quinta-feira, 3 de julho de 2025

CRÔNICA: PAULO FREIRE: A LEITURA DO MUNDO - FREI BETTO - COM GABARITO

 Crônica: Paulo Freire: a leitura do mundo

        "Ivo viu a uva", ensinavam os manuais de alfabetização. Mas o professor Paulo Freire, com o seu método de alfabetizar conscientizando, fez adultos e crianças, no Brasil e na Guiné-Bissau, na Índia e na Nicarágua, descobrirem que Ivo não viu apenas com os olhos. Viu também com a mente e se perguntou se uva é natureza ou cultura.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgNfaafAvgrZ1TE7bkpSqoqKgWY32FgzGX4vYXC5awtNaG_3nNruW6DEjAl8gZ40Q_t2a31hhzMwEQSFUjbRC_JAh-8Q9psA3Gp8mPgCxdWrmBDfKppmeCJyd0x8eh-5jYXivsedZIdfPYCho5lOOpkij2ftTDiLjVeizJ9QOAIoxsl1txzbp3ooNJ9Tf4/s320/as-contribuicoes-de-paulo-freire-para-a-alfabetizacao-de-adultos.jpg


        Ivo viu que a fruta não resulta do trabalho humano. É Criação, é natureza. Paulo Freire ensinou a Ivo que semear uva é ação humana na e sobre a natureza. É a mão, multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto. Assim como o próprio ser humano foi semeado pela natureza em anos e anos de evolução do Cosmo. Colher a uva, esmagá-la e transformá-la em vinho é cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza a natureza e, ao realizá-lo, o homem e a mulher se humanizam. Trabalho que instaura o nó de relações, a vida social. Graças ao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionária com operários do Senai de Pernambuco, Ivo viu também que a uva é colhida por bóias-frias, que ganham pouco, e comercializada por atravessadores, que ganham melhor.

        Ivo aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saber ler, ele não é uma pessoa ignorante. Antes de aprender as letras, Ivo sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O médico, o advogado ou o dentista, com todo o seu estudo, não era capaz de construir como Ivo. Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe ninguém mais culto do que o outro, existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social. Ivo viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, a parreira, a plantação inteira. Ensinou a Ivo que a leitura de um texto é tanto melhor compreendida quanto mais se insere o texto no contexto do autor e do leitor. É dessa relação dialógica entre texto e contexto que Ivo extrai o pretexto para agir. No início e no fim do aprendizado é a práxis de Ivo que importa. Práxis-teoria-práxis, num processo indutivo que torna o educando sujeito histórico.

        Ivo viu a uva e não viu a ave que, de cima, enxerga a parreira e não vê a uva. O que Ivo vê é diferente do que vê a ave. Assim, Paulo Freire ensinou a Ivo um princípio fundamental da epistemologia: a cabeça pesa onde os pés pisam. O mundo desigual pode ser lido pela ótica do opressor ou pela ótica do oprimido. Resulta uma leitura tão diferente uma da outra como entre a visão de Ptolomeu, ao observar o sistema solar com os pés na Terra, e a de Copérnico, ao imaginar-se com os pés no Sol.

        Agora Ivo vê a uva, a parreira e todas as relações sociais que fazem do fruto festa no cálice de vinho, mas já não vê Paulo Freire, que mergulhou no Amor na manhã de 2 de maio. Deixa-nos uma obra inestimável e um testemunho admirável de competência e coerência. Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o título de doutor honoris causa da Universidade de Havana. Ao sentir dolorido seu coração que tanto amou, pediu que eu fosse representá-lo. De passagem marcada para Israel, não me foi possível atendê-lo. Contudo, antes de embarcar, fui rezar com Nita, sua mulher, e os filhos, em torno de seu semblante tranquilo: Paulo via Deus.

Frei Betto.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 23-24.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal diferença entre o método tradicional de alfabetização ("Ivo viu a uva") e a pedagogia de Paulo Freire?

      A principal diferença é que, enquanto o método tradicional foca apenas no reconhecimento das letras e palavras, a pedagogia de Paulo Freire vai além, promovendo a conscientização e a "leitura do mundo". Freire ensinava Ivo a não apenas ver, mas a compreender criticamente as relações sociais e os contextos por trás da palavra.

02 – Como Paulo Freire utiliza o exemplo da "uva" para ensinar sobre a distinção entre natureza e cultura, e o papel do trabalho humano?

      Paulo Freire explica que a uva, em si, é natureza (Criação). No entanto, o trabalho humano de semear, colher, esmagar e transformar a uva em vinho representa a cultura. Esse processo demonstra como o trabalho humaniza a natureza e, ao mesmo tempo, humaniza o homem e a mulher, criando relações sociais.

03 – De que forma Paulo Freire desmistifica a ideia de "ignorância" em relação a pessoas que não sabem ler?

      Paulo Freire ensinou a Ivo que, mesmo sem saber ler, ele não era uma pessoa ignorante, pois possuía outros saberes, como o de erguer uma casa, tijolo a tijolo. Ele defendia que não existe ninguém mais culto do que o outro, mas sim "culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social", valorizando o conhecimento prático e contextual.

04 – Qual o conceito de "práxis" e sua importância no aprendizado, segundo a crônica?

      A "práxis" é a ação com reflexão (práxis-teoria-práxis), um processo indutivo que torna o educando um sujeito histórico. Na crônica, isso significa que a leitura de um texto se torna mais bem compreendida quando o leitor insere o texto no contexto do autor e no seu próprio, extraindo daí o "pretexto para agir", ou seja, para transformar sua realidade.

05 – O que o princípio epistemológico "a cabeça pesa onde os pés pisam" significa no contexto da leitura do mundo?

      Esse princípio significa que a percepção e a compreensão do mundo são influenciadas pela posição e experiência de cada indivíduo. A crônica exemplifica isso comparando a visão da uva por Ivo (que tem os pés no chão da realidade social) com a visão da ave (distanciada), ou a ótica do opressor e do oprimido, e até mesmo as visões de Ptolomeu e Copérnico sobre o sistema solar.

06 – Qual o significado do último parágrafo da crônica, que aborda o falecimento de Paulo Freire?

      O último parágrafo marca a perda física de Paulo Freire, mas também a permanência de seu legado. A menção à sua ida para o "Amor" e a uma "obra inestimável" ressalta a profundidade de sua filosofia e a coerência de sua vida. O fato de ele ter um convite para receber um título honoris causa em Cuba no dia de sua morte, e sua visão de Deus, reforçam a magnitude e a espiritualidade de sua figura.

07 – A crônica utiliza a repetição de "Ivo viu a uva" de forma proposital. Qual o efeito dessa repetição no texto?

      A repetição da frase "Ivo viu a uva" serve como um ponto de partida e um contraponto constante. Inicialmente, ela representa o ensino mecânico da alfabetização. Ao longo da crônica, a frase é retomada para mostrar as camadas de significado e conscientização que Paulo Freire adicionou a essa simples leitura, transformando-a em uma profunda análise da realidade social, cultural e epistemológica.

 

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