Reportagem: População afro-brasileira reassume o protagonismo de sua história – Fragmento
Povo
negro busca registrar seu passado de uma perspectiva própria, sem ceder ao
pensamento colonizador, e, assim, visa transformar a atualidade e projetar um
amanhã a partir de sua própria ótica
Por Alex Bessas – 30/06/19 –
03h00
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGS08xbt-K7662sRizop04H_FBwxM-6A2-Rs3NvkJqECdMmYptJHfMx5B_8cn3GrRPlU1aFvzX-CjfmQWcTur_QnGQOxppH2Qvqave8-ZiT8wr1pS-fvIpEgM0jffyO5rb_jQ0xudylsjVw7YN5KdXvk85Yvyq1GOsE43JpLEnvMpQb3B7cQxf9HOnVcE/s1600/AFRO.jpg Quando Olorum ordenou que Oxalá criasse
o ser humano, várias foram as tentativas do orixá. Com o ferro, ficou rígido
demais. Usou a pedra, mas, ficou frio. A água não tomava forma. Tentou o fogo,
e logo a criatura se consumiu em suas chamas. Foi quando Nanã Buruku veio em
seu socorro: ofereceu-lhe a lama. Então, Oxalá moldou as formas humanas, e com
um sopro, Olorum emprestou vida ao homem, que com a ajuda dos orixás, povoou o
mundo. Mas o corpo precisa sempre voltar à terra. Nanã, afinal, deu a matéria
no início, mas a quer de volta ao final.
É assim, pela narrativa da origem do
mundo, extraída do livro “Mitologia dos Orixás” (2001), do sociólogo Reginaldo
Prandi, que Magna Oliveira inicia as aulas do projeto “Iranti: Ser África”,
iniciativa que, desde 2015, busca formar professores em contação de histórias
dos povos negros, promovendo literaturas e oralidades africanas e
afro-brasileiras. Um reforço no sentido de fazer cumprir a Lei 10.639, de 2003,
que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas
escolas de níveis fundamental e médio do Brasil.
De um entendimento mais dilatado, o
projeto encabeçado por Magna pode ser lido como parte de um movimento maior,
que tem ganhado força. Nele, a população negra – que, por efeito da diáspora,
hoje comunga de uma identidade transcontinental – passa a recontar seu próprio
passado para, assim, transformar o presente e projetar um futuro a partir de
uma perspectiva afrocentrada. “Quando estudei, me sentia constrangida com o que
a história dizia sobre o meu povo. Era a parte que queria que passasse mais
rápido! Mas essa não é a nossa história. Essa é a que os colonizadores
escreveram por nós”, explica Magna, que é técnica administrativa.
Valorizando as tradições oral e
literária dos povos negros, ela busca furar as sucessivas camadas discursivas
elaboradas em contexto colonial – o que faz surtir um efeito antirracista e
representa um passo rumo à descolonização do pensamento. “Se, no processo de
formação, todas as referências são brancas, o que acontece é que, para me
referendar, vou buscar me embranquecer. É essa lógica que nós estamos
quebrando”, diz.
“Ainda há resistência em abordar esses
temas dentro da escola, porque não se reconhece a importância da história e da
cultura negra na formação do país – que, embora racista, não se reconhece como
tal”, observa a mestre em educação e professora do Departamento de Educação da
Universidade Federal de Ouro Preto Luana Tolentino. Para ela, projetos como o
“Iranti: Ser África” possibilitam que “jovens e crianças negras valorizem seu
pertencimento racial, construam identidades positivas, se orgulhem de sua
ancestralidade – algo que faz bem à autoestima e vai afetar diretamente o
processo de aprendizagem”, examina ela, que é estudiosa da aplicação da
referida lei federal e diz ser crescente o número de iniciativas do gênero.
Outra perspectiva. Ao
divulgar histórias carregadas de significados, Magna junta-se a um movimento
pelo qual busca, mais que sentir-se representada, produzir uma completa mudança
de perspectiva. Afinal, ao se conhecer outro modo de conceber o mundo, surgem
formas novas de oferecer respostas aos seus problemas, por meio de alternativas
próprias. É no que acredita a MC Tamara Franklin: “Tanto a ficção quanto a
literatura e até as ciências são consumidas de um olhar eurocêntrico. Por isso,
muitos de nós passam a reproduzir posturas que não têm nada a ver com a
compreensão africana”, diz “Eu boto fé nesse movimento, em que estamos nos
reapropriando do que é nosso”, completa a artista.
A história que abre a reportagem é
exemplo dessa mudança de eixo. “As religiões e a filosofia africana trazem, em
si, outra relação com o meio. A natureza não é vista como outro, mas como
parte”, analisa Tamara. Para ela, aliás, a questão vai muito além da
representatividade.
“É comum ouvir que precisamos ocupar
espaços a qualquer custo. Mas a casa-grande tinha muito preto, nem por isso
estava sendo empretecida”, reflete. “O que precisamos é quebrar essa estrutura
– e pensar o futuro sob uma ótica preta é uma forma de começar esse processo”.
E, para ela, para construir essa emergente
perspectiva, é preciso avançar mais. “O povo negro devia receber condições para
estudar a sua própria medicina, seus próprios avanços tecnológicos. Fala-se
muito de África para falar de tradição. Precisamos olhar para a frente, para as
possibilidades de avanço”, defende a MC. “Acredito que a educação afrocentrada
poderia passar por caminhos mais amplos”.
As proposições de Tamara fazem ecoar
formulações do pensador senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986), que pôs em
evidência as contribuições africanas para a humanidade. O autor reivindicava o
vínculo entre o Egito e a África negra e demonstrava como o país egípcio
influenciou a Grécia – considerada berço da civilização ocidental – e o mundo
clássico como um todo. Em suas publicações, Diop indicava a capacidade de
produzir conhecimento e ciência e de se organizarem politicamente, em escala
nacional e continental, aspectos que costumam ser desprezados.
[...]
BESSAS, Alex. População
afro-brasileira reassume o protagonismo de sua história. O Tempo, 30 jun. 2019.
Disponível em: https://www.otempo.com.br/interessa/populacao-afro-brasileira-reassume-o-protagonismo-de-sua-historia-1.2202305.
Acesso em: 23 out. 2020.
Fonte: Coleção Rotas.
Língua Portuguesa. Ensino fundamental. Anos finais. 8º ano/Sandra Moura
Severino (org.) – Brasília: Caderno de atividades – Editora Edebê Brasil, 2020.
p. 13-14.
Entendendo a reportagem:
01 – Qual é o objetivo central do movimento atual da
população negra, conforme o título e o primeiro parágrafo da reportagem?
O objetivo
central é reassumir o protagonismo da sua história, buscando registrar seu passado
a partir de uma perspectiva própria (afrocentrada), sem ceder ao pensamento
colonizador, para, assim, transformar a atualidade e projetar um futuro.
02
– De acordo com a narrativa de origem do mundo utilizada por Magna Oliveira,
qual orixá socorreu Oxalá e ofereceu o material para a criação do ser humano?
Que significado essa narrativa tem em relação à matéria e ao ciclo da vida?
O orixá que
socorreu Oxalá foi Nanã Buruku, que ofereceu a lama como matéria para moldar as
formas humanas. O significado é que o corpo precisa voltar à terra, pois Nanã,
que deu a matéria no início, a "quer de volta ao final", simbolizando
o ciclo da vida e morte.
03
– Qual é o propósito da Lei 10.639, de 2003, e como o projeto "Iranti: Ser
África" se relaciona com ela?
A Lei 10.639/2003
tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas
de níveis fundamental e médio do Brasil. O projeto "Iranti: Ser
África" atua como um reforço no sentido de fazer essa lei ser cumprida,
formando professores para promover literaturas e oralidades africanas.
04
– Segundo a MC Tamara Franklin, qual é a principal consequência de consumir
ficção, literatura e até ciências a partir de um olhar eurocêntrico?
A principal
consequência é que muitos passam a reproduzir posturas que "não têm nada a
ver com a compreensão africana", indicando a adoção de perspectivas
culturais e ideológicas desalinhadas com sua ancestralidade.
05
– Qual efeito o trabalho de valorização das tradições oral e literária dos
povos negros, como o de Magna Oliveira, produz em relação ao contexto colonial,
e qual lógica se busca quebrar?
O trabalho busca
furar as camadas discursivas elaboradas em contexto colonial, o que gera um
efeito antirracista e representa um passo para a descolonização do pensamento.
A lógica que se busca quebrar é aquela em que, tendo apenas referências
brancas, o indivíduo negro busca se "embranquecer" para se
referendar.
06
– A MC Tamara Franklin argumenta que a questão vai além da representatividade.
Qual é a reflexão que ela utiliza para ilustrar por que "ocupar
espaços" não é o suficiente para a verdadeira mudança?
Ela reflete que
"a casa-grande tinha muito preto, nem por isso estava sendo
empretecida". Com isso, ela ilustra que a simples presença ou ocupação de
espaços não quebra a estrutura de poder; o que é preciso é quebrar essa
estrutura e pensar o futuro sob uma ótica preta.
07
– Quais foram as contribuições do pensador senegalês Cheikh Anta Diop que são
mencionadas na reportagem, e o que ele buscava evidenciar sobre a África?
Diop pôs em
evidência as contribuições africanas para a humanidade. Ele reivindicava o
vínculo entre o Egito e a África negra e demonstrava como o Egito influenciou a
Grécia (berço da civilização ocidental). Suas publicações indicavam a
capacidade africana de produzir conhecimento, ciência e de organização política
em escala continental, aspectos que costumam ser desprezados pelo olhar
eurocêntrico.
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