CONTO: O
barco
Maria Dinorah
Na verdade,
o barco era meu mistério.
Que coisa linda, aquele barco flutuando
balançando nas águas, tendo o céu infinito por lençol!
Desde que entrei nele pela primeira vez
– era ainda pequena, e o pai nos
levou para um passeio – que me apaixonei pelo seu aconchego.
Era ninho e cometa.
O sulco marcando as águas formava sua
cauda; as espumas, seu halo.
Nele eu virava anjo, pássaro.
As paisagens se transformavam em novos
e fantásticos mundos, onde a vegetação densa e as montanhas me intrigavam.
Que haveria por trás delas?
Dentro delas...?
O céu era o palácio das cores.
Cada dia uma.
Ou várias, a um só tempo.
À noite as sombras o invadiam, e o
transformavam em susto.
Mas quando as lanternas das estrelas
acendiam seu pisca-pisca mágico, e a lua, mãe da poesia e do mistério,
transbordava das trevas, era o delírio.
E o barco seguia sendo meu herói, por
que era dele que emanavam todos esses encantos.
Às
vezes, nos fins de semana, o pai me levava pra pescar.
De caniço em punho eu ficava ali,
adernando o barco no silêncio, mergulhando linha, anzol e isca na água.
Marulho manso.
Silêncio infinito.
Lá pelas tantas, a água tremia.
A linha tremia.
Tremia meu coração.
A isca fisgara o bichinho.
Que coisa fantástica!
Eu erguia o caniço devagarinho e o
peixe surgia, a debater-se no ar, como ave desesperada...
Sentia-me herói e bandido.
Matar os bichinhos, judiaria!
Mas
o pai falava que era a lei da vida.
E
quando no dia seguinte a gente saboreava, à mesa, a delícia das postas de peixe
assadas, com o sagrado tempero da mãe, confesso que esquecia o crime e
vivia a glória da conquista.
O barco...
Berço e rima.
Silêncio e música.
Sim, quando beirávamos os barrancos, o
sopro do vento balançando as árvores era poema, e os pios das aves, a mais ela
melodia.
Ah, como a vida era linda e
transfigurada, através desse barco, rolando sobre a imensa serpente do rio!
Eu era apaixonada por ele, sim.
E meu grande sonho era dirigi-lo um
dia, águas afora, sozinha com meu silêncio...
Demorei a conseguir que o pai me ensinasse a mecânica do motor
e, mais ainda, que me permitisse realizar esse sonho.
Não foram poucas as travessias que fiz
sob sua orientação, levando
as mercadorias para o outro lado do rio.
Com a calça de brim e o boné para me
proteger do sol, eu me sentia, empunhando o leme, uma verdadeira barqueira.
Mesmo sobre as águas, era como se
flutuasse!
Que deliciosa façanha a vida me dera a
chance de cometer!
E, quando isso ocorria, a situação mudava:
eu era o herói, e o barco, meu comandado.
Pois foi esse maravilhoso barco que me
levou até a escola pela primeira vez.
Ah, aprender a ler!
Descobrir a magia da palavra!
Minha cabeça era um remoinho de
curiosidades a se iluminar de espanto.
A
professora era gordinha, baixinha e doce.
Doce foi também a aprendizagem.
E com que ternura eu ia decifrando o
enigma das letras.
Seu poder.
Seu som.
Falando comigo, nas frases e períodos.
E o mais fantástico: me contado
histórias.
DINORAH, Maria. Um pai para
Vinícius. São Paulo: FTD, 1995. p. 3-40. (Título nosso).
Entendendo o texto:
01 – Tente explicar o
significado das palavras destacadas. Se precisar, consulte um dicionário:
a)
“O sulco marcando as águas formava sua
cauda; as espumas, seu halo.”
·
Sulco: quebra da
superfície da água produzida pela passagem de embarcações.
·
Halo: círculo
luminoso em torno de um objeto; brilho.
b)
“Mas quando as lanternas das estrelas
acendiam seu pisca-pisca mágico, e a lua, mãe da poesia e do mistério, transbordava
das trevas, era o delírio.”
·
Transbordar: sair
fora das bordas.
·
Trevas: escuridão
completa.
·
Delírio: grande
entusiasmo (sentido figurado).
c)
“De caniço em punho eu ficava ali, adernando
o barco no silêncio [...]”
·
Adernar: inclinar.
d)
“E com que ternura eu ia decifrando o enigma
das letras.”
·
Decifrar: compreender
ou interpretar o sentido de algo.
·
Enigma: mistério.
e)
“E o barco seguia sendo meu herói, porque era
dele que emanavam todos esses encantos.”
·
Emanar: originar-se.
f)
“As paisagens se transformavam em novos e
fantásticos mundos, onde a vegetação densa e as montanhas me intrigavam.”
·
Densa: espessa.
·
Intrigar: encher de
curiosidade.
g)
“Desde que entrei nele pela primeira vez
[...] que me apaixonei pelo seu aconchego.”
·
Aconchego: abrigo que
gera bem-estar, amparo, proteção.
02 – Assinale a alternativa
mais adequada ao texto lido:
( ) Trata-se de um texto em que o narrador
conta o que aconteceu em um dia específico de sua vida.
( ) Trata-se de um texto em que o narrador
descreve detalhadamente todos os locais importantes da vida dele.
(X) Trata-se de um texto em que o
narrador apresenta suas reflexões, sobre uma experiência vivida por ele.
( ) Trata-se de um texto em que o narrador
ensina a arte de navegar.
03 – Assinale a(s)
alternativa(s) correta(s). Pode-se dizer que a personagem:
( ) Não se mostra interessada em pilotar o
barco.
(X) Sentia-se emocionada ao observar
os elementos da natureza quando estava em seu barco.
(X) Sentia-se herói e bandido quando
pescava.
( ) Quando comia o peixe, ficava triste por
tê-lo pescado.
04 – Releia este trecho do
texto prestando atenção à expressão destacada:
“Ah, como a vida era linda e
transfigurada, através desse barco, rolando sobre a imensa serpente do rio!”
Com essa expressão, o narrador do texto quis dizer que:
(X) O rio era muito grande e, além
disso, fazia curvas como o corpo se uma serpente.
( ) Havia uma serpente muito grande que vivia
no rio.
05 – Além da
personagem-narrador, outras personagens são mencionadas no texto.
a)
Quem são elas?
O pai, a mãe e a professora da menina. Além disso, no trecho “Desde
que entrei nele pela primeira vez – era ainda pequena, e o pai nos levou para um passeio [...]”,
o pronome nos convida a supor que, talvez, outras pessoas da família da menina,
como irmãos, tios, primos, etc., também estão mencionados no texto.
b)
Sublinhe os trechos do texto em que essas
personagens aparecem.
Resposta pessoal do aluno.
c)
Releia a resposta que você deu ao item (a) e verifique se pretende alterá-la ou
mantê-la, depois de ter sublinhado os trechos pedidos no item (b).
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Com isso é possível perceber
aspectos que passam despercebidos numa leitura superficial.
06 – Pode-se dizer que, em
certos trechos, o barco é referido como se fosse uma pessoa, isto é, como se
tivesse características humanas. Copie do texto um trecho que comprove essa
afirmação.
“E o barco seguia
sendo meu herói”; “Eu era apaixonada por ele, sim”; “E, quando isso ocorria, a
situação mudava: eu era o herói, e o barco, meu comandado”.
07 – Pode-se dizer também
que, no texto, o barco adquire características mágicas aos olhos da menina.
Copie um trecho que comprove essa afirmação.
É
possível transcrever muitas passagens do texto em que isso ocorre. Eis algumas:
“o barco era meu mistério”; “Era ninho e cometa”; “Nele eu virava anjo,
pássaro”; “Berço e rima”; “Silêncio e música”; “Como a vida era linda e
transfigurada, através desse barco”.
08 – A personagem não
menciona a passagem do tempo, mas podemos perceber que ela cresceu do início
para o fim do texto. Qual fato citado no texto comprova que ela cresceu?
Foi o barco que
a levou à escola pela primeira vez. Esse fato deixa claro que a convivência com
o barco começara antes de ela entrar na idade escolar.
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