Crônica: INSÔNIA
Adriana Falcão
Considerando que oito horas de sono são
o ideal para uma pessoa, quase oito horas de sono devem ser quase o ideal. É
lógico. Então, se eu conseguir dormir até a meia-noite e acordar amanhã às sete
e vinte, está ótimo. Ou quase ótimo. Vou acordar feliz, bem-disposta, capaz,
praticamente recuperada. Se eu dormir até a meia-noite. Ainda tenho cinco
minutos. Cinco minutos é tempo de sobra pra uma pessoa pegar no sono, quer ver?
Vou pegar no sono em cinco minutos. Boa noite. Estou quase dormindo. Quase.
Dormi. Não dormi? Acho que não. Mas vou dormir agora. Senão os pensamentos
começam a entrar na minha cabeça e aí, minha filha, nunca mais. Um pensamento
puxa outro, que puxa outro, parece até que pensamento tem corda. O negócio é
não deixar entrar o primeiro, tá vendo? Foi só começar a pensar em não
pensar e quando eu vi já estava pensando em pensamento com corda. E de corda
pra acorda é um pulo. E é melhor eu não pensar em acordar senão eu não consigo
dormir. E eu preciso estar inteira amanhã. Ou vai ser uma tragédia. Calma,
também não é assim. Ainda tenho cinco minutos pra pegar no sono. Se bem que
agora já não faltam mais cinco, quantos minutos se passaram até agora? Esquece
e dorme. Boa noite. Dormi. Não dormi? Se eu tivesse dormido não estaria
pensando se dormi ou não dormi. Estaria dormindo. Isso prova que não dormi
ainda. Amanhã vou acordar um lixo. E tenho um dia dificílimo pela frente, com
uma lista enorme de coisas pra resolver: vinte minutos de meditação ao acordar,
ginástica às oito, reunião às dez em ponto, consertar o carburador do carro,
desmarcar o dentista, comprar tinta pra impressora, ligar pro Geraldo, esquece
o Geraldo e dorme. Você já trancou a porta, já fechou o gás, já tomou seu
banho, já foi à cozinha, já bebeu seu leitinho quente, já pensou em quantas
calorias tem um copo de leite, você já se preocupou demais por hoje. Você
precisa dormir. Isso. Eu preciso dormir. Então, boa noite. Tem certeza de que eu
tranquei a porta? Tranquei, sim. Fechou o gás? Claro. Não lembra? Logo depois
do banho. Fechei o gás, fui à cozinha, bebi meu leitinho quente, quantas
calorias tem um copo de leite? Eu não devia ter botado açúcar pra depois não
ficar culpada. Depois eu fico culpada. Agora eu vou dormir. Já me preocupei
demais por hoje, e amanhã, não, eu não vou pensar no que tenho de fazer amanhã.
Tenho um dia dificílimo pela frente, com uma lista de coisas pra resolver, e se
eu não dormir até meia-noite e meia, uma hora, vou terminar pulando a
meditação. É uma opção. Faço ginástica às oito e de lá vou direto pra reunião
às dez em ponto no Centro, vou de carro ou vou de táxi? Amanhã você resolve
isso. Certo. Eu resolvo isso amanhã. Boa noite. Mas eu já tenho coisas demais pra
resolver amanhã, assim não vai dar tempo. Será que não é melhor ir pro Centro
de táxi pra poder ir resolvendo outras coisas no caminho? Está resolvido.
Amanhã eu resolvo o resto. Boa noite. Se eu conseguir dormir até uma e meia e
acordar às nove, já está bom. Pulo a meditação, falto à ginástica, pego
um táxi pro Centro e aí só falta resolver o resto da vida. Mas eu tenho o dia
inteiro pra resolver tudo. Ligar pro Geraldo, terminar o relatório, passar no
supermercado, chamar o homem da televisão, esquece o homem da televisão e
dorme. Já deve ser bem mais de uma. Olho o relógio ou não olho? Se eu olhar e
for muito tarde, vou ficar nervosa. Mas se eu não olhar vou ficar imaginando
que é mais tarde do que é na verdade e fico mais nervosa ainda. Esquece o
relógio e dorme. Boa noite. Não vou pensar em amanhã, não vou pensar em hoje,
não vou pensar nas horas, não vou pensar em nada. Nadinha. Um nada absoluto.
Pensar em nada é pensar em alguma coisa? Olha aí eu pensando de novo. É por
isso que não durmo. Durmo, sim. Quer ver? Vou contar carneirinhos. Um carneiro,
dois carneiros, três carneiros, quatro carneiros, pronto, agora o quinto
carneiro enganchou e não quer entrar no meu pensamento. Vem, carneiro. Por
favor. Tá fazendo o que aí fora? Arranjou uma namorada, foi? Então já são mais
dois carneiros, ele e a namorada, fora os filhotinhos que eles podem ter, olha
só que maravilha, vão ser não sei quantos carneirinhos pra contar. Vou dormir
na hora. Venham, carneiros. Um de cada vez. Podem entrar. Esses carneiros estão
de implicância comigo. Estou começando a me irritar. Daqui a pouco cometo um
carneiricídio. Assim que eles entrarem. O problema é que eles não entram.
Esquece os carneiros e dorme. Será que, se eu pensar em capim, os carneiros
entram pra comer o capim? Capim. Capim. Carneiro come capim? Esquece o capim e
dorme. Já devem ser quase duas e você aí acordada. Amanhã vai estar um lixo. Eu
não vou estar um lixo amanhã pela simples razão de que vou dormir agora, quer
ver? Boa noite, dormi, não dormi? Ainda não. Mas vou dormir imediatamente. É só
não pensar em amanhã porque amanhã eu tenho um dia dificílimo pela frente com
uma lista de coisas pra resolver: chamar o homem da televisão, comprar queijo
ralado, dar uma passadinha no laboratório pra buscar os exames, descobrir se
carneiro come capim, não acredito que já é de madrugada e eu estou aqui
pensando em capim, esquece os pensamentos e dorme, vou dormir, você não pode
pensar em amanhã, eu não vou pensar em amanhã, não vou mesmo, de jeito nenhum,
amanhã eu tenho um dia dificílimo com uma lista de coisas pra resolver:
descobrir se carneiro come capim...
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a situação retratada no texto?
A personagem sofre de insônia (falta de sono; incapacidade de
dormir adequadamente).
02 – O Conto é
uma narrativa curta que apresenta os mesmos elementos do romance:
narrador, personagens, enredo, espaço e tempo. Nos textos narrativos em
prosa, quem conta a história é o narrador. Se o narrador está
em 1ª pessoa (eu / nós) e é o personagem
principal, porque a história contada gira em torno dele, dizemos tratar-se
de um narrador-protagonista ou narrador-personagem. Se o
narrador apenas relata a história, em 3ª pessoa (ele /
eles) sem participar dela, é classificado como um narrador-observador ou
narrador-onisciente.
a) No caso do conto lido,
qual é o tipo de narrador? Comprove com elementos do texto.
É um
narrador-protagonista ou narrador- personagem. “Então, se eu conseguir dormir
até a meia-noite e acordar...”
b) Em algumas partes do conto,
a narradora tem uma conversa consigo mesma. Transcreva 3 trechos que
exemplifiquem isso.
“... Vou pegar no sono em cinco minutos.
Boa noite. Estou quase dormindo.”
“... Esquece e dorme. Boa noite. Dorme.
Não dormi?”
“... Você precisa dormir. Isso. Eu
preciso dormir. Então, boa noite.”
03 – É possível determinar,
a partir da leitura do conto, se o personagem é homem ou mulher? Comprove com
um trecho do texto.
Sim, é uma
mulher. “Vou acordar feliz, bem disposta, capaz, praticamente recuperada.”
04 – Explique a expressão:
"Daqui a pouco cometo um carneiricídio."
Significa que
mataria os carneirinho que estava contando para o sono vir, pois não conseguia
dormir.
05 – A partir da leitura do
conto, podemos determinar a hora em que a personagem começa a narrativa. Que
hora é essa?
Sim. Era vinte e
três horas e quinze minutos, pois ela precisava dormir oito horas e faltava
cinco minutos para a meia noite.
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