Conto: O alfaiate valentão
Jacob e Wilhelm Grim
Era uma vez um alfaiate que estava
sentado à janela da sua casa, costurando um paletó. Nisto ouviu uma vendedora de
doces que passava gritando: “Doces! Pudim especial!”
O alfaiate espichou a cabeça para fora
da janela e chamou-a. A mulher subiu os três degraus da casa do homenzinho e descobriu
o tabuleiro para que ele se servisse à vontade.
-- Quero cinquenta gramas deste pudim,
disse o alfaiate.
A mulher pesou os cinquenta gramas,
recebeu o dinheiro e lá se foi a resmungar por ter perdido tempo com um freguês
tão miserável.
-- Agora, exclamou o alfaiate lambendo
os beiços, vou regalar-me. Comerei este pudim com pão, para render, mas
primeiro tenho que acabar este paletó.
Assim dizendo colocou o pedacinho de
pudim ao ado do pão e pôs-se a costurar com tamanha pressa que os pontos até
pareciam alinhavo. Enquanto isso o cheiro do pudim atraiu um bom número de
moscas que vieram sentar-se nele, muito gulosas.
-- Fora daqui, gatuninhas! – Gritou o
alfaiate ao percebe-las. Ninguém as convidou para este banquete.
As moscas fugiram, mas logo depois
voltaram e em maior número. Danado da vida, o alfaiate deu com a costura em
cima delas matando sete.
-- Sim, senhor! Exclamou ele para si
próprio, admirado da sua bravura. Sou um valente sem igual Duma só pancada mato
sete! Vou escrever numa faixa de pano e andar com ela pela rua. Toda a gente
vai tremer de medo de mim.
Escreveu estas palavras na faixa: MATO
SETE DUMA VEZ, atou a faixa à cintura e preparou-se para correr mundo. Um homem
valente como ele, que matava sete duma vez, não podia continuar o humilde
alfaiate que tinha sido até ali. [...].
[...] Andou, andou até que foi parar no
parque dum palácio real e, como estivesse cansado da caminhada, resolveu
deitar-se na grama. Enquanto dormia, várias pessoas apareceram por ali e leram
os dizeres da faixa: “Sete duma vez”. Deve ser um grande herói, pensaram
consigo, e foram correndo contar o caso ao rei. Seria um aliado precioso nas
guerras. O rei ouviu o caso, pensou uns instantes e por fim mandou que seus
ministros convidassem o herói para ficar a serviço do reino. Os ministros
esperaram com todo o respeito que ele acordasse e então fizeram o convite.
-- Pois foi para isso mesmo que cheguei
até aqui, respondeu o alfaiate. Vim oferecer meus préstimos a este poderoso
rei. Diga que aceito a proposta com muito gosto.
O rei mostrou-se muito contente.
Deu-lhe uma das mais belas casas do reino para morar e ofereceu-lhe uma grande
festa.
Isto encheu de inveja os ministros –
inveja e medo.
-- Muito perigoso este homem aqui,
disseram entre si. Caso brigue conosco, que será de nós, já que ele mata sete
duma vez? E foram queixar-se ao rei.
-- Majestade, disseram os ministros,
não podemos viver na companhia dum homem tão perigoso. O vosso ministério é
composto de sete ministros e como ele mata sete duma só pancada, poderá dar
cabo de todo o ministério num instantinho.
O rei ficou muito triste. Não queria
perder os seus ministros, mas também não tinha coragem de demitir o alfaiate,
pois quem mata sete de uma pancada pode matar sete mais um e esse um pode ser
um rei. Em vista disso começou a pensar no meio de se livrar dum homem tão
perigoso. Por fim mandou chama-lo e disse:
-- Já que você é tão valente quero que
me faça uma coisa. Na floresta existem dois gigantes que cometem os maiores
horrores, roubando, matando e incendiando tudo quanto querem sem que meus
soldados tenham ânimo de enfrenta-los. Se conseguir libertar o reino desses
monstros darei a você a minha filha em casamento e, como dote, metade dos meus
domínios. Cem homens a cavalo irão com você atacar os gigantes.
-- Dispenso os cem homens a cavalo,
respondeu o alfaiate, contentíssimo por ter uma grande façanha a realizar. Eu
mato sete duma só pancada. Os gigantes são dois. Logo para dar cabo deles só
preciso de meia pancada. Os homens a cavalo poderão acompanhar-me apenas para assistir
à matança dos gigantes.
Assim foi feito. O alfaiate e os cem
homens se dirigiram para a floresta. Lá chegados ficaram estes num certo ponto
e o herói dirigiu-se sozinho para a caverna dos gigantes. Encontrou-os dormindo
um ao lado do outro, debaixo duma grande árvore que existia na entrada da
caverna. Sem ser pressentido, o alfaiate trepou à árvore e ficou bem
escondidinho entre as folhas de modo que pudesse atirar pedras na cara dos
dorminhocos. E começou a atirar uma por uma, com toda a força as pedras que
levara num alforje. As primeiras não serviram nem para acordar os brutos, mas
uma que acertou no olho dum deles o fez despertar.
-- Não gosto de brincadeiras, ouviu?
disse o gigante pegando um tapa no companheiro, certo de que fora este o autor
da pedrada.
-- Você está sonhando, disse o
companheiro. Não toquei em você nem com a ponta do dedo.
E ajeitaram-se ambos para continuar a
soneca. Minutos depois o alfaiate arrumou-lhe nova pedra no olho com mais força
ainda.
-- Que significa isto? berrou o gigante
furioso. Continua você a esbarrar em mim?
-- Não esbarrei coisa nenhuma,
respondeu o companheiro também danado. Não me aborreça.
Dormiram novamente. O alfaiate, então,
jogou a pedra maior de todas. Sentindo o choque, o gigante ergue-se, tomado dum
acesso de cólera terrível, e certo de que o causador da brincadeira tinha sido
o companheiro, atirou-se a ele de murros e pontapés. A luta foi tremenda.
Várias árvores foram arrancadas para que os troncos servissem de armas. Depois
de alguns minutos, os dois gigantes se haviam estraçalhado mutuamente. O
alfaiate então desceu da árvore, enfiou a sua espada no peito de cada um e foi
em procura dos cem cavaleiros.
-- Pronto! disse ao chegar. Já liquidei
com os dois malvados. A luta foi terrível. Eles chegaram a arrancar árvores
para lutar comigo, como vocês poderão ver. Mas foi tudo inútil. Contra quem
mata sete dum golpe, dois não podem...
-- E nem sequer ficou ferido?
perguntaram os cavaleiros, muitos espantados.
-- Eles não puderam tocar em mim. Nem
um arranhãozinho...
Os cem cavaleiros verificaram com os
seus próprios olhos que os gigantes estavam mortos e bem mortos, cada um deles
com uma estocada no peito. E voltaram no galope para contar ao rei o grande
acontecimento.
O rei [...] não teve remédio: deu sua
filha em casamento ao alfaiate, sem saber que ele era um simples alfaiate. Se o
soubesse, com certeza mandaria que o matassem, porque era um rei muito orgulhoso.
Houve grandes festas, sendo o feliz
herói coroado rei de metade do velho reino. Tempos mais tarde a jovem rainha
ouviu seu esposo falar enquanto dormia.
-- Anda, rapaz! dizia ele tonto.
Alinhava logo esse colete senão te prego com o metro na cabeça.
Ficou desconfiada. Pensou muito naquilo
e por fim convenceu-se de que se casara com um simples alfaiate. Foi correndo
contar ao rei a sua descoberta. O rei danou com o desaforo e armou um plano.
-- Deixe a porta aberta de noite,
recomendou ele. Quando o patife estiver no melhor do sono, meus criados
entrarão no quarto e o amarrarão com boas cordas. Em seguida o botaremos num
navio que o vá soltar a mil léguas daqui.
A rainha alegrou-se com o plano do rei
e na sua alegria não percebeu que um pequeno pajem estava ouvindo a conversa. O
diabinho correu logo a contar ao alfaiate toda a conversa pilhada.
-- Não se assuste, disse o alfaiate. Eu
darei uma lição a essa gente.
Nessa mesma noite o alfaiate em vez de dormir
fingiu que dormia e pode ver sua esposa erguer-se da cama, sem fazer o menor
barulho, para ir destrancar a porta. Logo em seguida os criados do rei
apareceram, na ponta dos pés.
Assim que os viu dentro do quarto, o
matreiro alfaiate fingiu que estava sonhado e murmurou de modo que todos
ouvissem muito bem:
-- Anda, rapaz! alinhava logo esse
colete senão te dou com o metro na cabeça. Já matei sete duma vez, já dei cabo
de dois monstruosos gigantes [...] e portanto não tenho medo nenhum dos que
estão entrando neste quarto.
Foi água na fervura. Os criados do rei
ficaram com as pernas moles e trataram de retirar-se, bem na pontinha dos pés.
A lição foi boa. Nunca mais o rei, nem a rainha, nem ninguém mexeu com o
alfaiate, que pode reinar toda a sua vida no seu pedaço de reino e sonhar
livremente com as antigas tesouras e metros e paletós e coletes, sem que
ninguém se animasse a conspirar contra a vida dele.
Contos de Grimm. Trad. e
adapt. de Monteiro Lobato. São Paulo, Brasiliense, 1975.
Fonte: Livro – Ler,
entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p. 48-54.
Entendendo o conto:
01 – Você acha que histórias
como a do alfaiate valentão foram feitas só para crianças? Ou será que os
adultos também se divertem com elas?
Resposta pessoal
do aluno.
02 – Vamos pensar um pouco
sobre a profissão de alfaiate: o que faz um alfaiate? O mesmo que um
costureiro?
O alfaiate
confecciona roupas para homens. O costureiro faz roupas para mulheres.
03 – Localize no texto
trechos que caracterizam o alfaiate, conforme os adjetivos dados:
a)
Pequeno: “A mulher subiu os três degraus da casa do homenzinho [...]”.
b)
Pobre: “[...] e lá se foi a resmungar por ter perdido tempo com um
freguês tão miserável”. / “[...] não podia continuar o humilde alfaiate que
tinha sido até ali”.
04 – Leia: “—Sim senhor! exclamou ele para si próprio,
admirado da sua bravura. Sou um valente sem igual”.
a)
Para você, o que é um ato de bravura?
Resposta pessoal do aluno.
b)
Por que o alfaiate se julgava valente?
Ele se julgava valente porque matara sete moscas de uma vez.
c)
Ele de fato foi valente?
Não, matar sete moscas não pode ser considerado sinal de valentia.
05 – Quando o alfaiate
chegou ao reino, houve um mal-entendido. O que as pessoas pensaram ao ler na
faixa “mato sete duma vez”?
As pessoas
pensaram que ele fosse um homem muito corajoso, que havia matado sete monstros,
ou sete gigantes, ou sete bandidos de uma só vez, daí o mal-entendido.
06 – Por que o rei deu uma
tarefa tão difícil ao alfaiate? Justifique com alguma passagem do texto.
Porque ele
pensava que o pequeno alfaiate era um homem muito perigoso, capaz de mata-lo.
“[...] pois quem mata sete de uma pancada pode matar sete mais um e esse um
pode ser um rei”. Em vista disso começou a pensar no meio de se livrar dum
homem tão perigoso.
07 – Para entender melhor o
texto, copie em seu caderno as frases abaixo, substituindo os termos destacados
por outros de sentido semelhante. Faça as alterações necessárias e, se for
precioso, use o dicionário.
a)
“Agora, exclamou o alfaiate lambendo os beiços, vou regalar-me”.
Lábios/sentir um grande prazer, alegrar-me.
b)
“Fora daqui, gatuninhas!”
Ladras, ladroninhas.
c)
“Vim oferecer meus préstimos a este poderoso rei”.
Serviços.
d)
“Sem ser pressentido,
o alfaiate trepou à árvore e ficou bem escondidinho [...]”.
Visto, observado.
e)
“E começou a atirar uma por uma, com toda a
força as pedras que levara num alforje”.
Saco duplo, espécie de sacola.
f)
“[...] os gigantes estavam mortos e bem
mortos, cada um deles com uma estocada
no peito [...]”.
Golpe com a ponta de uma espada.
g)
“O diabinho correu logo a contar ao alfaiate
toda a conversa pilhada”.
Roubada, escutada às escondidas, apanhada de surpresa.
h)
“[...] o matreiro
alfaiate fingiu que estava sonhando [...]”.
Astuto, sabido.
08 – Neste conto há muitos
trechos típicos da linguagem formal.
a)
Retire do sexto parágrafo do texto expressões
que você considera formais e copie-as no seu caderno.
“Pôs-se a costurar”, “tamanha pressa”, “vieram sentar-se nele”.
b)
Passe essas expressões para uma linguagem
informal.
Começou a costurar, tanta (muita) pressa, vieram e se sentaram nele.
09 – Releia: “O diabinho correu logo a contar ao
alfaiate toda a conversa pilhada”.
a)
Foi mesmo um diabinho que contou ao alfaiate
toda a conversa do rei com a filha?
Não, foi um pajem.
b)
Como chamamos a figura de linguagem em que
uma palavra não aparece no seu sentido original, mas sim num sentido figurado?
Metáfora.
10 – É possível dizer quando
aconteceu a história do alfaiate valentão?
Há alguma expressão que marque o tempo?
Não, o texto
começa com “Era uma vez”, expressão que não delimita o tempo.
11 – Você acredita que
existam gigantes e outros seres invencíveis?
Resposta pessoal
do aluno.
12 – Os contos populares
apresentam características bem definidas. Veja algumas delas e responda às
questões:
a)
O herói tem um objetivo a cumprir, chamado desígnio. Qual era o objetivo do
alfaiate ao fazer a faixa com dizeres “Mato sete duma vez”?
Ele queria que todos o temessem, queria ser visto como herói.
b)
O rei faz uma viagem. Isso ocorre com o alfaiate?
Sim, o alfaiate resolveu correr o mundo.
c)
O herói tem obstáculos para superar ou tarefas para cumprir. Qual foi a tarefa do alfaiate?
Derrotar os gigantes.
d)
O herói sempre conta com a mediação, isto é, com algum tipo
de ajuda, que pode vir do próprio homem, da natureza ou mesmo do sobrenatural.
Quem ou o que colaborou para que o alfaiate vencesse todos os obstáculos?
Sua própria esperteza.
e)
O herói conquista
seus objetivos. O alfaiate alcançou seu objetivo?
Sim, ele se tornou herói, casou-se com a princesa e virou rei.
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