Crônica: Reencontro – Fragmento
Drauzio Varella
Numa tarde chuvosa, tocou o telefone na
Carceragem do Oito. Um funcionário atendeu e trouxe o recado em voz baixa para
o seu Pires, o diretor do pavilhão:
– Telefone para o seu Chico, é voz de
moça.
Como o regulamento proíbe ligações
externas para detentos, o diretor foi ver quem era:
– Quem quer falar com o seu Chico? Aqui
não pode atender telefonema de fora!

Do outro lado, ouviu uma voz tímida:
– Meu senhor, me desculpa, eu tenho
vinte anos, uma irmã de dezoito e meu irmão, dezessete. Somos filhos do seu
Chico. A última vez que vi meu pai eu tinha cinco anos, e meu irmão era tão
pequeno que nem lembra o rosto dele. A gente pensava que ele tinha morrido.
Quando eu soube que não, reuni com os irmãos e o pastor da igreja sem minha mãe
saber, e decidimos procurar o pai. Foi muito difícil falar aí, mas hoje
consegui explicar direitinho para a telefonista, que ficou com dó da gente e
permitiu.
A voz vinha embargada de medo. O chefe
mandou chamar seu Chico.
Seu Chico entrou ressabiado na
Carceragem. Deu uma olhada geral; tudo parecia na rotina, os funcionários e
alguns presos dedicados ao trabalho burocrático; seu Pires, de cabelos
grisalhos e um lápis atrás da orelha, lia um relatório na escrivaninha.
De frente para a janela, de costas para
os outros, seu Chico disse alô e ficou mudo, por muito tempo. De onde estava,
seu Pires percebeu as lágrimas nos olhos do prisioneiro.
Por vários dias o diretor do pavilhão
observou o comportamento solitário do outro. Sem entender, os ladrões mantinham
respeitosa distância do líder entristecido. Dias depois seu Chico o procurou em
tom grave:
– Seu Pires, quero pedir um favor que
faço questão de jamais esquecer.
Contou o drama daqueles anos todos, a
vingança da mulher por causa da morte do irmão, as cartas devolvidas, morto
para os filhos, e a conversa com a mais velha.
– Queria que o senhor me autorizasse a
encontrar com eles lá fora, no coreto da Divinéia. Não quero meus filhos dentro
de uma cadeia.
– Assim o senhor me complica. Imagina
se os outros 7 mil me pedem a mesma coisa. Em todo caso, como é uma situação
especial, depois de tantos anos, vou abrir uma exceção, mas o senhor não pode
ficar mais de vinte minutos.
Na tarde marcada, seu Chico dirigiu-se
ao coreto com dois detentos carregando um tapete vermelho, um vaso de flores,
dois litros de guaraná, bolachas, pastéis e uma mesinha com toalha xadrez.
Tudo arrumado no coreto, o
ex-marinheiro, com camisa de manga comprida para esconder a tatuagem, parou com
os braços cruzados sobre o peito forte e esperou.
Passaram-se duas horas e as crianças
não chegaram. Quando seu Pires decidiu, enfim, recolhê-lo, encontrou-o sentado,
cotovelos apoiados nas coxas e a cabeça afundada nas mãos. Os dois homens
voltaram ao pavilhão sem trocar palavra.
Na semana seguinte, no mesmo horário,
novamente a telefonista: os filhos de seu Chico aguardavam na portaria. Tantos
anos no presídio não impediram que seu Pires se emocionasse. Foi ele mesmo dar
a notícia na marcenaria. Encontrou o prisioneiro serrando um banco, a serra
cantando de ensurdecer. Desligou-a da tomada.
–
Seu Chico, se arruma para ver seus filhos.
Quando os olhos incrédulos do detento
fitaram os dele, descobriram um homem terno que seu Chico não conhecia. Por sua
vez, os do diretor captaram no rosto anguloso do ex-marinheiro o olhar da
criança que pegou um balão caído do céu.
Encontraram-se no coreto adornado às
pressas com o tapete vermelho, a mesa, o lanche e o vaso de flores retirados do
altar da Nossa Senhora Aparecida, na capela do pavilhão. As duas mocinhas
tinham tranças e vestidos compridos; o menino, terno azul, gravata e uma
Bíblia. Abraçaram-se e choraram, os quatro, demoradamente. Repetidas vezes.
Trinta minutos depois, o encarregado da
Divinéia aproximou-se para levar seu Chico de volta para o pavilhão. Não teve
coragem de interromper o encontro familiar e retornou da escadinha do coreto. O
mesmo fez seu Pires, duas horas mais tarde.
Meses depois do reencontro, numa
revista incerta, os carcereiros encontraram no xadrez de seu Chico um arsenal
de facas, entre elas uma enorme foice improvisada. A malandragem mais jovem
nunca entendeu por que ele não escondia as armas em outro lugar:
– O velho era sistemático, não adotava
o método moderno, tinha que ser do jeito próprio que ele estava acostumado.
Como punição seu Chico foi transferido
para o interior. [...]
Drauzio Varella.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 200-201.
Entendendo a crônica:
01 – Por que o diretor do
pavilhão, Seu Pires, hesita em permitir que Seu Chico atenda ao telefonema e
encontre seus filhos?
O regulamento da
prisão proíbe ligações externas para detentos, e Seu Pires teme abrir um
precedente caso os outros 7 mil presos façam o mesmo pedido.
02 – Qual é a razão para o
longo afastamento entre Seu Chico e seus filhos?
A mulher de Seu
Chico se vingou dele por causa da morte do irmão, devolvendo as cartas que ele
enviava e fazendo com que os filhos pensassem que ele havia morrido.
03 – Como Seu Chico se prepara
para o primeiro encontro com seus filhos após tantos anos?
Seu Chico prepara
um cenário especial no coreto da Divinéia, com um tapete vermelho, um vaso de
flores, guaraná, bolachas, pastéis e uma mesinha com toalha xadrez.
04 – O que acontece no primeiro
encontro marcado entre Seu Chico e seus filhos?
Os filhos não
aparecem no primeiro encontro marcado, causando grande tristeza e decepção em
Seu Chico.
05 – Como Seu Pires reage ao
saber que os filhos de Seu Chico estão na portaria na semana seguinte?
Seu Pires se
emociona e vai pessoalmente dar a notícia a Seu Chico na marcenaria, mostrando
um lado terno que o detento não conhecia.
06 – Como as filhas e o filho
de Seu Chico se vestem para o reencontro com o pai?
As filhas usam
tranças e vestidos compridos, e o filho veste terno azul, gravata e carrega uma
Bíblia.
07 – O que é encontrado no
xadrez de Seu Chico meses depois do reencontro e qual é a possível explicação
para isso?
Um arsenal de
facas, incluindo uma foice improvisada, é encontrado no xadrez de Seu Chico. A
explicação dada é que ele era "sistemático" e preferia seu próprio
método de esconder as armas, em vez de adotar métodos mais modernos.
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