arquitetura e urbanismo, criando cidades imaginárias com detalhes de população e funcionamento.

08 – Qual foi o episódio que demonstrou o conhecimento de Cazuza em geografia e como ele impressionou o ministro venezuelano?

      Durante um jantar, Cazuza corrigiu o ministro venezuelano sobre a extensão e o título de "maior da América Latina" de um túnel. Ele foi ao quarto buscar um livro e provou seu ponto, o que encantou o ministro.

09 – Como o pai de Cazuza reagiu ao desinteresse do filho por esportes, e qual anedota é contada sobre o futebol?

      João ficava frustrado com o desinteresse de Cazuza por esportes, especialmente futebol. Uma crônica de Armando Nogueira relata que Cazuza dizia jogar no "Fusa", que era a turma "que sobrou" após a formação dos três times oficiais do colégio.

10 – Qual foi a mudança na relação de Lucinha com Cazuza a partir dos quatorze anos de idade dele?

      A partir dos quatorze anos, Cazuza passou a desafiar a autoridade de Lucinha, escondendo o diário de classe e rasgando boletins. Ele a enfrentava e respondia, e Lucinha percebeu que precisaria conviver e perdoar as atitudes extremas do filho, entendendo que ele não era mais seu "garotinho".

 

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