Conto: A encomenda
Ruy
Fabiano
O telefonema me incumbia de
missão desagradável: remeter ao Brasil as cinzas de alguém que nem sequer
conheci. Juliana, minha grande amiga, a quem devo gentilezas impagáveis, e suas
duas irmãs (que vi apenas umas poucas vezes) perderam a mãe, dona Gina, em
Roma, há duas semanas.

Por vontade da falecida, expressa em
testamento – e providenciada por um velho tio napolitano, a seguir
hospitalizado –, seu corpo foi cremado e as cinzas postas à disposição das
filhas no crematório municipal, rua tal, n° tal. As filhas não teriam condições
de pessoalmente recolher os despojos, pois tinham compromisso profissional no
Brasil. Como eu estava morando na cidade, não custava nada providenciar e
quebrar assim um imenso galho para a família. A procuração estava seguindo pelo
correio, dando-me plenos poderes para representá-las.
Jamais me esqueceriam.
Tudo muito asséptico: as cinzas
estariam depositadas num cofre lacrado, que caberia sem problemas naquelas
embalagens vendidas na própria agência do correio. O custo era baixo e a
segurança, total. Essas remessas, inclusive, já eram mais ou menos rotineiras,
disse-me minha amiga. E me relatou histórias análogas que me pareceram
improvisadas para me convencer. Não soube recusar.
Era a segunda tarefa trabalhosa que me
mandavam do Brasil no mesmo período. Antes de Juliana, ligara-me Dulce, mulher
do meu editor, socialite desocupada, ciente de seu poder de influência, com um
pedido perfeitamente supérfluo e dispensável: que lhe mandasse orégano italiano
pelo correio.
O orégano de Roma, disse-me ela,
sobretudo um vendido na rua tal, n° tal, era incomparável, dava um sabor
especial à pizza, e Olavinho, o editor, era tarado por pizza etc. Como
contrariar um editor, sobretudo quando se está fora? Dele depende não apenas o
emprego, mas a presteza no atendimento às emergências, a gentileza na concessão
de algumas regalias (passagens extras para o Brasil ou para países próximos,
adiantamentos salariais, free-lancers, etc.).
Já havia providenciado o pedido de
Dulce quando fui em busca das cinzas da velha, uma semana depois do telefonema
de Juliana, devidamente munido da procuração. O saco de orégano estava dentro
de uma caixa em cima da mesa da sala de jantar. Quando cheguei do crematório, onde
me submeti a penosos ritos burocráticos, coloquei a embalagem fúnebre ao lado
da comestível.
Sentia-me exausto.
Trazer as cinzas de alguém dentro de um
táxi parecera-me um tanto bizarro. Mais ainda tê-las dentro de casa. Sempre me
impressionei demasiado com o mistério da morte e jamais imaginei um dia tê-la a
tiracolo, armazenada numa caixa. O táxi circulava pelas ruas movimentadas de
Roma e eu ali, com um defunto esfarinhado ao colo. O dia chuvoso acentuava a
atmosfera mórbida.
Busquei
ser o mais objetivo possível. Tentei pensar em coisas diferentes: a escalação
da seleção brasileira, por exemplo; nossa crônica carência de goleiros e o
indefectível drible a mais de nossos pontas. Pensei também no imposto de renda,
na injustiça fiscal, no desconforto de declará-lo do exterior.
Mas a lembrança da morte encaixotada
sempre retornava.
Fui dormir tentando driblar o assunto.
Recorri a um sonífero. No dia seguinte me desincumbiria das duas tarefas ao
mesmo tempo, na mesma agência dos correios, e nunca mais aceitaria encomendas
em crematórios ou necrotérios. No meu testamento, se um dia fizer um, exigirei
que minhas cinzas sejam liberadas ao vento no ato mesmo da cremação. Nada de
remessas postais, virtuais ou seja lá como for.
Fiz tudo direito, com o máximo cuidado
para não confundir as encomendas. Lembro-me de que preenchi as etiquetas sem
perder de vista o movimento nervoso que a funcionária do guichê fazia com as
duas caixas, que tinham dimensão equivalente. Para diferenciá-las, marquei um
"x" numa delas.
Não sei o que aconteceu.
Juliana me ligou do Rio esta manhã para
dizer que tinha gostado muito do orégano, mas que continuava aguardando, ela e
suas irmãs, as cinzas da mãe; que poderia despachá-las, se preferisse, pelo
malote semanal da embaixada brasileira, pois tinham um parente no Itamaraty, no
Rio, que poderia ser o destinatário. Disse mais: que não tinham notado
inicialmente o conteúdo diverso da encomenda e que tinham mandado celebrar
missa in memoriam na presença das supostas cinzas.
Velaram o orégano, emocionaram-se
diante dele, o que, posteriormente, foi encarado até com humor (felizmente).
Mas continuavam à espera das cinzas, quando chegariam, que precisavam marcar a
data do sepultamento simbólico, que ficariam guardadas no gavetório da catedral
da cidade etc.
Fui obrigado a mentir, a falsear a
verdade – e me sinto muito mal com isso. Cheguei a me engasgar. O crematório,
disse, havia feito novas exigências burocráticas e só amanhã a encomenda
seguiria, que tudo enfim estava resolvido. O orégano foi uma gentileza, disse,
pois lembrei-me de que ela gostava muito de pizza (perguntou-me como eu
descobrira, já que nunca falara disso a ninguém).
Estou agora pensando num modo de
conseguir cinzas falsas e remetê-las ao Brasil. Não faço ideia de por onde
começar. Terei que voltar ao crematório municipal. A pista tem que estar lá.
Recuso-me a avaliar meu gesto. Ajo tendo em vista a relação custo-benefício.
Não há individualidade em cinzas.
Quanto à mulher do meu editor, aí sim,
me encalacrei: não sei como farei para providenciar outra remessa como aquela.
As cinzas de dona Gina foram degustadas com euforia pelo casal e um círculo
íntimo de gastrônomos, que ficaram impressionados com o sabor picante, "a
condimentação na intensidade exata", e agora querem saber que tempero é
aquele, em que casa o comprei e se posso passar a enviá-lo periodicamente.
Ruy Fabiano.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 29-31.
Entendendo o conto:
01 – Qual era a "missão
desagradável" que o narrador recebeu de Juliana?
A "missão
desagradável" que o narrador recebeu de Juliana era a de remeter ao Brasil
as cinzas de sua mãe, Dona Gina, que havia falecido em Roma. O narrador se
sentia desconfortável com a tarefa, especialmente por não ter conhecido a
falecida.
02 – Que outra encomenda o
narrador havia recebido do Brasil no mesmo período, e de quem?
Antes do pedido
de Juliana, o narrador havia recebido uma encomenda de Dulce, a esposa de seu
editor. O pedido de Dulce era que ele lhe enviasse orégano italiano pelo correio,
alegando que o orégano de Roma era incomparável e dava um sabor especial à
pizza.
03 – Qual o conflito interno
do narrador ao ter as cinzas de Dona Gina em sua casa e no táxi?
O narrador
sentia-se exausto e bizarro com a situação. Ele sempre se impressionou com o
mistério da morte e jamais imaginou tê-la "a tiracolo, armazenada numa
caixa" ou "um defunto esfarinhado ao colo" dentro de um táxi. A
atmosfera mórbida, acentuada pelo dia chuvoso, intensificava seu desconforto.
04 – Que medidas o narrador
tomou para tentar diferenciar as duas encomendas na agência dos correios?
Para diferenciar
as duas encomendas (as cinzas de Dona Gina e o orégano), o narrador preencheu
as etiquetas com o máximo cuidado e marcou um "x" em uma das caixas.
No entanto, ele não conseguiu acompanhar o movimento nervoso da funcionária do
guichê, que lidava com as duas caixas de dimensão equivalente.
05 – Qual a confusão hilária
que ocorreu com as encomendas após o envio?
A confusão
hilária foi que as cinzas de Dona Gina foram enviadas para a mulher do editor
(Dulce) como orégano, e o orégano foi enviado para a família de Juliana como as
cinzas da mãe.
06 – Como a família de Juliana
reagiu ao receber a encomenda errada?
A família de
Juliana, inicialmente, não notou o conteúdo diverso e chegou a celebrar uma
missa in memoriam na presença do suposto orégano. Embora posteriormente tenham
encarado a situação com humor, continuavam à espera das cinzas para o
sepultamento simbólico, forçando o narrador a mentir sobre novas exigências
burocráticas do crematório.
07 – Qual a reação de Dulce e
seu círculo de gastrônomos ao "tempero" que receberam?
Dulce e seu
círculo de gastrônomos degustaram as cinzas de Dona Gina com euforia, ficando
"impressionados com o sabor picante, 'a condimentação na intensidade
exata'". Eles passaram a querer saber a origem do tempero e se o narrador
poderia enviá-lo periodicamente, complicando ainda mais a situação dele.
08 – O que o narrador decide
sobre suas próprias cinzas após essa experiência?
Após a
experiência traumática, o narrador decide que, se um dia fizer um testamento,
exigirá que suas cinzas sejam liberadas ao vento no ato mesmo da cremação, sem
"remessas postais, virtuais ou seja lá como for". Isso reflete seu desejo
de evitar o destino "encaixotado" que ele mesmo providenciou para
Dona Gina.
09 – Por que o narrador se
sente mal ao mentir para Juliana e qual sua estratégia para resolver a situação
com as cinzas?
O narrador se
sente muito mal e chega a se engasgar ao mentir para Juliana sobre as novas
exigências burocráticas do crematório. Para resolver a situação, ele começa a
pensar em um modo de conseguir cinzas falsas e remetê-las ao Brasil, planejando
retornar ao crematório municipal em busca de uma "pista".
10 – Qual o dilema final do
narrador em relação às duas encomendas?
O dilema final é
que, enquanto ele tenta encontrar uma solução para as cinzas de Dona Gina
(produzir cinzas falsas), ele se vê "encalacrado" com a mulher do
editor (Dulce). Agora, Dulce e seus amigos querem saber onde ele comprou o
"tempero" (as cinzas) e se ele pode enviá-lo periodicamente, criando
uma nova e bizarra demanda para o narrador.
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