CONTO: A DOIDA
Carlos Drummond de Andrade
A doida
habitava um chalé no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o
córrego, onde os meninos costumavam banhar-se.
(…)
Os três garotos desceram
manhã cedo, para o banho e a pega de passarinho. Só com essa intenção. Mas era
bom passar pela casa da doida e provocá-la. As mães diziam o contrário: que era
horroroso, poucos pecados seriam maiores. Dos doidos devemos ter piedade,
porque eles não gozam dos benefícios com que nós, os sãos, fomos aquinhoados.
(…)
Como
era mesmo a cara da doida, poucos poderiam dizê-lo.
(…)
Sabia-se confusamente
que a doida tinha sido moça igual às outras no seu tempo remoto (contava mais
de 60 anos, e loucura e idade, juntas, lhe lavravam o corpo). Corria, com
variantes, a história de que fora noiva de um fazendeiro, e o casamento, uma
festa estrondosa; mas na própria noite de núpcias o homem a repudiara, Deus
sabe por que razão.
O marido ergueu-se terrível e empurrou-a, no calor do
bate-boca; ela rolou escada abaixo, foi quebrando ossos, arrebentando-se. Os
dois nunca mais se viram. Já outros contavam que o pai, não o marido, a
expulsara, e esclareciam que certa manhã o velho sentira um amargo diferente no
café, ele que tinha dinheiro grosso e estava custando a morrer.
(…)
De qualquer
modo, as pessoas grandes não contavam a história direito, e os meninos
deformavam o conto. Repudiada por todos, ela se fechou naquele chalé do caminho
do córrego, e acabou perdendo o juízo. Perdera antes todas as relações. Ninguém
tinha ânimo de visitá-la.
(…)
Às vezes uma preta velha arriscava-se a entrar,
com seu cachimbo e sua paciência educada no cativeiro, e lá ficava dois ou três
meses, cozinhando. Por fim a doida enxotava-a. E, afinal, empregada nenhuma
queria servi-la. Ir viver com a doida, pedir a bênção à doida, jantar em casa
da doida, passou a ser, na cidade, expressões de castigo e símbolos de irrisão.
(…)
E assim, gerações sucessivas de moleques passavam pela porta, fixavam
cuidadosamente a vidraça e lascavam uma pedra. A princípio, como justa
penalidade. Depois, por prazer. Pessoas sensíveis lamentavam o fato, sugeriam
que se desse um jeito para internar a doida. Mas como? O hospício era longe, os
parentes não se interessavam. E daí — explicava-se ao forasteiro que porventura
estranhasse a situação — toda cidade tem seus doidos; quase que toda família os
tem.
(…)
Os meninos pegaram calhaus lisos, de ferro, tomaram posição. Cada um
jogaria por sua vez, com intervalos para observar o resultado. O chefe
reservou-se um objetivo ambicioso: a chaminé.
(…)
A doida, porém, parecia não
ter percebido a agressão, a casa não reagia. Aí o terceiro do grupo, em seus 11
anos, sentiu-se cheio de coragem e resolveu invadir o jardim.
(…)
O garoto
empurrou o portão: abriu-se.
(..)
Era o primeiro a penetrar no jardim (…)
Recuou um pouco e olhou para a rua: os companheiros tinham sumido. Ou estavam
mesmo com muita pressa, ou queriam ver até aonde iria a coragem dele, sozinho
em casa da doida. Tomar café com a doida. Jantar em casa da doida. Mas estaria
a doida?
(…)
O menino foi abrindo caminho entre pernas e braços de móveis,
contorna aqui, esbarra mais adiante. O quarto era pequeno e cabia tanta
coisa. Atrás da massa do piano, encurralada a um canto, estava a cama. E
nela, busto soerguido, a doida esticava o rosto para a frente, na investigação
do rumor insólito. Não adiantava ao menino querer fugir ou esconder-se. E
ele estava determinado a conhecer tudo daquela casa. De resto, a doida não deu
nenhum sinal de guerra. Apenas levantou as mãos à altura dos olhos, como para
protegê-los de uma pedrada. Ele encarava-a, com interesse.
(…)
E que
pequenininha! O corpo sob a coberta formava uma elevação minúscula. Miúda,
escura, desse sujo que o tempo deposita na pele, manchando-a. E parecia ter
medo.
(…)
A criança sorriu, de desaponto, sem saber o que
fizesse. Então a doida ergueu-se um pouco mais, firmando-se nos cotovelos.
A boca remexeu, deixou passar um som vago e tímido. Como a criança não se
movesse, o som indistinto se esboçou outra vez. Ele teve a impressão de
que não era xingamento, parecia antes um chamado. Sentiu-se atraído para a
doida, e todo desejo de maltratá-la se dissipou. Era um apelo, sim, e os dedos,
movendo-se canhestramente, o confirmavam.
(…)
Talvez pedisse água. A
moringa estava no criado — mudo, entre vidros e papéis. Ele encheu o copo pela
metade, estendeu-o. A doida parecia aprovar com a cabeça, e suas mãos queriam
segurar sozinhas, mas foi preciso que o menino a ajudasse a beber. Fazia
tudo naturalmente, e nem se lembrava mais por que entrara ali, nem conservava
qualquer espécie de aversão pela doida. A própria ideia de doida desaparecera.
Havia no quarto uma velha com sede, e que talvez estivesse morrendo.
Nunca vira
ninguém morrer, os pais o afastavam se havia em casa um agonizante. Mas deve
ser assim que as pessoas morrem. Um sentimento de responsabilidade
apoderou-se dele. Desajeitadamente, procurou fazer com que a cabeça repousasse
sobre o travesseiro. Os músculos rígidos da mulher não o ajudavam.
Teve que
abraçar-lhe os ombros – com repugnância — e conseguiu, afinal, deitá-la em
posição suave.
(…)
Água não podia ser, talvez remédio…
(…)
Seria caso talvez de
chamar alguém.
(…)
E tinha medo de que ela morresse em completo abandono, como
ninguém no mundo deve morrer.
(…)
Foi tropeçando nos móveis, arrastou com
esforço o pesado armário da janela, desembaraçou a cortina, e a luz invadiu o
depósito onde a mulher morria. Com o ar fino veio uma decisão. Não deixaria a
mulher para chamar ninguém. Sabia que não poderia fazer nada para ajudá-la, a
não ser sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia
acontecer.
Carlos Drummond de
Andrade In: Contos de Aprendiz. Adaptado.
Entendendo o texto:
01 – Descreva qual era o
hábito dos moleques da cidade em relação A Doida?
O hábito era
provocar a doida jogando pedras na casa dela.
02 – Quais são as duas
versões contadas pela população em relação a vida da Doida?
Uma versão é que ela era noiva de um
fazendeiro, mas na noite de núpcias o homem a repudiara.
A outra versão é que o pai a expulsara
porque sentira um amargo diferente no café e como era muito rico ficou com medo
que a filha o envenenasse para pegar o dinheiro dele.
03 – O que aconteceu com A
Doida após ela se fechar no chalé localizado no caminho do córrego?
Ela perdeu o
juízo e a relação com as pessoas.
04 – Quais eram as
expressões de castigo ou zombaria utilizadas pelas pessoas da cidade onde A
Doida morava?
Ir viver com a doida, pedir a bênção à
doida, jantar em casa da doida.
05 – Porque as pessoas da
cidade ou familiares não internavam A Doida em um local apropriado?
O hospício era
longe, os parentes não se interessavam.
06 – Qual era a
justificativa utilizada pela população da cidade quando chegava um forasteiro
que por ventura estranhasse a situação? Você concorda com essas afirmações?
Justifique.
Toda cidade tem
seus doidos; quase que toda família os tem. Resposta pessoal.
07 – Após a tentativa de
jogar pedras na chaminé não ter dado nenhum resultado o que aconteceu com os
meninos? Relate os fatos:
Um menino de 11 anos resolveu invadir o jardim os demais
foram embora.
08 – Após invadir a casa da
Doida relate o que aconteceu com o menino e a dona da casa? Faça uma breve
descrição das atitudes dele e da mulher a partir desse momento?
O menino
encontrou a Doida na cama e ela a princípio parecia sentir medo. O menino não
quis mais maltratá-la ao vê-la naquelas condições. Ela parecia fazer um apelo.
Ele logo imaginou que ela quisesse água, ele pegou a água e entregou para ela,
porém ela não conseguiu beber sozinha. Então ele a ajudou.
09 – Após contato com a
mulher relate qual sentimento apoderou-se do menino? Em seguida, relate o
desfecho do conto.
Um sentimento de
responsabilidade. Por fim o menino após ajudar a mulher não a deixaria para
chamar ajuda. Pois julgava que ela estava morrendo e não havia mais nada para
fazer por ela, apenas sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o
que ia acontecer.
10 – Relate o que você
sentiu ao ler esse conto.
Resposta pessoal.
Muinto util pois tem as respostas de todas as questãoes e por isso não precissa ficar pesquisando uma por uma otimo
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