Artigo de opinião: Bar Memória
Carlos Heitor Cony
Era um botequim feio, muito feio mesmo.
Três portas esquálidas, paredes encardidas, balcão sórdido com empadas
sinistras, de longe se adivinhavam o mofo, as sombras, o vago cheiro de túmulo.
O nome o salvava: Bar Memória. Nome inexplicável: o botequim nem merecia a
classificação de bar. E por que memória? Quem nele se lembraria de alguém ou de
alguma coisa? Pior: quem dele se lembraria?

Sua importância era topográfica. Ficava
numa terra-de-ninguém da cidade – cidade que cada vez mais se tornou terra-de-ninguém.
Para os Correios e Telégrafos, o Bar Memória ficava no Jardim Botânico. Para os
tributos estaduais e municipais, ficava na Gávea. Para a Receita Federal ficava
na Lagoa. Policialmente, pertencia à 16a Delegacia, do Leblon. Para o Corpo de
Bombeiros, era o Jóquei. O Tribunal Regional Eleitoral o alistou como reserva
democrática do Horto.
Sem sair do lugar, flutuando no chão da
cidade, ele existia sem existir, escombro de um fantasma que não pertencia
especificamente a nada e a ninguém. Espaço imponderável, um assassinato ali
cometido, com um bom advogado a favor do criminoso, jamais seria punido:
faltaria a localização exata para determinar o local do crime.
Estava sempre vazio, nunca vi luz que
aliviasse sua penumbra. À noite, ele continuava fiel à escuridão, duas ou três
lâmpadas empoeiradas não iluminavam as paredes encardidas e tristes. A luz,
trêmula e fria, tornava mais pesadas suas sombras.
Pois o Bar Memória foi abaixo, esta
semana. Nos jornais, a foto conseguia transmitir sua solidão de bar, sua
escuridão de memória. A escavadeira do município rasgou sua carne cansada,
estraçalhou seu ventre de trevas. O Bar Memória se desmanchou sem resistência,
sem dar um grito.
E como seu chão era imponderável, ele continuará
imponderável. Ficará intacto no meio da nova pista que dará acesso à Barra. Não
deixará saudade. Não deixará memória, o Bar Memória.
Carlos Heitor Cony.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 27.
Entendendo o artigo:
01 – Qual era a principal
característica do Bar Memória, e como o autor a descreve?
A principal
característica do Bar Memória era sua extrema feiura e degradação. O autor o descreve
como um "botequim feio, muito feio mesmo", com "três portas
esquálidas, paredes encardidas, balcão sórdido com empadas sinistras",
além de um "vago cheiro de túmulo" e penumbra constante.
02 – Por que o nome "Bar
Memória" era irônico e inexplicável para o autor?
O nome era
irônico e inexplicável porque o bar era tão insignificante e desagradável que o
autor questionava: "Quem nele se lembraria de alguém ou de alguma coisa?
Pior: quem dele se lembraria?". O lugar não possuía qualidades que justificassem
ser lembrado ou associado à memória.
03 – Como o texto explora a
ideia de que o Bar Memória era uma "terra-de-ninguém"?
O texto explora
essa ideia através da confusão topográfica e burocrática do bar. Ele não
pertencia a um único bairro ou jurisdição, sendo localizado em diferentes áreas
(Jardim Botânico, Gávea, Lagoa, Leblon, Jóquei, Horto) por diferentes órgãos.
Essa indefinição geográfica reforçava sua natureza de "escombro de um
fantasma" e um "espaço imponderável".
04 – O que a demolição do Bar
Memória simboliza, e qual o seu desfecho irônico?
A demolição
simboliza o fim de algo que já "existia sem existir", um escombro de
um passado sem relevância. O desfecho é irônico porque, apesar de seu nome, o
Bar Memória "não deixará saudade. Não deixará memória, o Bar
Memória", ou seja, sua existência era tão efêmera e sem impacto que mesmo
sua destruição não geraria lembranças.
05 – Qual a relação entre a
falta de localização exata do Bar Memória e a impunidade de um possível crime?
O autor sugere que a falta de localização exata tornava o bar
um "espaço imponderável" onde um assassinato, se cometido, jamais
seria punido. Isso porque, com um bom advogado, seria impossível determinar o
"local exato do crime", aproveitando a ambiguidade geográfica do
estabelecimento para fins jurídicos.
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