Conto: Os Compadres Corcundas
Luís da Câmara Cascudo
Era uma vez dois corcundas, compadres,
um rico e outro pobre. O povo do lugar vivia mangando do corcunda pobre e não
reparava no rico. O pobre andava triste e de mais a mais o tempo estava cruel e
ele era caçador.
Numa feita, esperando uns veados, já
tardinha, adormeceu no jirau e acordou noite alta. Ficou sem querer voltar para
casa. Ia se acomodando para pegar no sono de novo quando ouviu uma cantiga ao
longe, como se muita gente cantasse ao mesmo tempo.
-- Deve ser alguma desmancha de farinha
aqui por perto. Vou ajudar!
Desceu da árvore e botou-se no caminho,
andando, andando, no rumo da cantiga que não descontinuava. Andou, andou, até
que, chegando perto de um serrote, onde havia uma laje limpa, muito grande e
branca, viu uma roda de gente esquisita, vestida de diamantes que espelhavam ao
luar. Velhos, rapazes e meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o
mesmo verso sem mudar:
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
O caçador ficou tremendo de medo. As
pernas nem deixavam ele andar. Escondeu-se numa moita de mofundos e assistiu
sem querer aquela cantoria que era sempre a mesma, horas e horas.
Com o tempo foi se animando, ficando
mais calmo e, sendo metido a improvisador e batedor de viola, cantou na toada
que o povo esquisito estava rodando:
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
E quarta e quinta-feira,
Meu bem!
Boca para que disseste! Calou-se tudo
imediatamente e aquele povo todo espalhou-se como ribaçã procurando,
procurando. Acharam o corcunda e o levaram para o meio da laje como formiga
carrega barata morta. Largaram ele e um velhão, brilhando como um sacrário,
perguntou, com uma voz delicada:
--
Foi você quem cantou o verso novo da cantiga?
O caçador cobrou coragem e respondeu:
-- Fui eu, sim senhor!
O velhão disse:
-- Quer vender o verso?
-- Quero sim, senhor. Não vendo, mas
dou o verso de presente, por que gostei do baile animado.
O velho achou graça e todo aquele povo
esquisito riu também.
-- Pois bem – disse o velhão – uma mão
lava a outra. Em troca do verso eu te tiro essa corcunda e esse povo te dá um
bisaco novo!
Passou a mão nas costas do caçador e
este tornou-se esbelto como um rapaz, sem corcunda nem nada. Trouxeram um
bisaco novo e recomendaram que só abrisse quando o sol
nascesse.
O caçador meteu-se na estrada, andando,
andando e assim que o sol nasceu abriu o bisaco e o encontrou cheio de pedras
preciosas e moedas de ouro. Só faltou morrer de contente.
No outro dia comprou uma casa, com
todos os preparos, mobília, vestiu roupa bonita e foi para a missa porque era
domingo. Lá na igreja encontrou o compadre rico, também corcunda. Este quase
cai de costas, assombrado com a mudança. Perguntou muito e mais espantado ficou
reparando no traje do compadre, e ao saber que ele agora tinha casa e cavalo
gordo e se considerava rico.
O pobre contou tudo; e, como a medida
do ter nunca se enche, o rico resolveu arranjar ainda mais dinheiro e livrar-se
da corcunda nas costas.
Esperou uns dias pensando no que ia
fazer e largou-se para o mato no dia azado. Tanto fez que ouviu a cantiga e
botou-se na direção da toada. Achou o povo esquisito dançando de roda e
cantando:
Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
Quarta e quinta-feira, Meu bem!
O rico não se conteve. Abriu o par de
queixos e foi logo berrando:
Sexta, sábado e domingo!
Também!
Calou-se tudo rapidamente. O povo
esquisito voou para cima do atrevido e o levaram para a laje onde estava o
velhão. Esse gritou, furioso:
-- Quem lhe mandou meter-se onde não é chamado,
seu corcunda besta? Você não sabe que gente encantada não quer saber de
sexta-feira, dia em que morreu o Filho do Alto; sábado, dia em que morreu o
Filho do Pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia?
Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que
deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro!
E enquanto falava os outros iam dando
empurrão, tapona e beliscão no rico. O velho passou a mão no peito do corcunda
e deixou ali a outra, aquela de que o compadre pobre se livrara.
Depois deram uma carreira no homem,
deixando-o longe, e todo arranhado, machucado, roxo de bofetadas e
pontapés.
E assim viveu o resto de sua vida,
rico, mas com duas corcundas, uma adiante e outra atrás, para não ser
ambicioso.
Da obra "Contos
Tradicionais do Brasil", de Luís da Câmara Cascudo
Entendendo o conto:
01 – Como eram os dois
compadres do conto?
Os dois compadres
eram corcundas, um era rico e outro era pobre.
02 – A situação do pobre
andava preta, ele era caçador. Naquele dia não conseguiu caçar nada e quando já
estava pegando no sono ouviu o quê?
Uma cantiga ao
longe, como se muita gente cantasse ao mesmo tempo e foi até lá.
03 – Como eram as pessoas que
ele encontrou?
Era uma roda de
gente esquisita, vestida de diamantes que brilhavam com a lua. Tinha velhos,
rapazes, meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo verso, sem
mudar.
04 – Qual verso o pobre
improvisou na cantoria do povo esquisito?
O pobre
improvisou o verso: “Segunda, terça-feira, Vai, vem! E quarta e quinta-feira,
meu bem!”
05 – O que o velho ofereceu o
pobre em troca do verso novo?
O velho optou por
tirar a corcunda do pobre e dar-lhe um bisaco novo cheio de pedras preciosas e
moedas de ouro.
06 – O que aconteceu quando o
compadre rico tentou usar o verso para ficar rico também?
O compadre rico
acabou provocando a ira do povo esquisito, que o amaldiçoou e lhe devolveu a
corcunda que o pobre havia perdido, deixando-o com duas corcundas como punição
por sua ganância.
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