Crônica: Terno X Tênis
Walcyr Carrasco
É incrível. Os maitres e garçons de
restaurantes finos andam mais chiques que a decoração. Se chego descontraído,
de tênis e jeans, me tratam como se fosse um meliante. Aparece alguém de terno seja
tão elegante quanto uma barraca de acampamento. Dia desses, um amigo, diretor
de empresa, foi me encontrar em um estrelado do Itaim. Desembarcou do táxi de
calça de preguinhas e camiseta. O maitre aproximou-se, com um sorriso de boca
torta:
-- Onde o senhor vai?
-- Almoçar.
-- Tem reserva?
Por sorte, eu já estava lá dentro. O
restaurante, um deserto. Fomos tratados como candidatos a faxineiros. Quando
pedi sobremesa, o garçom me olhou com jeito desconfiado. Como se fosse um
atrevimento da minha parte. Nem tive coragem de dar cheque. Ofereci o cartão de
crédito, que ele ficou revirando alguns momentos nos dedos.
Porteiros de prédio são piores. Fui
visitar uma amiga em seu novo apartamento no Morumbi. Vesti tênis, jeans,
camisa branca. Falei com a guarita pelo interfone. O porteiro:
-- Não sei se ela vai poder atender.
Fico furioso: ele tem de saber de
alguma coisa? Por acaso foi contratado como secretário, para tratar da agenda
dela? Pois que ligue o interfone e verifique. Ele me olha com rancor. Chega um
rapazinho de terno e gravata, todo amarfanhado. Parece que dormiu dentro de uma
batedeira de bolo. Mal espeta o dedo na campainha, o porteiro abre solícito:
-- Posso ajudá-lo em alguma coisa?
Pior me aconteceu numa corretora de
investimentos. Sou atendido no portão por uma recepcionista de calça de linho.
Peço para falar com um amigo que trabalha lá.
-- Está numa reunião e não pode
atendê-lo – rugiu o cavalheiro, sem saber do que se tratava.
-- Só vim buscar um livro. Talvez a
secretária possa passar um bilhete e resolver o assunto.
-- O quê? Ela não pode, não. Pensa que
todo mundo é obrigado a fazer suas vontades?
Fico em dúvida: chamo a ambulância?
Loucura tem limite. Mais louco deve ser o dono da empresa, que deixa alguém
atender à porta dessa maneira. Em casa, me examino no espelho. Pareço um
espantalho? Coisa nenhuma: gosto de misturar paletó com jeans, blazer com
camiseta. Igualzinho nas revistas de moda. Talvez o negócio seja botar uma
delas embaixo do braço e negociar:
-- Olha aqui, seu maitre. Estou vestido
que nem o moço da foto. Não me trata mal.
Com as mulheres é até pior. Uma amiga
que faz o gênero descontraído vive sendo barrada. Nem ousa chegar perto de
restaurante francês. Costuma ficar ancorada no bar horas e horas, porque nunca
tem mesa. Se insiste, é atarraxada no fundo da sala e passa a noite toda
tentando atrair a atenção dos garçons. Que fogem, de nariz empinado. Acham brega
atender quem parece suburbano. Sem falar das casas noturnas que proíbem tênis.
Hoje, por um desses mistérios de indústria, um par tornou-se mais caro do que
mocassim. O recepcionista parece sentir um prazer sádico em declarar:
-- De tênis não entra.
Fico fascinado ao verificar como certas
pessoas adoram bancar o oficial nazista. Um terno pode ter sido comprado a
prestação. O jeans pode ser de grife. Analisar uma pessoa pelo que ela veste só
dá confusão, pois atualmente, à primeira vista, um encanador e um milionário
correm o risco de andar com roupas parecidas. O que me dá mais raiva é que maitres,
garçons e porteiros talvez pensem que são tão finos como as cadeiras e os
objetos de arte dos lugares onde trabalham. Mas e na hora de ir para casa?
Algum deles possui, por acaso, a última coleção de Paris no guarda-roupa? Ou um
terninho soterrado na naftalina, para usar em casamento de amigos? Fico
imaginando que chegam em casa e caçam caramujos no quintal só para ter o prazer
de comentar:
--
Em casa tem escargot.
O pior de tudo: e se alguém quiser
torrar as economias num restaurante de luxo, merece ser mal recebi só porque
ganha pouco?
Cheguei a tentar usar terno até para ir
à quitanda. Me dei mal. Noite dessas, me emperiquitei todo e fui a um
restaurante. Até coloquei minha gravata inglesa com desenho de porquinhos.
Adiantou? Percebi o olhar de censura do maitre cabeludo no instante em que pus
os pés no local, próximo da Avenida Paulista. Todos os garçons de jeans e tênis.
O único de gravata era eu. Ouvi um comentário:
-- Olha o cafona.
Quase choro. Regra vem, regra vai, eu
sempre acabo como espantalho. Ai, que vida!
Walcyr
Carrasco, O golpe do aniversariante e outras crônicas. São Paulo, Ática, 1996.
Para gostar de ler, v. 20.
Fonte: Livro
– Oficina de Redação – Leila Lauar Sarmento, 7ª Série. Editora Moderna, 1ª
edição,1998. p. 149-152.
Entendendo a crônica:
01 – A seu ver, por que as pessoas
de terno são mais bem tratadas do que as de tênis? Ou você discorda do autor?
Esclareça a sua opinião.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A aparência das pessoas influencia muito o comportamento de
quem julga o ser humano pelo que veste e possui; na nossa sociedade, usar terno
é sinal de status; tênis é popular.
02 – Além dos maitres,
garçons e porteiros, que outras pessoas assumem o mesmo comportamento
discriminatório? Que incoerência há na atitude desses profissionais?
Balconistas que
acham tudo barato porque estão vendendo e não comprando. Certas cabeleireiras,
recepcionistas, secretárias, sem muita experiência, que ficam afetadas ao se
relacionar com o público. São normalmente pessoas humildes, que lutam com
dificuldades e por isso não têm boa aparência. Mesmo assim, criticam os outros.
03 – Explique o sentido das
seguintes frases do texto:
a)
“Mesmo que o terno seja tão elegante quanto
uma barraca de acampamento”.
Há ternos mal confeccionados, com péssimo caimento no corpo; por
isso o autor os compara a barracas que, geralmente, não são bem ajustadas,
causando má impressão.
b)
“Parece que dormiu dentro de uma batedeira de
bolo”.
O autor refere-se ao terno todo amarrotado, completamente em
desalinho.
c)
“Costuma ficar ancorada no bar horas e horas,
porque nunca tem mesa”.
Há pessoas que são mal recebidas devido à má aparência e ficam à
espera de uma atenção, que nunca acontece.
d)
“... certas pessoas adoram bancar oficial
nazista”.
Trata-se de gente grosseira, sem trato, que tem o costume de ser estúpida
com os outros.
04 – Releia esta frase: “Analisar uma pessoa pelo que ela veste só
dá confusão...”. Você concorda com essa afirmação? Justifique a sua
resposta.
Resposta pessoal
do aluno.
05- Por que o narrador foi
considerado “cafona”? O que essa nova situação nos mostra?
No momento em que
ele decidiu melhorar seu visual, vestindo terno, de acordo com as convenções
sociais, ele destoou dos outros que estavam de jeans e tênis. Isso nos prova
que são as pessoas que inventam as regras, tudo não passa de modismo.
06 – Você considera que as
pessoas devem sempre seguir as regras sociais? Por quê?
Resposta pessoal
do aluno.
07 – Narre um outro caso de
discriminação de que você tenha conhecimento.
Resposta pessoal
do aluno.
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