quarta-feira, 18 de setembro de 2024

CONTO: O BOQUINHA DA NOITE - JAIR VITÓRIA - COM GABARITO

 Conto: O BOQUINHA DA NOITE

             Jair Vitória

        Boca da noite, Boquinha da Noite – um apelido bem dado e bem certo. E que não vinha de coisas estranhas. Gostava tanto de dança que chegava à casa da pagodeira logo à boca da noite. Dançava de dar íngua nas virilhas e debaixo dos braços. Homenzinho já beirando os cinquenta mas que era uma espoleta nas gafieiras. Os rapazes ficavam basbacados com os mandos deles nas rodas de
dança. E as moças gostavam de dançar com ele...

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      Andava ele quase de felicidade malvivida; mas, se sabia disso, não se importava. Pulava o Rio Grande toda vez que havia um baile no Triângulo Mineiro. Dançava até molhar toda a roupa de suor. Saía para o terreiro, torcia a camisa, secava um pouco, depois voltava e, enquanto houvesse o fole falando música e houvesse dama, estava ele sacolejando as cadeiras. Cabelo já empainando. Tinha um cavalo castanho de encher os olhos. E só, também.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – era o Boquinha da Noite enforquilhado no lombo do Castanho, esfregando na sela as carnes do fundo. Tinha também um cachorro pintado que era seu amigo fiel. Meio de bem, meio de mal com a tal felicidade. Por outros tempos, longe, ele tinha ficado de mal com ela. Tinha sido lá nas margens do São Francisco, para as bandas de Xique-Xique. Naquele rincão ele perdeu a bem-amada. Ficou sorumbático um naco de tempo. Andou de bico virado para as coisas do mundo. Mas um dia pegou a trouxa e, sonhando com as terras de São Paulo, apontou o nariz para o sul. E tinha vivido e vivia sozinho – sem mulher. Pererecava e sambangava daqui e dali e achava pedaços de alegria nos bailes de roça. Morava numa espelunca em vivência com outro rapaz solteiro já meio também chegado nos anos. Era o Ninico.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – sempre o Boquinha enforquilhado no Castanho. Queria ver as mulheres-esposas e moças com os olhos brilhantes para o lado dele. O cavalo era bonito, sabia muito bem daquilo. Enganar a si mesmo não era tolice tanta. As mulheres olhavam para o cavalo, mas olhavam para ele
também. Era bom demais dar de possuir um cavalo bonito.

        -- Castanho, vai comer um pouco de capim, que a gente vai mais de noitinha num baile.

        O cavalo começava a pastar o capim-jaraguá bem depressa.

        -- Tigre, sai pra lá, sá bichinho. Esse cachorrinho anda de maus modos, Ninico.

        Ninico pôs o prato vazio no jirau e não falou nada. A noite vinha
pingando orvalho no capinzal.

        Mas apareceu uma mudança e encheu a tapera onde o Boquinha passava em frente aos pacataus, pacataus, pacataus. Família de grande prole. Havia uma moça de beleza pequena e de sorriso malfeito. Entretanto, tinha o corpo de bom feitio. Voz até grossa e de falar áspero.

        -- Sabe o nome da moça que mudou pra tapera do Jorginho, Ninico?

        -- Sei não, inda não. Só vi pelas costas ainda. É bonita?

        -- Bonita até falar chega, pois...

        -- Mas você não pode mais não nem pensar em moça.

        -- Tu é besta, sô; sou homem de cativar mulher demais ainda.

        -- Ora Boquinha, deixa de pensamento bobo.

        -- Pois vou ganhar a Odete pra mim. esse é o nome dela, ODETE, nome doce de fazer arrepio pelo corpo afora.

        -- Você pega com muita coisa que eu vou lá e tomo essa moça de você, Boquinha...

        -- Pensa nem isso não, Ninico... vou ser o dono dela.

        A noite estava no terreiro, pretinha de fazer medo. Boquinha da Noite dormiu com a cabeça cheia de primaveras. No dia seguinte bateu visita na casa da família novata. Castanho estava no terreiro da sala mastigando o freio e o cachorro Tigre foi cheirar a lata de lavagem na cozinha. Boquinha tagarelou com o chefe. Conversou com os rapazotes. Depois ganhou uma xícara de café da moça. Ficou trêmulo e queimou a boca de apuro de beber café pelando. Minou até água dos olhos do homenzinho, mas ele aguentou firme. O que mais fervia era o sangue dele em doidura de amor. Estava de bater a cabeça sem rumo de paixão pela Odete. Ofereceu ajuda que não dispunha à família pobre. O Boquinha da Noite conversou o que não sabia. O chefe da espelunca que era folgado aceitou tudo. Disse que era bom fazer amizade com os vizinhos novos.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – foi-se o Boquinha enforquilhado no arreio do Castanho. Rindo sozinho pela estrada. A Odete tinha gostado dele sim. Dera-lhe a xícara de café mais um sorriso. Agora ele estava em doidura séria de amor. Ninico iria morrer de inveja.

        Os outros rapazes iriam ficar de olhos arregalados ao vê-lo nos bailes com a mão no ombro da Odete. Ela era mais alta que ele, mas tinha nada não.

        Chegou em casa e conversou com os animais, porque o Ninico não estava. Notava toda a beleza da floresta num pedação de natureza que começava do outro lado do córrego. Beleza maior era casar de novo e com uma doninha de dezessete anos. Ele, o dançarino fanático de cabelos empainando. Feliz mais que sabiá em tardes de sol e em manhãs radiosas. Ria de falar chega a si mesmo
e de fazer graça aos animais. Sacudia a cabeça à toa.

        Quando a noite vinha de novo e o Ninico ainda não havia chegado da roça, Boquinha saiu com um frango carijó debaixo do braço. Era o primeiro de uma série de presentes que ele levaria para a família de Odete.

        -- Seo Roque, tá aqui um franguinho que eu trouxe de presente pra vocês. Na Bahia tinha desse costume com o vizinho novo.

        No vaivém da conversa, na luz mortiça da sala, Odete saiu para ajudar a esticar o assunto. O Boquinha da Noite sentiu o sangue ferver de amor. Conversou o que não sabia. O Sr. Roque disse que ele podia ficar na sala conversando com os meninos enquanto ele ia lavar os pés. Odete de amizade com o homenzinho de língua elástica sentou no mesmo banco. Quando ele foi embora, saiu tonto de paixão olhando para as estrelas. O vento sacudia as ramas e a lua começava a nadar no céu. Boquinha enchia os pulmões de ar e o coração de esperança. Decerto ela também tinha gostado dele.

        O Boquinha agora estava dando de toda a noite passar um pedaço de tempo na casa de Odete. Não era nada a casa dos velhos, mas casa da Detinha. Mandou mais frangos de presente e esqueceu um pouco dos pagodes. Odete não ia aos bailes no começo, pois não tinha roupa. Mas apareceram cortes de vestido de presente. O velho Roque viu o gosto do Boquinha da Noite pela filha. Deixou aquilo acontecer como água de regato que corre normalmente. Era
proveitoso, não precisava comprar vestido para a Detinha, ela ganhava do homenzinho atacado de paixão. Boquinha passava de galope três ou quatro vezes por dia em frente à casa da moça.

        -- Ninico, vê se gosta desse pano. Vou dá pra Detinha.

        -- É bonito sim. Mas tira isso da cabeça, sô. A moça tá aí querendo te enganar, sô.

        -- Enganar. Tu que não sabe. Já peguei na mão dela lá embaixo daquela figueirinha e dei até bicota nela. Ela riu, sô.

        -- Então o negócio tá sério mesmo, uai.

        -- Falo com o velho daqui uns tempos.

        Os rapazes da vizinhança abusavam do Boquinha. Achavam que Odete queria apenas presente dele.

        -- A Odete vai casar com Baianinho, seo Roque? – era um desses homens de língua elástica que perguntava ao pai da moça.

        -- Ham – rosnou o Sr. Roque erguendo o cutelo de cortar arroz. – Eu vou dar uma pedrada só, mas a minha pedrada vai ser certeira, eu não erro não, vou dar uma pedrada só; onde já se viu coisa dessa?!

        Roque falava daquilo, mas ficava muito contente quando a filha ganhava um corte de vestido do Boquinha da Noite e a família ganhava um frango para almoçar no domingo.

        Boquinha da Noite estava de deitar e levantar pensando na Detinha. Remediava o tempo com alegrias sonhadas de amor. Mulher mais bonita do mundo!

        Mulher mais bonita do mundo, sim senhor. Passar noites com ela num colchão de palha era viver de verdade. Aquela de outros tempos, noutro lugar, nem menos chegava perto da Detinha. Estava iludido mais que peixe pela isca. Veio a primavera de verdade e as árvores floresceram sem medo. Os ipês já tinham ficado carregadinhos de flor. Era a coisa mais bonita do mundo pensar
na Detinha com os olhos cheios de flor. Cabelo empainando, sem mentira, mas sentindo amor de verdade. Nunca deixava de levar presente à moça. Quando saía da casa da amada, depois de tempão de namoro, tinha vontade de voltar para trás quando chegava no meio do caminho. Os noitibós faziam frejo no charco, mas aquilo não espaventava seu querer de amor. Estava de não dormir direito. Dava agora de trabalhar no roçado do pai da criatura amada só para dar
de mão, sem cobrar nada. No fundo, no fundo mesmo do íntimo, Roque até gostava do Boquinha da Noite. Ele era amigo dos leais que ajudavam sem medir esforço. Mas aquele homenzinho dos cabelos empainando casar com a filha dele, isso era neca. Queria o sérico dele, os presentes. Deixava o Boquinha namorar com a filha só para iludi-lo com momentos de alegria.

        -- Sabe, Ninico, já três vezes fiz ameaça de falar com o velho no meu casamento com a Detinha.

        -- Ela aceita?

        -- Falei com ela ainda não de casamento, mas aceita sim, ora.

        -- Sei não. Acho que ela tá só te iludindo.

        -- Sou eu algum bobo... lá minha cara, sô.

        Passou mais um pedaço de tempo e o povo da redondeza comentava o caso com galhofa. Boquinha da Noite nem queria saber de nada. Era ele e ele mesmo o dono da Detinha. Estava de botar orgulho em si mesmo. Cabeça erguida enforquilhado na sela do Castanho.

        Um dia, voltando da roça por uma vereda onde as formigas passeavam também, o Boquinha ensaiou demoradamente para pedir Detinha em casamento. Com muito esforço o pedido de casamento saiu com voz tremida. Roque ouviu com naturalidade, sem dar importância.

        -- Sei, sei, eu não sou contra nada, Severino – Roque respondeu falando o nome de batismo do Boquinha da Noite.

        Boquinha da Noite pegou o trilho e foi para casa com um sufocamento de felicidade. Contou ao companheiro Ninico o caso que tinha acontecido. Ninico torceu o bigode e até acreditou que o Boquinha da Noite conseguiria mesmo casar com a Detinha. Ficou matutando aquilo muito tempo. O Boquinha da Noite era um homenzinho de língua solta mesmo, dono de uma lábia comprida.
Até ele próprio estava com inveja do Boquinha. Ah, sujeitinho de sorte. Como era possível um homem feito beirando os cinquenta anos casar com uma menina de dezessete?

        Detinha precisava arranjar um namorado de verdade mesmo. Roque falou isso com um risinho sarcástico pendurado nos lábios. Boquinha da Noite pensava que aquilo fosse namoro sério. Mas Detinha precisava de um namorado jovem.

        E foi o que aconteceu num baile. Detinha toda cheirosa e bonita dentro de um vestido presenteado pelo Boquinha. Ele, feliz que nem um passarinho. Naquela noite namoraria à beça. Mas Detinha deu-se de esquerda e olhou firme para outro moço. Depois de pouco tempo trançaram as mãos. Noite alta de amargura. Severino... Boquinha da Noite ficou macambúzio num canto. Desapontado mais que nunca. Detinha rindo à solta com o braço do rapaz enlaçado em sua cintura mesmo com a sanfona calada. Uma provocação ferindo fundo!

        Madrugada de amargura. Boquinha da Noite saiu com palpite de morte no coração. Ninico ficou no pagode. Em casa pegou o Castanho, botou a arreata no lombo do animal, encavalou-se e saiu com palpite de morte já mais crescido ainda. Que presente e que presentes tinha dado à Detinha.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – a madrugada acordando sob os cascos do Castanho na estrada do Rio Grande. E mais vontade de morrer aparecendo. E o rio, cheio de roncar medo. Era uma baixada longa e perigosa. Um palpite sem limite de morte. Nadar ele não sabia, tinha até medo d'água.

        Disparou o Castanho apertando com cegueira as esporas e batendo o chicote com alucinação. Um cavalo bom de rédea e obediente até demais. Foi o cavalo disparado e sem parar caiu no rio até de meio-mergulho. Uma loucura na madrugada. A lua não estava olhando e nem velando por ninguém. A água brava! Foi-se o corpo do homem para não mais ser encontrado. O cavalo amanheceu pastando no varjão, ainda arreado; Detinha chorou umas lágrimas
sentidas quando soube de tudo aquilo, mas depois o tempo apagou o sentimento de culpa.

        Contam os visionários demais, que, pela boquinha da noite, um homem dança no meio do rio, sobre as águas, e uma sanfona soa indefinidamente. Mas o vulto some quando os visionários demais afirmam a visão, e o som da sanfona vai embora quando eles aguçam os ouvidos.

VITÓRIA, Jair. O Boquinha da Noite. In: Cuma-João. 2. ed. São Paulo: Ática, 1978. p. 49-54.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 111-115.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal característica de Boquinha da Noite que dá nome ao conto?

      Sua paixão por dança, que o levava a frequentar bailes até altas horas da noite.

02 – Qual a relação de Boquinha da Noite com o cavalo Castanho?

      O cavalo era seu fiel companheiro, um símbolo de status e um meio de transporte para os bailes.

03 – Como o passado de Boquinha da Noite influencia seu comportamento presente?

      A perda da bem-amada no passado o deixou solitário e em busca constante de afeto, o que o leva a perseguir a paixão por Odete.

04 – Qual o papel de Odete na vida de Boquinha da Noite?

      Odete representa a esperança de amor e felicidade para Boquinha, mas também se torna o objeto de sua obsessão e, posteriormente, a causa de sua tragédia.

05 – Como o ambiente rural e os bailes são retratados no conto?

      O ambiente rural é retratado como um espaço de sociabilidade e onde os bailes são eventos importantes para a comunidade.

06 – Qual a importância da figura de Ninico na narrativa?

      Ninico serve como contraponto a Boquinha, oferecendo uma visão mais realista da situação e tentando alertá-lo sobre as ilusões de Odete.

07 – Como o final do conto pode ser interpretado?

      O final é trágico e ambíguo. Pode ser interpretado como uma punição por sua obsessão, uma libertação de sua dor ou até mesmo uma elevação ao status de lenda local.

08 – Quais os temas principais abordados no conto?

      Amor, paixão, obsessão, ilusão, morte, solidão e a busca por felicidade são alguns dos temas presentes na narrativa.

09 – Qual a importância da linguagem utilizada pelo autor para contar a história?

      A linguagem simples e direta, com expressões populares, contribui para a construção de um universo realista e próximo do universo dos personagens.

10 – Qual a sua opinião sobre a atitude de Boquinha da Noite ao longo da história?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Esta é uma pergunta aberta que incentiva a reflexão individual sobre as ações e motivações do personagem.

 






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