quinta-feira, 3 de julho de 2025

ARTIGO DE OPINIÃO : BAR MEMÓRIA - CARLOS HEITOR CONY - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Bar Memória

                Carlos Heitor Cony

        Era um botequim feio, muito feio mesmo. Três portas esquálidas, paredes encardidas, balcão sórdido com empadas sinistras, de longe se adivinhavam o mofo, as sombras, o vago cheiro de túmulo. O nome o salvava: Bar Memória. Nome inexplicável: o botequim nem merecia a classificação de bar. E por que memória? Quem nele se lembraria de alguém ou de alguma coisa? Pior: quem dele se lembraria?

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi62SCjrC30Pe-409djyxparc1SiX4MzA34dWu4x2dmb1R5jtExe1Vl3W4v0rs3vIKbo8MLvcsI1iPwwRv31f8mhrvlMJz20-Daplp_5RSGqW_BkdpoCnR6OvA9q6DrY2FOSbQTZVod6sYGSpi33wX__THTu54UX6U0QrvQ1gfsdb9uy_t2ntntL6xiQgs/s1600/images.jpg


        Sua importância era topográfica. Ficava numa terra-de-ninguém da cidade – cidade que cada vez mais se tornou terra-de-ninguém. Para os Correios e Telégrafos, o Bar Memória ficava no Jardim Botânico. Para os tributos estaduais e municipais, ficava na Gávea. Para a Receita Federal ficava na Lagoa. Policialmente, pertencia à 16a Delegacia, do Leblon. Para o Corpo de Bombeiros, era o Jóquei. O Tribunal Regional Eleitoral o alistou como reserva democrática do Horto.

        Sem sair do lugar, flutuando no chão da cidade, ele existia sem existir, escombro de um fantasma que não pertencia especificamente a nada e a ninguém. Espaço imponderável, um assassinato ali cometido, com um bom advogado a favor do criminoso, jamais seria punido: faltaria a localização exata para determinar o local do crime.

        Estava sempre vazio, nunca vi luz que aliviasse sua penumbra. À noite, ele continuava fiel à escuridão, duas ou três lâmpadas empoeiradas não iluminavam as paredes encardidas e tristes. A luz, trêmula e fria, tornava mais pesadas suas sombras.

        Pois o Bar Memória foi abaixo, esta semana. Nos jornais, a foto conseguia transmitir sua solidão de bar, sua escuridão de memória. A escavadeira do município rasgou sua carne cansada, estraçalhou seu ventre de trevas. O Bar Memória se desmanchou sem resistência, sem dar um grito.

        E como seu chão era imponderável, ele continuará imponderável. Ficará intacto no meio da nova pista que dará acesso à Barra. Não deixará saudade. Não deixará memória, o Bar Memória.

Carlos Heitor Cony.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 27.

Entendendo o artigo:

01 – Qual era a principal característica do Bar Memória, e como o autor a descreve?

      A principal característica do Bar Memória era sua extrema feiura e degradação. O autor o descreve como um "botequim feio, muito feio mesmo", com "três portas esquálidas, paredes encardidas, balcão sórdido com empadas sinistras", além de um "vago cheiro de túmulo" e penumbra constante.

02 – Por que o nome "Bar Memória" era irônico e inexplicável para o autor?

      O nome era irônico e inexplicável porque o bar era tão insignificante e desagradável que o autor questionava: "Quem nele se lembraria de alguém ou de alguma coisa? Pior: quem dele se lembraria?". O lugar não possuía qualidades que justificassem ser lembrado ou associado à memória.

03 – Como o texto explora a ideia de que o Bar Memória era uma "terra-de-ninguém"?

      O texto explora essa ideia através da confusão topográfica e burocrática do bar. Ele não pertencia a um único bairro ou jurisdição, sendo localizado em diferentes áreas (Jardim Botânico, Gávea, Lagoa, Leblon, Jóquei, Horto) por diferentes órgãos. Essa indefinição geográfica reforçava sua natureza de "escombro de um fantasma" e um "espaço imponderável".

04 – O que a demolição do Bar Memória simboliza, e qual o seu desfecho irônico?

      A demolição simboliza o fim de algo que já "existia sem existir", um escombro de um passado sem relevância. O desfecho é irônico porque, apesar de seu nome, o Bar Memória "não deixará saudade. Não deixará memória, o Bar Memória", ou seja, sua existência era tão efêmera e sem impacto que mesmo sua destruição não geraria lembranças.

05 – Qual a relação entre a falta de localização exata do Bar Memória e a impunidade de um possível crime?

      O autor sugere que a falta de localização exata tornava o bar um "espaço imponderável" onde um assassinato, se cometido, jamais seria punido. Isso porque, com um bom advogado, seria impossível determinar o "local exato do crime", aproveitando a ambiguidade geográfica do estabelecimento para fins jurídicos.

 

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