ARTIGO DE OPINIÃO: Envelhecer – com mel ou fel?
Affonso R. Sant'Anna
Conheço algumas pessoas que estão
envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão
ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a
escrita e o gesto. São críticos azedos do mundo. Em vez de críticos, aliás,
estão ficando cítricos sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargas. Com fel
nos olhos.
E alguns desses, no entanto, teriam
tudo para ser o contrário: aparentemente tiveram sucesso em suas atividades.
Maior até do que mereciam. Portanto, a gente pensa: o que querem? Por que essa
bílis ao telefone e nos bares? Por que esse resmungo pelos cantos e esse
sarcasmo público que se pensa humor?
Isto está errado. Errado, não porque
esteja simplesmente errado, mas porque tais pessoas vivem numa infelicidade
abstrusa. E, ademais, dever-se-ia envelhecer maciamente. Nunca aos solavancos.
Nunca aos trancos e barrancos. Nunca como alguém caindo num abismo e se
agarrando nos galhos e pedras, olhando em pânico para o buraco enquanto
despenca. Jamais, também, como quem está se afogando, se asfixiando ou morrendo
numa câmara de gás.
Envelhecer deveria ser como plainar.
Como quem não sofre mais (tanto) com os inevitáveis atritos. Assim como a nave
que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e
vai gastando nenhum-quase combustível, flutuando como uma caravela no mar ou
uma cápsula no cosmos.
Os elefantes, por exemplo, envelhecem
bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, nem da
ruga do tempo, e, quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para
um certo e mesmo lugar – o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente,
com a grandeza existencial só aos sábios permitida.
Os vinhos envelhecem melhor ainda.
Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do
prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e,
porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.
O problema da velhice também se dá com
certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um
envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo.
E, no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira
como nenhuma faca nova.
Vai ver, a natureza deveria ter feito
os homens envelhecerem de modo diferente. Como as facas, digamos, por desgaste,
sim, mas nunca desgastante. Seria a suave solução: a gente devia ir se gastando
até desaparecer sem dor, como quem, caminhando contra o vento, de repente, se
evaporasse. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se, foi
vivendo, vivendo e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.
Affonso Romano de Sant’Anna. Jornal do Brasil, 30 de julho de 1987.
Fonte: livro Língua e
Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª
edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 240-241.
Entendendo o texto:
01
– Qual a principal crítica do autor ao modo como algumas pessoas envelhecem?
O autor critica o
rancor, a amargura e a negatividade que algumas pessoas demonstram ao
envelhecer, em vez de abraçar a sabedoria e a serenidade que a idade pode
trazer.
02
– Qual a imagem ideal de envelhecimento apresentada pelo autor?
A imagem ideal apresentada
é a de um envelhecimento tranquilo, sereno, como o de um elefante caminhando
para a morte com sabedoria ou de um vinho que amadurece e ganha sabor com o
tempo.
03
– Por que o autor compara o envelhecimento ao processo de amadurecimento de um
vinho?
A comparação com
o vinho serve para ilustrar como o envelhecimento pode ser um processo de
aprimoramento, em que a experiência e a maturidade agregam valor e profundidade
à vida.
04
– Qual a função da metáfora da faca no texto?
A metáfora da
faca representa um envelhecimento ativo e útil, em que o objeto se desgasta com
o uso, mas mantém sua função e eficiência.
05
– Qual a diferença entre o envelhecimento comparado a uma faca e o
envelhecimento comparado a um objeto que enferruja?
O envelhecimento
como uma faca representa um processo de desgaste gradual, mas que mantém a
utilidade do objeto, enquanto o envelhecimento como um objeto que enferruja
simboliza a perda de função e a deterioração.
06
– Qual a visão de mundo transmitida pelo autor através do texto?
O autor transmite uma visão
otimista e serena sobre a vida, defendendo a ideia de que o envelhecimento pode
ser uma fase rica em experiências e aprendizados.
07
– Qual a importância da aceitação da morte na visão do autor sobre o
envelhecimento?
A aceitação da
morte é fundamental para um envelhecimento tranquilo e sereno, pois permite que
a pessoa viva o presente de forma plena e sem medos.
08
– Quais os principais recursos linguísticos utilizados pelo autor para
construir sua argumentação?
O autor utiliza
metáforas, comparações e exemplos para tornar sua argumentação mais clara e
persuasiva.
09
– Qual a estrutura argumentativa do texto?
O texto apresenta
uma estrutura argumentativa clara, com a apresentação de uma tese inicial (a
importância de envelhecer bem), seguida de exemplos e argumentos que a
sustentam.
10
– Qual o efeito da repetição de palavras e expressões no texto?
A repetição de palavras e
expressões como "envelhecer", "sábio" e "amor"
reforça a ideia central do texto e cria um ritmo que envolve o leitor.
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