quinta-feira, 26 de setembro de 2024

CONTO: AS CARIDADES ODIOSAS - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: As caridades odiosas

            Clarice Lispector

        Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.

 
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIaVzh7Wwf8GFOtJLnfRiEzSzSuDcnmTigpDENJyxTqeQBSEPAIRuKMbVChws5cJrc1vUj5ot-PHPmCOHDtfIXjxQ-VhAqr2qxFFxneZ6_t-XxHz9yODwDY638JgRwN5-fCbFd8Evm1HiWkbbXTrBNJUS2P7JkTIsK1_sHC6UXxkc90GILnabte0frvKo/s320/DOCE.jpg

        -- Um doce, moça, compre um doce para mim.

        Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

        Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: Um doce para o menino.

        De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você…

        Antes de terminar, o menino disse apontado depressa com o dedo: Aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

        -- Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro.

        Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha bondade.

        -- Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: Aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

        -- Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.

        Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de…E para isso fora necessário um menino magro e escuro…E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.

        E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis.

LISPECTOR, Clarice. As caridades odiosas. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1984. p. 380-3.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 233-4.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal emoção experimentada pela narradora ao longo do conto?

      A narradora experimenta uma gama de emoções complexas, como culpa, vergonha, gratidão e revolta. O encontro com o menino a leva a questionar suas próprias atitudes e a refletir sobre a condição humana.

02 – Como a narradora descreve seus próprios pensamentos antes de encontrar o menino?

      A narradora se descreve como "emaranhada nos meus pensamentos", sugerindo um estado de distração e introspecção. Seus pensamentos são vagos e não são revelados ao leitor.

03 – Qual a atitude inicial da narradora em relação ao pedido do menino?

      Inicialmente, a narradora se sente incomodada com o pedido do menino e demonstra certa relutância em atendê-lo. Ela parece mais preocupada com sua própria imagem e com o que os outros pensarão do que com a necessidade da criança.

04 – Qual o papel do menino na narrativa?

      O menino representa a pobreza, a necessidade e a vulnerabilidade. Seu pedido desperta na narradora uma série de sentimentos conflitantes e a leva a confrontar suas próprias contradições.

05 – Como a narradora descreve o menino?

      A narradora descreve o menino como magro, sujo e com um olhar de "paciente aflição". Sua aparência física contrasta com a opulência da confeitaria e da sociedade em que a narradora vive.

06 – Por que a narradora se sente envergonhada após ajudar o menino?

      A narradora se sente envergonhada porque percebe que seu ato de caridade foi motivado mais pela culpa e pela necessidade de aliviar sua própria consciência do que por um genuíno desejo de ajudar o menino.

07 – Qual a diferença entre a caridade da narradora e a caridade esperada pela sociedade?

      A caridade da narradora é marcada pela culpa e pela vergonha, enquanto a caridade esperada pela sociedade é vista como um ato de bondade e generosidade. A narradora questiona a sinceridade e as motivações por trás dos atos caridosos.

08 – Qual o tema central do conto "As caridades odiosas"?

      O tema central do conto é a hipocrisia da sociedade e a complexidade da natureza humana. A narradora explora a questão da caridade e da compaixão, questionando as motivações que levam as pessoas a ajudar ou a ignorar o sofrimento alheio.

09 – Qual a crítica social presente no conto?

      O conto critica a indiferença e a desigualdade social. A figura do menino faminto em frente a uma confeitaria luxuosa evidencia as disparidades sociais e a falta de empatia de muitas pessoas.

10 – Qual a importância do título "As caridades odiosas"?

      O título reflete a ambivalência da experiência da narradora. A caridade, que deveria ser um ato de bondade, torna-se odiosa quando motivada por sentimentos como culpa e vergonha, em vez de compaixão genuína. O título também sugere que a forma como a caridade é praticada pode ser tão importante quanto o ato em si.

 

 

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