Crônica: O índio em perigo
Mais alguns minutos, naquela andadura
de cavalo marchadeiro.
De tanto olhar para a pista na vereda,
eu já podia distinguir muito bem os sinais do índio e os cascos dos cavalos,
quase que praticamente uns em cima dos outros. Dava até mesmo para perceber que
o índio ia um pouco na frente, por causa de seus pés que apareciam quase
desfeitos pelas ferraduras.
--- O índio já está fraquejando, Zé
Amâncio? – tornei a perguntar.
--- Qual nada, o bicho é duro na queda. Tenho
até a impressão de que ele está se distanciando mais ainda.
--- É mesmo? Tem certeza? – perguntei
satisfeito.
--- É quase certo, Gavião Vaqueiro: as
pegadas do índio estão mais fracas.
--- Não é sinal de cansaço, de esmorecimento?
--- Não, é porque ele está mais longe,
ou está mais leve.
Zé Amâncio ainda tinha uma dúvida.
--- Pode ser que tenha deixado de lado
algum carregamento que levava.
--- Mantimento? – perguntei.
--- Pode ser.
Ficamos em silêncio e continuamos no
mesmo ritmo.
Na trilha, os rastos se repetiam, e eu
até mesmo já podia notar que os pés do índio pisavam com mais leveza, embora os
sulcos dos calcanhares continuassem mais fortes.
Será que Zé Amâncio está lendo os
sinais direito? Era a minha grande dúvida, porque quem tinha fama de rastreador
na fazenda era João Vermelho, o falecido.
--- Por que o índio não se esconde? –
indaguei.
--- Ele sabe que é pior. Em cima de uma
árvore ou detrás de algum tronco, numa moita, fica sem proteção alguma. Se
fossem dois ou três índios, poderiam armar uma emboscada para os jagunços, mas
este um está sozinho. Mas lhe digo uma coisa, Gavião Vaqueiro.
--- O que é, Zé Amâncio?
--- Pela insistência em correr sempre
na mesma direção, e deixando assim sua pista clara, ele pode estar atraindo os
homens para algum lugar.
--- Será, Zé Amâncio?
--- Este índio não é bobo, garanto. Tem
a determinação de um pajé e o sangue de uma fera.
--- Ele não cansa nem nada? – eu
continuava apreensivo, temendo que a qualquer momento acontecesse o pior.
--- Olhe! – Zé Amâncio apontou par
alguma coisa ao lado do caminho, perto de umas moitas.
Ele se aproximou com cuidado, eu mais
atrás, a carabina engatilhada, protegendo o vaqueiro.
--- É o mantimento do índio – ele
disse. – Um paneiro de farinha, e dos grandes.
Cheguei mais perto. Zé Amâncio disse:
--- Era a sua comida para a fuga. Como
estava pesando muito no seu ombro, ele jogou fora.
O vaqueiro ajeitou o paneiro no burro
de carga e continuamos.
Os rastos ainda eram os mesmos e na
mesma direção.
--- Alguma coisa tem que acontecer logo
– disse Zé Amâncio. – Ninguém aguenta tanto tempo correndo na frente de três
cavalos. É certo que os homens não podem ir mais depressa, por causa deste
terreno esburacado e enlameado, mas acho que o velho índio já correu demais.
--- Não estará indo para a aldeia dele?
– perguntei. – Para pedir socorro?
--- Nenhum índio em perigo faz isso. Só
o branco bom e conhecido deles pode entrar onde moram. Mesmo tem as mulheres e
crianças que podem sair feridas ou mortas num tiroteio.
--- Tem razão, Zé Amâncio.
O sol estava muito quente em cima da
nossa cabeça. O calor que subia do chão úmido ardia nos meus olhos. Não sabia
quanto, mas há muito tempo a gente estava naquela perseguição. Então alguma
coisa clareou dentro de mim: eu precisava salvar aquele índio, como se devesse
isso a Paricá. Era uma questão de honra, sabia. E também porque admirava aquela
gente perseguida e humilhada pelo branco invasor de suas terras.
Minha ânsia aumentava cada vez mais, eu
vendo a todo instante as marcas dos pés daquele índio fugitivo – ele corria
para a liberdade e para a vida, sem um minuto de descanso.
O velho feiticeiro.
São Paulo, Melhoramentos, 1980. p. 20-23.
Fonte:
Português – Linguagem & Participação, 5ª Série – MESQUITA, Roberto
Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1999, p. 150-2.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo.
·
Andadura: maneira de andar.
·
Marchadeiro: cavalo de passo largo e compassado.
·
Vereda: caminho.
·
Esmorecimento: enfraquecimento, desânimo.
·
Rastreador: aquele que segue rastros.
·
Insistência: perseverança.
·
Paneiro: cesto de vime.
·
Paricá: índio a quem Gavião Vaqueiro devia favores.
·
Ânsia: aflição, angústia.
02 – Procure o significado
da expressão duro na queda e
escreva uma frase empregando-a.
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Quem é o narrador do
texto? Que tipo de narrador é esse?
O narrador é a
personagem Gavião Vaqueiro, um narrador em primeira pessoa.
04 – Quais as principais
características do espaço onde a história acontece?
O espaço do texto
é o campo, terra dos índios invadida pelos brancos. É um espaço vasto, no meio
da floresta, que permite ao índio fugir e ao mesmo tempo se isolar.
05 – Por que o índio está
fugindo?
Ele está fugindo
dos jagunços que desejam mata-lo.
06 – Algumas da qualidades
do índio são destacadas sem que ele apareça diretamente no texto. Quais são
elas?
Ele é valente e esperto e tem senso de
responsabilidade para com a tribo.
07 – Por que um índio em
perigo nunca volta à sua aldeia?
Porque eles só
revelam o lugar onde moram aos amigos; não querem colocar em risco a vida das
mulheres e das crianças.
08 – Como se comportam
Gavião Vermelho e Zé Amâncio em relação ao índio? Por que?
Eles queriam
ajudar o índio a salvar-se por admirarem o povo indígena e porque, por uma
questão de honra, Gavião Vaqueiro devia isso a Paricá.
09 – O que o autor do texto
quer nos transmitir através das palavras de Gavião Vaqueiro a respeito dos
conflitos entre brancos e índios?
O branco persegue
e humilha os índios. Invade suas terras e se apropria delas, deixando-os sem
opção alguma.
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