Reportagem: As meninas da linha 174 – um elogio
Dentro do ônibus havia mais sensatez e competência para lidar com situações extremas do que fora
Roberto Pompeu de
Toledo
Nem tudo está perdido. Enquanto houver
gente capaz de escrever ao contrário, num vidro, para que a mensagem possa ser
lida sem esforço por quem está do outro lado, e escrever com correção e
clareza, reproduzindo com precisão o desenho das letras, apesar de
circunstâncias mais do que adversas – não, nada estará perdido. Experimente o
leitor desenhar as letras ao contrário. Talvez já tenha experimentado, num
momento de tédio, enquanto se dava ao desafogo de deitar rabiscos erráticos
numa folha de papel, e então conhece as dificuldades que, mesmo quando se trata
de letras de fôrma, e maiúsculas, as mais fáceis de reproduzir, o exercício
oferece. Algumas letras são iguais, tanto do lado direito quanto do avesso: o
“A”, o “T”, ou o “V”, além do “O” e do “I”, as de formatos mais elementares.
Destas não há do que reclamar. A maioria, porém, exige a habilidade de um
contorcionista da caligrafia.
É preciso lembrar de fazer para a
esquerda o que se fez a vida inteira para a esquerda o que se fez a vida inteira
para a direita – os três dentes do “E”, a base do “L”, a perna e a meia bola do
“R”. De súbito, é preciso conceber uma representação invertida do mundo, como
se, exagerando um pouco, a noite virasse dia, o seco molhado e os machos
fêmeas. É preciso ter em mente que o rabinho do “Q” agora vai para o outro
lado. Porventura a maior dificuldade será não se perder nas curvas do “S”.
Agora imagine-se praticar o exercício de escrever ao contrário sob as ordens de
um alucinado que tem um revólver na mão, e os leitores já sabem de que e de
quem se está falando – do sequestro do ônibus, no Rio de Janeiro, e de Janaína
Lopes Neves, uma das reféns, obrigada a escrever com batom, nas janelas do
veículo, as mensagens ditadas pelo sequestrador. Uma das mensagens era: “Ele
tem pacto com o diabo. Tem um punhal e o diabo desenhados no braço. Ele vai
matar”. A outra: “Ele vai matar geral às 6hs. Arrancaram a cabeça de sua mãe.”
Não foi esquecida a crase no “às 6 horas”.
Nada pode distrair da tragédia que
acometeu o ônibus da linha 174, Gávea-Central do Brasil, na parada do Jardim
Botânico. Nada pode aliviar o choque da morte de Geisa Firmo Gonçalves,
sacrificada no bojo de uma das mais grotescas manifestações de incompetência
policial já encenadas sobre a orbe terrestre. Mas olhemos em volta. O drama
teve outros personagens. Janaina, de 23 anos, natural de Campo Grande e
estudante de administração na PUC do Rio, ao escrever as mensagens, uma
demonstração de autocontrole de humilhar os profissionais da polícia, ainda
que, por dentro, não parasse de rezar e achasse que ia morrer. Nem tudo está
perdido.
O sequestro do ônibus 174 foi o
sequestro das meninas. A elas é que o sequestrador agarrava, o revólver
apontando-lhes para a nuca ou a têmpora, quando não enfiado na boca. Se não era
Janaína era Geisa, se não era Geisa era Luanna, num sinistro baile em que não
poderia haver maior desgraça do que ser tirada para dançar. Mas eram meninas de
estofo, e quanto, aquelas. Elas se provariam capazes de enfrentar a emergência
indizível que viviam. Geisa, cearence de 20 anos professora de artes das
crianças da Rocinha, deu-se, antes de ser arrastada de encontro a um perigo
ainda maior do que um alucinado de revólver, que é a incompetência da polícia,
à iniciativa de pedir ao sequestrador, e obter dele, a libertação da amiga com
quem viajava, mais velha e muito nervosa. Janaína foi vítima de um fuzilamento
simulado: a certa altura o sequestrador forçou-a a se deitar no chão e disparou
um tiro que, até o último milionésimo de segundo, ela pensou que fosse mesmo
acertá-la. Nem por isso aniquilou-se emocionalmente. Luanna Guimarães Belmont,
estudante de comunicações da PUC, e a mais novinha do grupo – 19 anos –, ajudou
a pôr um pouco de ordem no caos, ao dispor-se a recolher para o bandido o
dinheiro, colares e relógios dos passageiros e ao tentar o tempo todo acalmar
as pessoas. As três vieram de diferentes partes, com diferentes histórias,
para, num momento de suprema provação, terem como ponto comum um comportamento
lúcido e altivo. A Luanna, numa declaração ao Jornal do Brasil, coube a frase
definitiva sobre um sequestrador destrambelhado, menino de rua desde os sete
anos, sobrevivente da chacina em que oito companheiros foram mortos pela
polícia em frente à Igreja da Candelária, em julho de 1993: “Não desejei a
morte dele, só queria que ele nunca tivesse existido”.
Há muitas razões para desânimo, numa
hora dessas. O episódio em si é a maior. Segue-se a parlapatice das promessas
de reformas e providências que, sabe-se, nunca virão, e de anúncios de planos
de segurança que, adivinha-se, nunca vão fundo, e, se forem não se terá coragem
de implementar. Fiquemos com as meninas – com Janaína e Luanna, pelo menos, uma
vez que com Geisa não é mais possível. Elas convidam a um olhar sobre o
episódio na direção inversa das mensagens nos vidros. Dentro do ônibus havia
mais sensatez e competência para lidar com situações extremas, sem falar de
mais sensibilidade e humanidade, do que do lado de fora.
Roberto Pompeu de
Toledo. Veja, ano 33, n° 25, 21 jun. 2000. p. 170.
Fonte: Português em
outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo,
2002. 4ª edição. p. 109-111.
Entendendo a reportagem:
01 – Escreva em um parágrafo
o assunto desse ensaio.
O autor comenta,
de forma sarcástica, o sequestro de um ônibus da linha 174, na cidade do Rio de
Janeiro, no qual um marginal mantém passageiras como reféns. Após longo período
de tensão e violência dentro do ônibus, uma delas, de 20 anos, acaba morrendo
no momento em que o sequestrador se entrega, por inabilidade policial.
02 – Observe que o autor
inicia seu texto com uma frase que é, posteriormente, retomada com pequenas
alterações e depois repetida literalmente. Por que ele faz isso?
Essa é uma forma de estabelecer coesão no
texto.
03 – Observe ainda que os
dois primeiros parágrafos são destinados a considerações sobre as dificuldades
em se escrever uma mensagem ao contrário. Você acredita que o autor usaria
praticamente metade de seu espaço na coluna para falar ingenuamente sobre as
mudanças das letras invertidas? Que outra dimensão adquirem esses parágrafos,
quando se considera o todo do texto? (Leia, principalmente, o último
parágrafo).
Não. É claro que o autor não quer apenas
comentar o fato de Janaína ter habilmente escrito as mensagens com as letras ao
contrário. Ele quer mostrar que as garotas, mesmo sendo bem jovens, tiveram o
equilíbrio necessário para enfrentar situação tão tensa, enquanto, do lado de
fora, policiais experientes não souberam ter a calma necessária para conduzir a
situação de maneira satisfatória. O autor fala em “representação invertida” do
mundo: as letras ao contrário seria uma forma emblemática de dizer que está
tudo ao contrário do que deveria estar.
04 – No quarto parágrafo, o
autor relata os fatos ocorridos no fatídico sequestro do ônibus. Qual a
diferença entre esse relato e a notícia do fato propriamente dito, que deve ter
circulado nos principais jornais do país no dia do acontecimento?
O autor relata o
fato de maneira extremamente subjetiva, deixando transparecer toda sua
indignação. Os jornais provavelmente publicaram notícias sobre o fato,
relatando-o da forma como ocorreu, sem comentários apreciativos.
05 – Segundo o articulista,
o que é pior que a violência do sequestrador?
A incompetência
da polícia.
06 – Que críticas são feitas
no texto? E especialmente contra quem?
As críticas são
feitas ao governo, aos responsáveis pela segurança, à polícia e aos policiais.
07 – “Fiquemos com as
meninas”; o elogio final do autor para as duas jovens (já que “com Geisa não é
mais possível”) contrasta com qual ideia?
O elogio às
meninas contrasta com a crítica às autoridades que permitiram que chegássemos a
esse estágio de violência.
08 – De que maneira os
conceitos de cidadania e cidadão poderiam ser aplicados aos envolvidos na
tragédia relatada no texto?
Os passageiros do
ônibus não tiveram seus direitos de cidadãos preservados; foram brutalmente
atacados pelo sequestrador. Esse, por sua vez, também teve seu direito à
educação ignorado; ele não foi tratado pela sociedade como cidadão. Nenhuma das
pessoas envolvidas no incidente goza de sua cidadania.
09 – Na sua opinião, a
história de vida do sequestrador justifica sua atitude?
Em parte, sim. Talvez se ele tivesse tido
oportunidades de estudar, preparar-se para o futuro, não estaria naquele
ônibus, aterrorizando as pessoas. Por outro lado, não se podem justificar todos
os atos de um indivíduo considerando apenas sua infância.
10 – Explique o sentido da
frase “Nem tudo está perdido” em
relação a essa tragédia relatado no texto.
No texto, simbolizaria que, apesar de
todos os acontecimentos terríveis pelos quais passa nossa sociedade atual,
ainda há pessoas que têm um comportamento digno e ético, como é o caso das
jovens do ônibus.798