Crônica: Perde o gato
Carlos Drummond de Andrade
Um jornal é lido por muita gente, em
muitos lugares; o que ele diz precisa interessar, senão a todos, pelo menos a
um certo número de pessoas. Mas o que me brota espontaneamente da máquina,
hoje, não interessa a ninguém, salvo a mim mesmo. O leitor, portanto, faça o
obséquio de mudar de coluna. Trata-se de um gato.
Não é a primeira vez que o tomo para
objeto de escrita. Há tempos, contei de Inácio e de sua convivência. Inácio estava
na graça do crescimento, e suas atitudes faziam descobrir um encanto novo no
encanto imemorial dos gatos. Mas Inácio desapareceu e sua falta é mais
importante para mim, do que as reformas do ministério.
Gatos somem no Rio de Janeiro. Dizia-se
que o fenômeno se relacionava com a indústria doméstica das cuícas, localizada
nos morros. Agora ouço dizer que se relaciona com a vida cara e a escassez de
alimentos. À falta de uma fatia de vitela, há indivíduos que se consolam
comendo carne de gato, caça tão esquiva quanto a outra.
O fato sociológico ou econômico me
escapa. Não é a sorte geral dos gatos que me preocupa. Concentro-me em Inácio,
em seu destino não sabido.
Eram duas da madrugada quando o pintor
Reis Júnior, que passeia a essa hora com o seu cachimbo e o seu cão, me bateu à
porta, noticioso. Em suas andanças, vira um gato cor de ouro como Inácio cor
incomum em gatos comuns e se dispunha a ajudar-me na captura. Lá fomos sob o
vento da praia, em seu encalço. E no lugar indicado, pequeno jardim fronteiro a
um edifício, estava o gato. A luz não dava para identificá-lo, e ele se recusou
à intimidade. Chamados afetuosos não o comoveram; tentativas de aproximação se
frustraram. Ele fugia sempre, para voltar se nos via distantes. Amava.
Seria iníquo apartá-lo do alvo de sua
obstinada contemplação, a poucos metros. Desistimos. Se for Inácio, pensei
dentro de um ou dois dias estará de volta. Não voltou.
Um gato vive um pouco nas poltronas, no
cimento ao sol, no telhado sob a lua. Vive também sobre a mesa do escritório, e
o salto preciso que ele dá para atingi-la é mais do que impulso para a cultura.
É o movimento civilizado de um organismo plenamente ajustado às leis físicas, e
que não carece de suplemento de informação. Livros e papéis, beneficiam-se com
a sua presteza austera. Mais do que a coruja, o gato é símbolo e guardião da
vida intelectual.
Depois que sumiu Inácio, esses pedaços
da casa se desvalorizaram. Falta-lhes a nota grave e macia de Inácio. É
extraordinário como o gato “funciona” em uma casa: em silêncio, indiferente,
mas adesivo e cheio de personalidade. Se se agravar a mediocridade destas
crônicas, os senhores estão avisados: é falta de Inácio. Se tinham alguma coisa
aproveitável era a presença de Inácio a meu lado, sua crítica muda, através dos
olhos de topázio que longamente me fitavam, aprovando algum trecho feliz, ou
através do sono profundo, que antecipava a reação provável dos leitores.
Poderia botar anúncio no jornal. Para
quê? Ninguém está pensando em achar gatos. Se Inácio estiver vivo e não sequestrado,
voltará sem explicações. É próprio do gato sair sem pedir licença, voltar sem
dar satisfação. Se o roubaram, é homenagem a seu charme pessoal, misto de
circunspeção e leveza; tratem-no bem, nesse caso, para justificar o roubo, e
ainda porque maltratar animais é uma forma de desonestidade. Finalmente, se
tiver de voltar, gostaria que o fizesse por conta própria, com suas patas; com
a altivez, a serenidade e a elegância dos gatos.
Carlos
Drummond de Andrade
Entendendo a crônica:
01 – Nessa crônica, Carlos
Drummond de Andrade vale-se da metalinguagem e pede desculpas porque não está
correspondendo a expectativa do leitor e porque ele ficaria frustrado?
Porque escreve
uma crônica falando do sumiço de seu gato.
02 – Como é próprio do
gênero crônica, o autor vale-se de um fato cotidiano para fazer uma reflexão.
Qual ideia ele elabora?
Brota
espontaneamente da máquina a ideia de falar do desaparecimento de Inácio e a
falta que ele o faz.
03 – Então, qual o tema
desenvolvido?
a)
Esperança X desilusão.
b)
Liberdade X controle.
c)
Ausência X presença.
d)
Tradição X modernidade.
e)
Íntimo X privado.
04 – Classifique a crônica
que você acabou de ler em:
a)
Lírica poética.
b)
Humorista.
c)
Ensaística.
05 – Considerando o título e
os dois primeiros parágrafos, qual é o tema da crônica?
O tema é o amor
do autor pelo seu gato.
06 – Qual frase resume o
sentimento do autor sobre o desaparecimento de Inácio?
“Mas Inácio desapareceu e sua falta é mais importante para
mim, do que as reformas do ministério.”
07 – Quais são os possíveis
motivos para o desaparecimento de gatos na cidade do Rio de Janeiro?
Dizia-se que o
fenômeno se relacionava com a indústria doméstica das cuícas, localizada nos
morros. E o outro motivo se relaciona com a vida cara e a escassez de
alimentos.
08 – Qual é a relação da
palavra que termina o parágrafo (amava) com o que foi dito antes?
Que o gato Inácio
amava os chamados afetuosos.
09 – Por que o autor e seu
amigo desistiram da busca por Inácio?
Porque o autor
achava que se fosse Inácio dentro de um ou mais dias estaria de volta.
10 – O que você entende por
“o gato é símbolo e guardião da vida intelectual?
Resposta pessoal do aluno.
11 – Qual é a consequência
da ausência de Inácio para a vida do autor e para o seu trabalho?
Para o autor os
lugares onde Inácio ficava na casa se desvalorizaram e para seu trabalho sua
crítica muda.
12 – Como o último parágrafo
contribui para construir o tom da crônica?
No último
parágrafo o autor usa uma linguagem simples e coloquial usando um tom mais
informal.
13 – Nos parágrafos 5 e 7, o
autor apresenta algumas características do gato Inácio. Cite-os:
Parágrafo 5 –
Afetuoso, amoroso, dourado, especial, arisco.
Parágrafo 7 – Macio, silencioso,
indiferente, crítico, intenso.
Leia o trecho inicial da crônica “Perde o gato”, de Carlos Drummond de Andrade, e escreva suas primeiras impressões?
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