domingo, 26 de junho de 2022

REPORTAGEM: AS MENINAS DA LINHA 174 - UM ELOGIO - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO - COM GABARITO

 Reportagem: As meninas da linha 174 – um elogio

        Dentro do ônibus havia mais sensatez e competência para lidar com situações extremas do que fora

Roberto Pompeu de Toledo

        Nem tudo está perdido. Enquanto houver gente capaz de escrever ao contrário, num vidro, para que a mensagem possa ser lida sem esforço por quem está do outro lado, e escrever com correção e clareza, reproduzindo com precisão o desenho das letras, apesar de circunstâncias mais do que adversas – não, nada estará perdido. Experimente o leitor desenhar as letras ao contrário. Talvez já tenha experimentado, num momento de tédio, enquanto se dava ao desafogo de deitar rabiscos erráticos numa folha de papel, e então conhece as dificuldades que, mesmo quando se trata de letras de fôrma, e maiúsculas, as mais fáceis de reproduzir, o exercício oferece. Algumas letras são iguais, tanto do lado direito quanto do avesso: o “A”, o “T”, ou o “V”, além do “O” e do “I”, as de formatos mais elementares. Destas não há do que reclamar. A maioria, porém, exige a habilidade de um contorcionista da caligrafia.

        É preciso lembrar de fazer para a esquerda o que se fez a vida inteira para a esquerda o que se fez a vida inteira para a direita – os três dentes do “E”, a base do “L”, a perna e a meia bola do “R”. De súbito, é preciso conceber uma representação invertida do mundo, como se, exagerando um pouco, a noite virasse dia, o seco molhado e os machos fêmeas. É preciso ter em mente que o rabinho do “Q” agora vai para o outro lado. Porventura a maior dificuldade será não se perder nas curvas do “S”. Agora imagine-se praticar o exercício de escrever ao contrário sob as ordens de um alucinado que tem um revólver na mão, e os leitores já sabem de que e de quem se está falando – do sequestro do ônibus, no Rio de Janeiro, e de Janaína Lopes Neves, uma das reféns, obrigada a escrever com batom, nas janelas do veículo, as mensagens ditadas pelo sequestrador. Uma das mensagens era: “Ele tem pacto com o diabo. Tem um punhal e o diabo desenhados no braço. Ele vai matar”. A outra: “Ele vai matar geral às 6hs. Arrancaram a cabeça de sua mãe.” Não foi esquecida a crase no “às 6 horas”.

        Nada pode distrair da tragédia que acometeu o ônibus da linha 174, Gávea-Central do Brasil, na parada do Jardim Botânico. Nada pode aliviar o choque da morte de Geisa Firmo Gonçalves, sacrificada no bojo de uma das mais grotescas manifestações de incompetência policial já encenadas sobre a orbe terrestre. Mas olhemos em volta. O drama teve outros personagens. Janaina, de 23 anos, natural de Campo Grande e estudante de administração na PUC do Rio, ao escrever as mensagens, uma demonstração de autocontrole de humilhar os profissionais da polícia, ainda que, por dentro, não parasse de rezar e achasse que ia morrer. Nem tudo está perdido.

        O sequestro do ônibus 174 foi o sequestro das meninas. A elas é que o sequestrador agarrava, o revólver apontando-lhes para a nuca ou a têmpora, quando não enfiado na boca. Se não era Janaína era Geisa, se não era Geisa era Luanna, num sinistro baile em que não poderia haver maior desgraça do que ser tirada para dançar. Mas eram meninas de estofo, e quanto, aquelas. Elas se provariam capazes de enfrentar a emergência indizível que viviam. Geisa, cearence de 20 anos professora de artes das crianças da Rocinha, deu-se, antes de ser arrastada de encontro a um perigo ainda maior do que um alucinado de revólver, que é a incompetência da polícia, à iniciativa de pedir ao sequestrador, e obter dele, a libertação da amiga com quem viajava, mais velha e muito nervosa. Janaína foi vítima de um fuzilamento simulado: a certa altura o sequestrador forçou-a a se deitar no chão e disparou um tiro que, até o último milionésimo de segundo, ela pensou que fosse mesmo acertá-la. Nem por isso aniquilou-se emocionalmente. Luanna Guimarães Belmont, estudante de comunicações da PUC, e a mais novinha do grupo – 19 anos –, ajudou a pôr um pouco de ordem no caos, ao dispor-se a recolher para o bandido o dinheiro, colares e relógios dos passageiros e ao tentar o tempo todo acalmar as pessoas. As três vieram de diferentes partes, com diferentes histórias, para, num momento de suprema provação, terem como ponto comum um comportamento lúcido e altivo. A Luanna, numa declaração ao Jornal do Brasil, coube a frase definitiva sobre um sequestrador destrambelhado, menino de rua desde os sete anos, sobrevivente da chacina em que oito companheiros foram mortos pela polícia em frente à Igreja da Candelária, em julho de 1993: “Não desejei a morte dele, só queria que ele nunca tivesse existido”.

        Há muitas razões para desânimo, numa hora dessas. O episódio em si é a maior. Segue-se a parlapatice das promessas de reformas e providências que, sabe-se, nunca virão, e de anúncios de planos de segurança que, adivinha-se, nunca vão fundo, e, se forem não se terá coragem de implementar. Fiquemos com as meninas – com Janaína e Luanna, pelo menos, uma vez que com Geisa não é mais possível. Elas convidam a um olhar sobre o episódio na direção inversa das mensagens nos vidros. Dentro do ônibus havia mais sensatez e competência para lidar com situações extremas, sem falar de mais sensibilidade e humanidade, do que do lado de fora.

Roberto Pompeu de Toledo. Veja, ano 33, n° 25, 21 jun. 2000. p. 170.

Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 109-111.

Entendendo a reportagem:

01 – Escreva em um parágrafo o assunto desse ensaio.

      O autor comenta, de forma sarcástica, o sequestro de um ônibus da linha 174, na cidade do Rio de Janeiro, no qual um marginal mantém passageiras como reféns. Após longo período de tensão e violência dentro do ônibus, uma delas, de 20 anos, acaba morrendo no momento em que o sequestrador se entrega, por inabilidade policial.

02 – Observe que o autor inicia seu texto com uma frase que é, posteriormente, retomada com pequenas alterações e depois repetida literalmente. Por que ele faz isso?

      Essa é uma forma de estabelecer coesão no texto.

03 – Observe ainda que os dois primeiros parágrafos são destinados a considerações sobre as dificuldades em se escrever uma mensagem ao contrário. Você acredita que o autor usaria praticamente metade de seu espaço na coluna para falar ingenuamente sobre as mudanças das letras invertidas? Que outra dimensão adquirem esses parágrafos, quando se considera o todo do texto? (Leia, principalmente, o último parágrafo).

      Não. É claro que o autor não quer apenas comentar o fato de Janaína ter habilmente escrito as mensagens com as letras ao contrário. Ele quer mostrar que as garotas, mesmo sendo bem jovens, tiveram o equilíbrio necessário para enfrentar situação tão tensa, enquanto, do lado de fora, policiais experientes não souberam ter a calma necessária para conduzir a situação de maneira satisfatória. O autor fala em “representação invertida” do mundo: as letras ao contrário seria uma forma emblemática de dizer que está tudo ao contrário do que deveria estar.

04 – No quarto parágrafo, o autor relata os fatos ocorridos no fatídico sequestro do ônibus. Qual a diferença entre esse relato e a notícia do fato propriamente dito, que deve ter circulado nos principais jornais do país no dia do acontecimento?

      O autor relata o fato de maneira extremamente subjetiva, deixando transparecer toda sua indignação. Os jornais provavelmente publicaram notícias sobre o fato, relatando-o da forma como ocorreu, sem comentários apreciativos.

05 – Segundo o articulista, o que é pior que a violência do sequestrador?

      A incompetência da polícia.

06 – Que críticas são feitas no texto? E especialmente contra quem?

      As críticas são feitas ao governo, aos responsáveis pela segurança, à polícia e aos policiais.

07 – “Fiquemos com as meninas”; o elogio final do autor para as duas jovens (já que “com Geisa não é mais possível”) contrasta com qual ideia?

      O elogio às meninas contrasta com a crítica às autoridades que permitiram que chegássemos a esse estágio de violência.

08 – De que maneira os conceitos de cidadania e cidadão poderiam ser aplicados aos envolvidos na tragédia relatada no texto?

      Os passageiros do ônibus não tiveram seus direitos de cidadãos preservados; foram brutalmente atacados pelo sequestrador. Esse, por sua vez, também teve seu direito à educação ignorado; ele não foi tratado pela sociedade como cidadão. Nenhuma das pessoas envolvidas no incidente goza de sua cidadania.

09 – Na sua opinião, a história de vida do sequestrador justifica sua atitude?

      Em parte, sim. Talvez se ele tivesse tido oportunidades de estudar, preparar-se para o futuro, não estaria naquele ônibus, aterrorizando as pessoas. Por outro lado, não se podem justificar todos os atos de um indivíduo considerando apenas sua infância.

10 – Explique o sentido da frase “Nem tudo está perdido” em relação a essa tragédia relatado no texto.

      No texto, simbolizaria que, apesar de todos os acontecimentos terríveis pelos quais passa nossa sociedade atual, ainda há pessoas que têm um comportamento digno e ético, como é o caso das jovens do ônibus.798

ARTIGO DE OPINIÃO: VIOLÊNCIA NA TV E COMPORTAMENTO AGRESSIVO - DRAUZIO VARELLA - COM GABARITO

 Artigo de opinião: VIOLÊNCIA NA TV E COMPORTAMENTO AGRESSIVO

                  Drauzio Varella

        Nunca se assistiu a tanta violência na televisão como nos dias atuais. Dada a enormidade de tempo que crianças e adolescentes das várias classes sociais passam diante da TV, é lógico o interesse pelas consequências dessa exposição. Até que ponto a banalização de atos violentos, exibidos nas salas de visita pelo País afora, diariamente, dos desenhos animados aos programas de “mundo-cão”, contribui para a escalada da violência urbana?

        Essa questão é mais antiga do que se imagina. Surgiu no final dos anos 1940, assim que a televisão entrou nas casas de família. Nos Estados Unidos, país com o maior número de aparelhos por habitante, a autoridade máxima de saúde pública do país (Surgeon General) já afirmava em comunicado à nação, no ano de 1972: “A violência na televisão realmente tem efeitos adversos em certos membros de nossa sociedade”.

        Desde então, a literatura médica já publicou sobre o tema 160 estudos de campo que envolveram 44.292 participantes, e 124 estudos laboratoriais com 7.305 participantes. Absolutamente todos demonstraram a existência de relações claras entre a exposição de crianças à violência exibida pela mídia e o desenvolvimento de comportamento agressivo.

        Ao lado deles, em 2001, foi publicado um estudo interessantíssimo numa das mais importantes revistas de psicologia, que evidenciou efeitos semelhantes em crianças expostas a videogames de conteúdo violento. Em fevereiro de 2002, Jeffrey Johnson e colaboradores da Universidade de Columbia publicaram na revista Science os resultados de uma pesquisa abrangente que estende as mesmas conclusões para adolescentes e adultos jovens expostos diariamente às cenas de violência na TV.

        A partir de 1975, os pesquisadores passaram a acompanhar um grupo de 707 famílias, com filhos entre um e dez anos de idade. No início do estudo, as crianças tinham em média 5,8 anos e foram seguidas até 2000, quando atingiram a média de 30 anos.

        Nesse intervalo de tempo, periodicamente, todos os participantes e seus pais eram entrevistados para saber quanto tempo passavam na frente da televisão. Além disso, respondiam a perguntas para avaliar a renda familiar, a possível existência de desinteresse paterno pela sorte dos filhos, os níveis de violência na comunidade em que viviam, a escolaridade dos pais e a presença de transtornos psiquiátricos nas crianças, fatores de risco sabidamente associados ao comportamento agressivo.

        A prática de atos agressivos pelos jovens foi avaliada por meio de sucessivas aplicações de um questionário especializado e de consulta aos arquivos policiais. Depois de cuidadoso tratamento estatístico, os autores verificaram que, independentemente dos fatores de risco citados acima, o número de horas que um adolescente com idade média de 14 anos fica diante da televisão, por si só, está significativamente associado à prática de assaltos e à participação em brigas com vítimas e em crimes de morte mais tarde, quando atinge a faixa etária dos 16 aos 22 anos. Essa conclusão vale para homens ou mulheres, mas não vale para os crimes contra a propriedade, como furtos e vandalismo, que aparentemente parecem não guardar relação com a violência presenciada na TV.

        Conclusões idênticas foram tiradas analisando-se o número de horas que um jovem de idade média igual a 22 anos (homem ou mulher) dedica a assistir à televisão: quanto maior o número de horas diárias, mais frequente a prática de crimes violentos. Entre adolescentes e adultos jovens expostos à TV por mais de três horas por dia, a probabilidade de praticar atos violentos contra terceiros aumentou cinco vezes em relação aos que assistiam durante menos de uma hora.

        O estudo do grupo de Nova York é importante não só pela abrangência (707 famílias acompanhadas de 1975 a 2000) ou pela metodologia criteriosa, mas por ser o primeiro a contradizer de forma veemente que a exposição à violência da mídia afeta apenas crianças pequenas. Demonstra que ela exerce efeito deletério sobre o comportamento de um universo de pessoas muito maior do que aquele que imaginávamos.

        Apesar do consenso existente entre os especialistas de que há muito está caracterizada a relação de causa e efeito entre a violência exibida pelos meios de comunicação de massa e a futura prática de atos violentos pelos espectadores, o tema costuma ser abordado com superficialidade irresponsável pela mídia, como se essa associação ainda não estivesse claramente estabelecida.

        Em longo comentário ao artigo citado, na revista Science, Craig Anderson, da Universidade de Iowa, responsabiliza a imprensa por apresentar até hoje como controverso um debate que deveria ter sido encerrado anos atrás. Segundo o especialista, esse comportamento é comparável ao mantido por décadas diante da discussão sobre as relações entre o cigarro e o câncer de pulmão, quando a comunidade científica estava cansada de saber e de alertar a população para isso.

        Seis das mais respeitadas associações médicas americanas (entre as quais as de pediatria, psiquiatria, psicologia e a influente American Medical Association) publicaram, em 2001, um relatório com a seguinte conclusão sobre o assunto: “Os dados apontam de forma impressionante para uma conexão causal entre a violência na mídia e o comportamento agressivo de certas crianças”.

        As associações médicas e a imprensa brasileira dariam importante contribuição ao combate à violência urbana se trouxessem esse tema a debate.

Drauzio Varella. In: Folha de S. Paulo, 4 maio 2002. p. E – 10. Folha ilustrada.

Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 174-5.

Entendendo o artigo de opinião:

01 – Como você percebeu, esse texto jornalístico tem estrutura dissertativa. Em três parágrafos, reescreva as ideias principais de cada parte do texto em questão: faça um resumo da introdução, explique como o autor desenvolve o texto e a que conclusão ele chega.

      Introdução: o autor expõe claramente o que vai falar. A violência, mais do que nunca, invade os lares pela tela da tevê, vista principalmente por crianças por um longo período diário. Até que ponto a banalização da violência pode ter efeitos negativos sobre a sociedade.

      Desenvolvimento: cita dados numéricos de pesquisas realizadas sobre o assunto. Muitos estudos já provaram que existe uma relação direta entre a violência virtual e o desenvolvimento do comportamento agressivo nas crianças. A publicação em 2002 de um estudo recente, realizado a partir de 1975, num grupo de 707 famílias, com filhos entre um e dez anos (que, ao final do estudo, atingiram a média de 30 anos), vem comprovar essa relação, estendendo-a aos jovens. Excetuando-se crime contra a propriedade, tanto para adolescente como para jovens adultos, a pesquisa, a partir de criteriosa metodologia, comprovou que, quanto maior o número de horas diante da tevê, maior a ocorrência, na vida dessas pessoas, de brigas com vítima e crimes de morte.

      Conclusão: critica imprensa e associações médicas do consenso sobre a existência da conexão causal entre a violência na mídia e o comportamento agressivo das pessoas, a imprensa apresenta o assunto como controverso, omite-se ou não dá a ele o devido destaque.

02 – Que estratégia o autor usou para conseguir provar o que queria?

      O autor usa dados numéricos irrefutáveis, descrevendo pesquisa realizada por estudiosos da universidade de Colúmbia, por mais de vinte anos.

03 – O autor afirma que, mesmo havendo consenso sobre os efeitos negativos da programação violenta da tevê sobre os jovens, o “tema costuma ser abordado com superficialidade irresponsável pela mídia, como se essa associação ainda não estivesse claramente estabelecida”. A que poderia ser atribuída essa omissão?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Considerar os interesses que estão em jogo: das empresas anunciantes e das empresas jornalísticas que muitas vezes mantêm canais de televisão, sem contar os interesses inconfessáveis de alguns que se beneficiam com a manutenção dessa situação.

04 – De acordo com o texto de Varella, as cenas de programas de tevê citadas no texto anterior seriam prejudiciais ao telespectador? Por quê?

      Sim. Segundo ele, a sequência de cenas apresentadas interferiria no comportamento da personagem.

CRÔNICA: CARTA AO PREFEITO - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: Carta ao Prefeito

               Rubem Braga

        Senhor Prefeito do Distrito Federal:

        Eu sou um desses estranhos animais que têm por habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me, pois, com o devido respeito.

        Sou um monstro de resistência e um técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes de tudo, um forte. Se às vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e desconfortos (certa vez inventei até ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz) a verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.

        Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boates desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.

        Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou mesmo um lotação e ir dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os historiadores do futuro, estupefatos, chamarão a Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo várias viagens na Central. Eu sou um bravo, senhor.

        Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que, embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.

        Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca.

        Prometestes, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.

        Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e libertando Vargas.

        Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito precisado. Obrigado, Senhor.

Rubem Braga – Rio, junho de 1951.

Rubens Braga. Carta ao prefeito. São Paulo: Ática, 1979. p. 43-4. (Para gostar de ler, 4).

Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 112-3.

Entendendo a crônica:

01 – A crônica que você leu foi escrita em forma de uma carta. Está endereçada ao prefeito do Distrito Federal (na época, o Rio ainda era o Distrito Federal). Que cuidados em relação à linguagem o autor tomou, para fazer a carta parecer verdadeira?

      O autor dirige-se a um interlocutor, a quem ele chama de “senhor”, e usa a segunda pessoa do plural. Escreve em primeira pessoa e inicia seu texto com a evocação: “Senhor prefeito do Distrito Federal”.

02 – Explique como o autor consegue fazer críticas contundentes à administração da cidade, sem atacar diretamente as autoridades.

      Ele usa a ironia: diz exatamente o contrário do quer fazer parecer. Faz os piores ataques à administração da cidade, ao mesmo tempo que elogia o prefeito.

03 – Raramente os políticos cumprem o que prometem, mas o prefeito do Rio acabou com as inundações e mereceu os elogios do cronista. Você concorda com essa afirmação? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno: Sugestão: O aluno deverá discordar. Dizer que o prefeito atendeu seu pedido providenciando o final das chuvas para acabar com as inundações também é ironia.

04 – Relendo os três últimos parágrafos do texto, a quem seria possível atribuir o pronome de tratamento “senhor” utilizado pelo autor?

      Nos três últimos parágrafos do texto, fica claro que o “senhor” não é o prefeito. Pode ser uma referência a um ser sobrenatural poderoso, que teria poderes sobre a natureza.

05 – Na sua opinião, o que seria administrar à maneira suíça? E viver à maneira carioca?

      Administrar à maneira suíça seria administrar uma cidade como se ela fosse de primeiro mundo; viver à maneira carioca seria viver num país de terceiro mundo.

06 – Na “Carta ao Prefeito”, escrita em junho de 1951, Rubem Braga faz referência à “Batalha do Rio de Janeiro”. Comparando esse texto com os acontecimentos citados em “As meninas da linha 174 – um elogio”, a que conclusões é possível chegar?

      Pode-se concluir que a violência no Rio de Janeiro, já descrita em 1951, continua, apresentando-se de forma ainda mais acentuada.

07 – Verifique se a descrição do Rio de Janeiro, da forma feita pelo autor, corresponde ao conceito de cidade elaborado pela classe na abertura da unidade.

      Provavelmente, não haverá correspondência. O conceito de cidade, elaborado pela classe, deve referir-se à cidade como um lugar no qual o cidadão poderá viver em condições dignas.

NOTÍCIA(FRAGMENTO): BOTOX, LASER, PEELING, VAIDADES E BADALAÇÕES - MARCELLA CENTOFANTI - COM GABARITO

 Notícia: Botox, Laser, Peeling, vaidades e badalações

             Marcella Centofanti

Quem são os dermatologistas mais requisitados da cidade e o que eles oferecem aos clientes em busca de uma pele mais jovem e bela

        Na busca da beleza e da juventude, cada vez mais as paulistanas – e os paulistanos – estão batendo na porta do consultório de um tipo de especialista em medicina quase inexistente há poucos anos: os chamados dermatologistas cosmiátricos. Quem os procura sonha ter outra vez, sem recorrer ao bisturi, uma pele elástica, bela, com poucas rugas e tão jovem quanto possível. Mais baratos e menos doloridos que as plásticas, os procedimentos aplicados e ensinados retardam as intervenções cirúrgicas. Um dos mais populares, a toxina botulínica (conhecida como Botox), completa uma década de uso cosmético neste ano. São Paulo é um centro de referência no assunto. A cidade concentra 909 médicos da área, um quinto de todos os que trabalham no país. [...] Estão todos visivelmente ricos. Badalados, chegam a cobrar 360 reais por consulta, não trabalham com convênios e, ainda assim, os interessados podem esperar perto de um ano para ser atendidos. São vaidosos assumidos. Alguns, um pouco além da conta. Aparecem com tanta frequência que vários deles foram convocados para dar explicações ao Conselho Regional de Medicina. Seus consultórios, em endereços nobres da capital, são um espetáculo. Amplos e bem decorados, oferecem manobrista, copeiro, computador conectado à internet na sala de espera, bolachas e pipoca.

        [...].

Marcella Centofanti. Veja SP, ano 35, n° 12, 27 mar. 2002. p. 12.

Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 74-5.

Entendendo a notícia:

01 – A parte da notícia focalizada, embora não se refira à busca por cirurgiões plásticos, apresenta dois aspectos em comum com o gráfico que você analisou anteriormente. Quais?

      Os dois aspectos em comum são: Aumenta significativamente o número de pessoas que procura a medicina estética; Aumenta também o número de homens interessados em melhorar a aparência.

02 – Considere o número de médicos que atendem em São Paulo. Por que a concentração ocorre nessa cidade?

      Provavelmente, porque nessa cidade estão as pessoas que têm dinheiro para pagar o tratamento.

03 – É natural que esses especialistas também sejam vaidosos? Por quê?

      Sim. Eles precisam mostrar aos clientes que o tratamento oferecido é realmente eficaz e ser cobaias deles mesmos. Além disso, o fato de terem escolhido esse ramo da medicina já demonstra que se interessam pela aparência.

04 – Que explicações o Conselho Regional de Medicina poderia estar exigindo desses especialistas?

      Provavelmente, precisam explicar que seu interesse não é apenas estético e financeiro, mas que também pensam na saúde de seus pacientes. Afinal, são médicos e não estrelas da mídia.

TEXTO: O DICIONÁRIO - HELOÍSA PIRES LIMA - COM GABARITO

 Texto: O dicionário

            Heloísa Pires Lima

        Entrei na biblioteca e abri o dicionário do Aurélio. Procurei a palavra negro e entre seus significados estavam estes: "sujo, encardido", "triste", "maldito". Mais embaixo vinha negrura, palavra que podia ser associada à ideia de crueldade, perversidade, ruindade, falta, erro, culpa. Saí da sala achando que ser negro não era muito bom não.

        Passei pela secretaria e uma moça falava em tom de desespero. "A coisa está preta!" Pensei então: "Assim eu não vou querer ser nem negra e nem preta".

        Mas aí me empinei toda e fui perguntar à professora se não estava errado o dicionário e as pessoas falarem que o escuro é ruim. A professora também era escura e disse: "É preciso prestar atenção à semântica! Ela é uma prática para justificar a superioridade de uma população sobre outra, desprezando-a cotidianamente em pequenas fórmulas de associações negativas".

        Com o tempo, entendi direitinho: o sentido que nós damos às palavras indica o modo como vemos o mundo, traduz o que achamos das coisas. Se alguém diz, por exemplo, que fulano "fez um serviço de preto", isso quer dizer que no fundo a pessoa acha que todas as pessoas negras sempre fazem trabalhos malfeitos. E isso por acaso é verdade? (Não, é racismo.)

        Com o tempo, entendi também que o dia só existe se existe a noite. E que os dois são iguais. Sombra é bom quando tem muita luz e luz é bom quando está muito escuro. O petróleo é negro e não é sujo, o carvão é preto e faz fumaça branca, e eu pensei em tantos opostos que se equilibram que... deu um branco na minha cabeça!

Heloísa Pires Lima. Histórias da Preta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1998. p. 54.

Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 56.

Entendendo o texto:

01 – Que pontos comuns existem entre o depoimento de Wilson da Silva e o texto que você acabou de ler?

      Ambos citam fatos que demonstram a discriminação contra negros.

02 – Você conhece provérbios, anedotas ou expressões preconceituosas usadas no dia-a-dia que ajudam a perpetuar a falsa ideia de que há povos inferiores a outros? Na sua opinião, por que eles continuam a ser empregados?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Porque essas expressões estão arraigadas na cultura popular e são repetidas pelas pessoas que, muitas vezes, nem sequer se dão conta de seu verdadeiro significado.

03 – Faça uma experiência: procure em um dicionário qualquer o significado da palavra negro (ou preto) e da palavra branco. Escreva uma observação sobre o que você descobriu.

      O aluno descobrirá que, enquanto se atribuem significados negativos a palavras relacionadas a preto, atribuem-se significados positivos a palavras relacionadas a branco: da cor da neve, puro, cândido, translúcido, prateado.

04 – Com base no último parágrafo do texto, escreva sobre os contrastes existentes em nosso mundo e o que eles podem representar para nós.

      Resposta pessoal do aluno: Sugestão: provavelmente escreverão sobre as diferenças e a necessidade de haver essas diferenças para que umas coisas possam complementar outras.

TEXTO(FRAGMENTO): A NOVA E A VELHA ÁFRICA - GEOFFREY PARRINGER - COM GABARITO

 Texto: A NOVA E A VELHA ÁFRICA

        “Há sempre algo de novo em África”, disse o escritor romano Plínio. O aparecimento de novos Estados africanos nas últimas décadas origina frequentemente notícias de primeira página nos jornais, mas as tradições deste continente são tão antigas como quaisquer outras, e algumas das mais remotas formas de vida humana foram recentemente descobertas no vale do Grande Rift, na África Oriental. Existem ainda sobreviventes das raças de pigmeus e bosquímanos, povos dos mais antigos da história humana. E, por detrás das modernas doutrinas políticas, há inúmeros mitos e lendas que constituem parte fundamental da maneira de pensar das populações africanas.

        A África é um vasto continente, que se divide naturalmente em duas partes principais. O chamado Norte de África, que se estende do Egipto a Marrocos, e da foz do Nilo até à Etiópia, pertence na sua maior parte ao mundo mediterrânico e tem como religiões básicas o Cristianismo e o Islamismo, que determinam mentalidades e histórias próprias. O deserto do Saara e as florestas tropicais formavam uma barreira intransponível aos europeus, que procuravam conhecer o resto da África, até que os portugueses, na saga dos descobrimentos, contornaram o cabo da Boa Esperança, no final do século XV.

        [...]

        As mitologias grega e indiana são apoiadas por vasta literatura, nascida de tradições orais preservadas em livros, escritos ao longo dos séculos. Para se ficar a conhece-las, é suficiente ler essas obras. No estudo da mitologia africana surge logo à partida um obstáculo de monta: não há livros antigos. Há incontáveis histórias, já que todas as raças africanas adoram conta-las, mas que nunca foram passadas ao papel até aos tempos modernos. E mesmo as coleções hoje existentes estão incompletas.

        [...]

        Como a arte era a única “escrita” conhecida em toda a África Tropical, foi usada para interpretar a vida em todos os seus aspectos. Foi aplicada na vida religiosa, que aliás não se dissociava de outras facetas da vida, para dar significado e função espiritual a objetos destinados em cerimónias ou mesmo em ritos individuais. Foi usada para ilustrar provérbios e para expressar a sabedoria popular. Deste modo, a arte africana proporciona uma espécie de literatura sacra, realçando a beleza e a solenidade da face do homem. É profundamente expressiva e, no entanto, modesta. Não existem grandes templos desafiando os céus, pois a falta de pedras macias e a inexistência de explosivos para quebrar as rochas graníticas eram realidades inelutáveis. A arte africana preocupa-se com a vida humana: os rostos e imagens retratam a natureza do homem e as suas atividades. O homem e a mulher como um casal, às vezes como gémeos, indicam o núcleo da família africana; mesmo quando a poligamia é prática corrente, o casal continua a ser a unidade básica. A interdependência entre o homem e a mulher é fielmente retratada, tanto na escultura como na mitologia.

Geoffrey Parringer. África; Biblioteca dos grandes mitos e lendas universais. Trad. Raul de Sousa Machado. Lisboa: Verbo, 1987. p. 7-9.

          Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 50-2.

Entendendo o texto:

01 – Qual a grande contradição atual do continente africano?

      A convivência simultânea do antigo (mitos, lendas, maneiras de pensar) com o moderno (novas doutrinas políticas).

02 – Que descobertas recentes obrigaram o mundo ocidental a repensar seu preconceito contra a África?

      As mais remotas formas de vida humana foram encontradas em escavações na África.

03 – Veja a frase: “Por ser uma sociedade ágrafa, a África não pôde preservar suas tradições”. Você concorda com essa afirmação? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Não, uma vez que, mesmo não tendo escrita, a cultura africana preservou-se por meio da oralidade ou da arte.     

04 – Qual o papel da arte na cultura africana?

      A arte tornou possível a interpretação da vida africana em todos os seus aspectos.

05 – O que o caráter humanístico da arte africana nos revela sobre esse povo?

      A beleza, a grandeza do africano está na sua simplicidade e religiosidade.

06 – “Traduza” a palavra poligamia a partir dos radicais gregos que a compõem.

      Poli = muitos; gamia = casamento.

07 – O que os adjetivos intransponível e inelutável têm em comum? O que poderia facilitar a compreensão do significado dessas palavras?

      Ambos têm prefixo in-, indicando negação, e sufixo –vel, indicando possibilidade de praticar ou sofrer uma ação. Detendo-nos no radical, poderíamos entender as palavras como: intransponível = o que não pode ser transposto; inelutável = aquilo contra o que não se pode lutar.

08 – Encontre no texto uma palavra cujo plural não segue a orientação geral e não aparece no final. Procure descobrir como essa palavra se formou para entender o plural diferente.

        A palavra quaisquer tem plural em seu interior e não no final porque é formada pelo pronome qual (que faz plural quais), seguido do verbo querer conjugado no presente do indicativo.

09 – Você já trabalhou com textos expositivos nas séries anteriores. Já sabe, portanto, que determinadas construções são comuns nesse tipo de texto. É o caso de frases formadas com o verbo haver, empregado com o sentido de existir, e com verbos na voz passiva. Identifique no texto frases em que isso ocorre e explique em seu caderno as razões do emprego desse tipo de construção.

      “... há inúmeros mitos e lendas que constituem...”; “Há incontáveis histórias ...”; “Foi usada para interpretar a vida”; “Foi aplicada na vida religiosa ...”.

      Nos textos expositivos, costumam-se afirmar fatos sem atribuí-los a um sujeito gramatical, como se eles tivessem vida própria. Daí o emprego constante do verbo haver, no sentido de existir. O emprego do sujeito paciente, na voz passiva, também se justifica pelo fato de não se julgar importante citar o agente da ação, frequentemente omitido nesse tipo de construção sintática.

10 – O trecho do livro “África” que você leu foi traduzido em Portugal.

a)   Identifique nele uma construção típica da sintaxe lusitana.

“Para se ficar a conhece-las, é suficiente ler essas obras”.

b)   Reescreva-a de forma abrasileirada.

No Brasil, seria mais comum dizer-se: Para que se possa conhece-las, é suficiente ler essas obras.

11 – Você conhece palavras pertencentes ao português de Portugal que não são aqui utilizadas ou que no português do Brasil têm outro significado? Cite algumas, se souber.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Bicha no lugar de fila; Autocarro no lugar de ônibus; Autogolo que para nós é gol contra; Pastilhas elásticas é chiclete; Rebuçado é pirulito; Capachinho é peruca e Papai Natal é Papai-Noel.

REPORTAGEM: DOIS PRINCÍPIOS BÁSICOS (FRAGMENTO) - FOLHA DE S.PAULO - COM GABARITO

 Reportagem: Dois princípios básicos (fragmento)

Texto 1

        O Brasil teve uma das maiores expansões da rede escolar em todo o mundo, mas a massificação do ensino reduziu drasticamente a qualidade das escolas e os salários dos professores. Diante das necessidades, o país ainda investe pouco em educação. As taxas de repetência são as maiores do mundo. No entanto, o maior problema é a ineficiência dos recursos empregados.

        [...]

País desperdiça recursos para a educação. In: Folha de S. Paulo, 31 jul. 1994. Especial A-8.

Texto 2

        De cada cem alunos que se matriculam na 1ª série de uma escola de 1° grau, apenas 12 chegam ao terceiro colegial e seis sobrevivem como alunos até o curso superior. O prêmio que espera essa meia dúzia de bravos que conseguiu avançar, a despeito de obstáculos sociais, econômicos e pedagógicos, não será um recompensador curso de engenharia, medicina ou odontologia numa boa universidade do governo. O mais certo é que desses seis sobreviventes apenas dois cheguem a frequentar o curso que desejam numa universidade federal ou estatal conceituada.

A máquina que cospe crianças. In: Veja, 20 nov. 1991. p. 46.

        Fonte: Português em outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo, 2002. 4ª edição. p. 17-8.

Entendendo a reportagem:

01 – De quantos períodos é formado o parágrafo do texto 1? Eles são simples ou compostos?

      O parágrafo é formado por quatro períodos: o primeiro é composto; os demais são simples.

02 – Como é feita a articulação entre as orações? E entre os períodos?

      No primeiro período, é a conjunção mas que faz a articulação entre as orações. Existem pontos finais separando os períodos e o último começa com a locução conjuntiva no entanto.

03 – Que processo de composição foi utilizado na construção desse parágrafo?

      Foi utilizado o processo de coordenação.

04 – E quantos períodos compõem o texto 2?

      O texto 2, é composto de três períodos.

05 – O que você nota quanto:

a)   À extensão dos períodos?

Os períodos deste parágrafo são mais extensos que os do parágrafo anterior.

b)   À organização das orações?

A organização das orações é diferente daquela do outro parágrafo. Observar que há conectivos ligando umas orações às outras e que umas dependem das outras, exercendo funções sintáticas em relação a um termo da oração anterior.

 

 

REPORTAGEM: AS MONTANHAS SAGRADAS - MARIA EMÍLIA COELHO - COM GABARITO

 Reportagem: AS MONTANHAS SAGRADAS

                  A vida nos vales e picos nevados dos Andes peruanos é quase a mesma do tempo dos incas. Mas tudo pode mudar com o aquecimento global

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  A vida nos vales e picos nevados dos Andes peruanos é quase a mesma do tempo dos incas. Mas tudo pode mudar com o aquecimento global

Maria Emília Coelho

        Passo lento e respiração profunda. Em meio ao ar rarefeito e à cegueira branca de uma nevasca, surge Nicolasa. A menina caminha firme atrás da vaca desgarrada do rebanho. Acredita que os apus, ou os espíritos das montanhas, encontram-se ao seu lado e vão ajudá-la a recuperar o animal perdido. Estamos a 5 mil metros de altitude, a caminho de Ausangate, um dos picos nevados da Cordilheira Vilcanota, uma das zonas mais inóspitas dos Andes peruanos. Justamente por isso, é um lugar onde as comunidades rurais experimentam poucas mudanças nos costumes ancestrais. As formações gigantes, imponentes e disformes, respeitosamente chamadas de apus, ocupam o topo do panteão das divindades incas. Aqui, são as montanhas que mandam, logo descubro, enquanto o ar penosamente enche meus pulmões.

        Nossa caminhada por esse solo sagrado começou na tarde anterior. Depois de três horas de ônibus a partir de Cuzco (a antiga capital inca), colocamos o pé no chão quando alcançamos o vale de Pitumarca. A partir desse ponto, são cinco dias sem energia elétrica, banho quente e comunicação com o resto do planeta. Nosso objetivo é percorrer uma rota ainda pouco conhecida de 52 quilômetros de subidas e descidas, entre comunidades indígenas e picos nevados, até o topo, pela face sudeste do apu.

        Além de ostentar o título de maior montanha do sul do Peru, com 6.384 metros, Ausangate é sagrada para os descendentes dos incas. Trata-se de uma espécie de chege dos apus, uma autoridade suprema entre todas as montanhas. Não é pouca coisa. Na comunidade de Chillca, a 4.300 metros de altitude, os nativos contam que o apu todo-poderoso chegou a decidir batalhas para os incas diante dos invasores espanhóis. Certa vez, teria lançado uma tempestade de granizo vermelho e de relâmpagos sobre os soldados, enquanto o povo se escondia da fúria de suas armas. “Graças ao apu, nossos cultivos e animais estão bonitos e saudáveis”, declara o músico Orlando Garcia, líder da comunidade.

BERÇO DE LHAMAS E ALPACAS

        Ao longo do caminho, enquanto avançamos pela planície alva do vale de Pampa Uyuni, bando de lhamas e alpacas aparecem para compor o cenário. Diz a lenda que as lagoas da região são o berço sagrado desses animais, símbolos maiores dos Andes. Os pastores de Ausangate estão entre os pioneiros na domesticação dos camelídeos. A atividade, que rende lã e carne, é a principal fonte de renda da população local. No entanto, está sendo abandonada pelos jovens. Ao pararmos para conversar com uma família isolada nas alturas, o patriarca explica que os mais novos preferem arriscar a vida em cidades como Cuzco e Lima em busca de trabalho e de uma vida com mais “comodidades”.

        A vida nessas alturas é de fato difícil. À medida que subimos, o clima fica mais frio e o ar mais rarefeito. A respiração parece falhar na óbvia tarefa de levar ar aos pulmões. As nuvens ganham espaço e o azul do céu pouco a pouco vira cinza. É possível sentir grau a grau a temperatura cair até o tempo fechar de vez. Os vapores de água da atmosfera se congelam e a neve vem abaixo. O frio vence as roupas, a pele, a carne e chega aos ossos. O fôlego some a cada passo, mas a beleza do lugar faz esquecer o cansaço. Tudo para chegar a Machucaray, a 4.800 metros de altura, ao pé do poderoso nevado.

        A paisagem branca do Quelccaya, o nevado de 5.470 metros que avistamos, me faz lembrar do documentário Uma Verdade Inconveniente, do vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, vencedor do Oscar. A montanha, considerada o maior glaciar tropical do mundo, é um exemplo dos estragos decorrentes do processo de aquecimento global, provocado pela crescente emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo os cientistas, o ritmo de derretimento do Quelccaya aumentou dez vezes nos últimos 15 anos. Estudos do geólogo americano Lonney Thompson, que investiga o fenômeno no Peru desde 1974, apontam que, a longo prazo, o degelo afetará o clima e o abastecimento de água para 70% da população do país.

A AMEAÇA AO GELO DAS MONTANHAS

        Para os nativos da região, no entanto, os efeitos das mudanças climáticas provocadas pelo homem já batem à porta. “Estamos preocupados”, conta Orlando, diante de uma pequena lagoa formada há poucos anos pelo derretimento do gelo. “Antigamente havia mais picos nevados. Em algumas montanhas, as neves eternas estão desaparecendo”.

        Parece não restar dúvida de que os apus terão muito trabalho para manter geladas as montanhas peruanas. Pensando nisso, acompanho a oferenda à Mãe Terra (Pachamama) protagonizada pelos moradores da montanha. O ritual típico do universo religioso andino consiste em presentear a natureza com vinhos, sementes e folhas de coca, enquanto o xamã ora em quíchua. Nas primeira horas da manhã, as montanhas se colorem de tons ocres – do amarelo ao vermelho, com pitadas de cinza e verde, refletindo o relevo policromático das formações geológicas de 250 milhões de anos. Avistamos as vicunhas, espécie não domesticada de camelídeo andino – uma manada de 21 indivíduos, entre adultos e jovens, dá uma amostra da vida silvestre. A pelagem fina do animal tem alto valor comercial. Por décadas, esteve à beira da extinção por culpa de caçadores ilegais em busca de lã. Uma iniciativa do governo peruano em parceria com as populações indígenas mudou este cenário e a população de vicunhas cresce, em média, 8% ao ano.

O ESPÍRITO DOS VALENTES

        Quando os lhamas aparecem, as vicunhas fogem, assustadas. Nossos olhos então são atraídos por uma formação sedimentária em tons vermelhos, amarelos e cinzas. São pedras gigantes nas quais é possível imaginar, sem muita alucinação, rostos humanos esculpidos. Conta a mitologia inca que o deus sol converteu essas montanhas em soldados, chamados de pururaucas, para defender Cuzco durante a invasão do reino Chanca, antes da chegada dos espanhóis. Segundo a lenda, os guerreiros de pedra representam o espírito dos valentes.

        Nosso destino é ainda mais além: a comunidade de Osefina, a 4.600 metros. Ali, as mulheres usam técnicas imemoriais para produzir tecidos de lã de alpaca. Vivem, praticamente, sem contato com o modo de vida moderna e falam apenas o quíchua. “Gosto quando gente de fora vem conhecer nossa arte”, conta Eulogia Antaccasa, coordenadora da Associação das Tecelãs de Huayna Anta. A ideia do grupo é capacitar suas artesãs para que tecidos tingidos com plantas locais sejam comercializados mundo afora.

        Na caminhada de volta ao vale de Pitumarca, seguimos o caminho das águas presenteadas pelos apus. Elas cortam os Andes e formam o rio Vilcanota, que mais adiante se transforma em urubamba para se encontrar com o Apurimac e formar o Ucayalli. Este flui no sentido norte até se juntar ao Maranõn e dar origem ao nosso rio Amazonas, nas proximidades de iquitos. O destino das águas – das alturas andinas até as terras baixas da Amazônia – é motivo suficiente para saudarmos o Ausangate. Mas a última saudação vem à tona quando fico sabendo que, para os descendentes dos incas, essas águas retornam todas as noites aos Andes pela Via Láctea, conhecida ali como rio das Estrelas.

COELHO, Maria Emília. As montanhas sagradas. Horizonte Geográfico, São Paulo, Horizonte, n° 122, p. 46-53, abril 2009.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 277-9.

Entendendo a reportagem:

01 – O texto lido foi escrito com qual finalidade? Em que suporte (lugar físico ou virtual) ele foi veiculado?

      O texto foi escrito com a finalidade de apresentar informações sobre o impacto do degelo provocado pelo aquecimento global na região dos Andes peruanos. Ele foi veiculado em uma revista temática chamada Horizonte Geográfico.

02 – Releia a linha-fina (ou subtítulo) da reportagem. Que função ela exerce?

      Ela anuncia o conteúdo da matéria jornalística.

03 – Contextualize a frase que dá início à reportagem: “Passo lento e respiração profunda”. Quem é o seu enunciador? A que ela se refere?

      O enunciador é o jornalista responsável pela matéria. A frase se refere à dificuldade enfrentada pelo profissional de caminhar e respirar a 5 mil metros de altitude, na cordilheira Vilcanota.

04 – Segundo o especialista Lonney Thompson, qual é a principal consequência do degelo nos Andes peruanos?

      Segundo o geólogo americano, a longo prazo o degelo afetará o clima e o abastecimento de água para 70% da população do Peru.

05 – Depois da leitura da reportagem, você afirmaria que a religiosidade é uma dimensão importante da vida das comunidades peruanas andinas?

      Sim. O texto faz várias referências à mitologia e aos rituais incas, evidenciando a relação das pessoas com o sagrado.

06 – No texto, pessoalidade e impessoalidade se mesclam para transmitir informações ao leitor. Aponte pelo menos uma passagem de teor mais pessoal e uma de teor impessoal.

      Teor pessoal: “Nossa caminhada por esse solo sagrado começou na tarde anterior.”; teor impessoal: “Os pastores de Ausangate estão entre os pioneiros na domesticação de camelídeos”.