Reportagem: Jovens vivem fascínio da
primeira vez
É a emoção de quem nunca tinha
visto mar, cinema, teatro, shopping ou computador
Gláucia
Leal
Aos 19 anos, Regina descobriu que o mar
parece não ter fim. Beatriz, de 16, concluiu que o tempo passa de forma diferente
em um palco de teatro. Sidnei, de 18 anos, se surpreendeu ao entrar em um
cinema pela primeira vez e constatar que a tela de exibição de filmes é dezenas
de vezes maior que a de uma televisão. E Fábio, de 15 anos, nunca havia
imaginado que em um shopping center houvesse desde banheiros até cães à venda.
Experiências aparentemente corriqueiras
para muitas pessoas que vivem em metrópoles ainda podem ser inéditas e deixar
jovens que moram em São Paulo há pelo menos quatro anos com frio na barriga,
olhos arregalados e coração disparado diante da novidade.
Durante uma semana, a reportagem do
Estado acompanhou a aventura de sete jovens estudantes e trabalhadores, com
idades entre 15 e 20 anos. Moradores de periferia da cidade, eles nunca haviam
vivido a emoção de ir ao cinema ou ao teatro, jamais tinham entrado em um
shopping nem se aproximado de um computador ou experimentado uma pizza.
“Meu Deus, o mar é muito maior e bem
mais lindo do que e podia imaginar”, exclamava a baiana Regina dos Santos
Souza, com os braços esticados, como se quisesse abraçar as ondas da Praia de
Pitangueiras, no Guarujá. Ainda em São Paulo, era difícil esconder a ansiedade.
“Meu sonho é ver o mar de pertinho, mas algumas vezes a gente vai vivendo e se
esquece dos sonhos.” Há quatro anos ela mora em São Paulo e até poucos dias
antes de seu bebê nascer, há um mês, Regina dava aulas de reforço para
estudantes primários.
Ela já trabalhou também como atendente
de público na Telecomunicações de São Paulo (Telesp) e vendedora em um bazar,
no jardim Rosana, próximo de sua casa. Há cinco dias, a convite do Estado, ela
se deu o direito de virar criança diante do mar.
Depois de um momento de indecisão – “o
mar não vai me puxar?” –, ela só teve tempo de tirar os sapatos. Esqueceu-se do
vento gelado, do frio, da calça jeans e da camisa de mangas longas que vestia e
correu para a água. Pulou, gargalhou e mergulhou do jeito que estava. Só depois
lembrou-se de pôr roupa de banho.
“Quero que meu filho tenha o que eu não
tive e voou leva-lo para ver o mar assim que dizer um ano”, prometeu a si
mesma, ao sair da água. Desde que deixou o litoral, entretanto, uma dúvida a
atormenta: “Onde fica o fim do mar?”
ESTUDOS
– Entre os planos de Regina, que mora com o marido e o filho no Jardim Casa
Branca, na Zona Sul, está o retorno aos estudos, interrompidos no segundo ano
do colegial. Ela pretende se formar em magistério. “Tenho jeito para dar aulas,
mas quero aprender mais”.
Outro objetivo de Regina é comprar uma
casa. Atualmente o casal aluga três cômodos de fundos. “Sou ambiciosa e saí da
minha cidade, Santa Luz, porque queria viver em um lugar onde eu pudesse ter
oportunidade, onde tivesse coisas para ver e conhecer”, esclareceu. “Acho que
tem coisas que estão escritas nas estrelas”, afirmou. “Eu sabia que iria ver o
mar, mas nem desconfiava que seria logo”.
Apesar de apostar nos desígnios da
sorte, Regina tem, às vezes, problemas para se localizar em seu próprio bairro.
Acostumada a andar só de ônibus, tem dificuldades para achar a rua onde mora há
mais de um ano, quando precisa voltar de carro para casa. “Me confundo em
alguns lugares.”
Teatro
e cinema são novidade para adolescentes
Beatriz e Sidnei ficaram ansiosos com
a possibilidade de assistir à peça e filme
Até poucos minutos antes do início da peça
Pérola, protagonizada pelos atores Vera Holtz, Sérgio Mamberti e Anna Aguiar,
no Teatro Jardel Filho, a estudante e secretária de uma empresa de franquias,
Beatriz Cristina Guerato, de 16 anos, não fazia a menor ideia do que veria no
palco. Paulistana, ela mora com a mãe e dois irmãos mais velhos em Pirituba, na
Zona Norte. Nunca havia entrado em um teatro. “Nem quando eu era criança”,
afirmou Beatriz.
Ela tem planos de se mudar com a
família para Chicago, nos Estados Unidos, e se formar secretária executiva.
“Sei que os atores vão representar, mas prefiro não criar expectativas, assim
recebo bem o que vier.”
A postura racional, entretanto, não
impediu que a emoção surgisse. “Estou com frio na barriga”, confidenciou ao
ouvir a campainha. Antes que as luzes se apagassem, porém, veio uma breve
decepção: uma tela de vídeo desceu com nomes de artistas e patrocinadores
projetados. Para Beatriz foi um susto. “Não vai ser ao vivo?”, inquietou-se.
Ao saber que em breve os atores
estariam em cena, não descolou os olhos do palco. Ao final do espetáculo,
permaneceu alguns instantes em silêncio. Quando falou, foi categórica:
“A-do-rei!”.
Beatriz esperou pelos atores ao final
da peça para cumprimenta-los e ficou sabendo que até pessoas famosas podem
começar tarde suas incursões pela dramaturgia. "Eu só fui ao teatro depois
dos 20 anos”, contou Vera Holtz.
TELEVISÃO – O
estudante de eletrônica básica Sidnei Nunes Cardoso morou, por quase dois anos,
a pouco minutos de várias salas de cinema, no Morumbi, quando seu padrasto era
zelador de um prédio. Ainda assim, nunca lhe ocorreu entrar em uma sala de
exibição. Atualmente, ele mora com a mãe e dois irmãos, de 19 e 8 anos, em
Embu, mas se desloca praticamente todos os dias para São Paulo.
“O problema não é a distância, a
questão é que eu não me acostumei a sair da minha casa para ver filmes”, disse.
“As pessoas com quem eu converso não pensam muito em ir ao cinema, por isso
quando quero assistir a algum filme ligo a televisão e pronto.
Mas acompanhando as aventuras de um
grupo de cientistas que estudam tornados no filme Twister, Sidnei descobriu
outras possibilidades. Ao final da exibição, ele só queria saber quanto custava
a entrada, onde havia outras salas e como deveria procurar, em jornais, a lista
dos filmes em cartaz. Algumas coisas ele já sabia. “Desconfiava que iam apagar
a luz e os atores falavam em outra língua.” (G. L.).
O Estado de São
Paulo, 28 jul. 1996.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 08-11.
Entendendo a reportagem:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Concluiu:
chegou ao final de um raciocínio.
·
Constatar: perceber.
·
Corriqueiras: comuns, cotidianas.
·
Metrópoles: grandes cidades.
·
Inéditas: ainda não realizadas.
·
Desígnios: desejos.
·
Protagonizada: vivida, representada.
·
Expectativa: aguardo de alguma coisa que está para acontecer.
·
Postura
racional: atitude de acordo com a razão.
·
Dramaturgia: arte dramática ou de compor peças teatrais.
·
Tornados: turbilhões de vento, quase sempre intensos e destrutivos.
02 – Qual o assunto do
texto?
Convidados por
jornalistas, três jovens passam por experiências inéditas.
03 – O que as personagens
apresentam em comum?
São jovens
adolescentes que moram na periferia de São Paulo e são trabalhadores. Todos os
três estão vivendo pela primeira vez uma experiência de lazer.
04 – Como você entendeu o
segundo parágrafo do texto?
Muitos jovens
moradores de São Paulo ainda não viveram experiências que são comuns para
outras pessoas.
05 – Como foi a experiência
de ver o mar para Regina dos Santos? Quais foram os sentimentos que ela
experimentou?
Foi uma
experiência emocionante. Ela sentiu medo, alegria, espanto.
06 – O que a leitura nos
permite saber sobre Regina dos Santos?
É uma moça casada
e cheia de sonhos, mãe de um bebê. Tem certa dificuldade em orientar-se no
espaço físico. Trabalha muito e é ambiciosa.
07 – Como foi para Beatriz
Cristina Guerato a experiência de assistir à primeira peça? Quais foram as
emoções que ela experimentou?
Ela sentiu frio na barriga e gostou muito
da peça.
08 – O convite dos
jornalistas propiciou grandes surpresas aos jovens. Aponte o que surpreendeu
cada um deles de modo especial.
Regina: a
extensão do mar; Beatriz: a descoberta de que mesmo pessoas famosas podem ter
tido contato tardio com a dramaturgia; Sidnei: a constatação de que a tela do
cinema é dezenas de vezes maior que a de uma televisão; Fábio: a descoberta da
variedade de produtos oferecidos em um shopping.
09 – Releia os dois parágrafos
do texto. Qual o tempo verbal predominante em cada um? Por que foram feitas
essas escolhas?
1° parágrafo:
pretérito perfeito do indicativo, adequado para narrar ações já realizadas
pelas personagens;
2° parágrafo: presente do indicativo, próprio
para falar de ações habituais no presente dos paulistanos em geral.