quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

ROMANCE: SÃO BERNARDO - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Romance: São Bernardo – Fragmento

                 Graciliano Ramos  

        [...]            

        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhVJVV7zme98JHAPizk1SQpMB4zITRKinlZT2pH2MXYv3QbVl1HRsO-Pm6sqzsveWlyRW3mHI1MRzqyXgvjRZaCq_xt3_e7WGZvBGGEhF7EpZ9fbu9Avb4MF4dTnRicCM1FUwKWVYo0knrzuECdCJAlegYXVkQxO-8zAjtNFzRW4-b3Zei8f1XAFwoXfQM/s320/Sao-bernardo-graciliano-ramos-1-edico.jpg


        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.

        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? 

        [...]

        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.

        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.

        Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    

        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:

        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.

        A agitação diminui.

        – Estraguei a minha vida estupidamente.

        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.

        A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         

        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.

        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     

        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      

        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!

        A desconfiança é também consequência da profissão.

        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.

        A vela está quase a extinguir-se.

        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.

        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.

        É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.

        Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!

        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!

        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        [...]

13. ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p. 241 e 246-8.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 410-411.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

      -- Imputar: atribuir.

      -- Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.

      -- Molecoreba: molecada.

      -- Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.

      -- Nordeste: vento.

02 – Quem é o narrador e protagonista do romance?

      O narrador e protagonista é Paulo Honório, um homem de negócios ambicioso e de origem humilde que enriquece à custa de muito trabalho e de métodos nem sempre éticos.

03 – Qual é o principal tema do romance?

      O principal tema do romance é a trajetória de Paulo Honório, desde a sua ascensão social e econômica até a sua decadência moral e pessoal. A obra também aborda temas como a ambição, o poder, a solidão, o arrependimento e a crítica à sociedade agrária e escravista do início do século XX.

04 – Qual é o papel de Madalena na história?

      Madalena é a professora que se casa com Paulo Honório e que representa a consciência crítica do romance. Ela é uma mulher sensível e idealista que se contrapõe à brutalidade e ao egoísmo do marido.

05 – O que representa a fazenda São Bernardo para Paulo Honório?

      A fazenda São Bernardo representa o símbolo da ascensão social e do poder de Paulo Honório. Ele a adquire com muito esforço e a transforma em um próspero negócio, mas também em um lugar de solidão e de conflitos.

06 – Qual é a relação de Paulo Honório com os outros personagens do romance?

      Paulo Honório mantém relações complexas e ambivalentes com os outros personagens. Ele se mostra um homem frio e calculista, capaz de usar e manipular as pessoas para atingir seus objetivos. Ao mesmo tempo, ele demonstra ter momentos de arrependimento e de fragilidade.

07 – Qual é o papel da linguagem no romance?

      A linguagem de Graciliano Ramos é marcada pela concisão, pela objetividade e pela expressividade. O autor utiliza uma linguagem crua e realista para retratar a vida e os costumes da sociedade sertaneja.

08 – Quais são os principais conflitos enfrentados por Paulo Honório?

      Paulo Honório enfrenta diversos conflitos ao longo do romance. O principal deles é o conflito entre a sua ambição e a sua consciência. Ele também enfrenta conflitos com Madalena, com os outros personagens e com a própria fazenda São Bernardo.

09 – Qual é o desfecho do romance?

      O romance termina com a morte de Paulo Honório, que se isola cada vez mais em sua fazenda e se torna um homem amargurado e solitário. O seu fim trágico é uma reflexão sobre os limites da ambição e do poder.

10 – Qual é a importância de "São Bernardo" na obra de Graciliano Ramos?

      "São Bernardo" é considerado um dos romances mais importantes de Graciliano Ramos e da literatura brasileira. A obra marca uma nova fase na produção do autor, com uma narrativa mais intimista e introspectiva.

11 – Qual é a mensagem principal do romance?

      A mensagem principal do romance é a de que a ambição e o poder podem levar à destruição do ser humano. A história de Paulo Honório é um alerta sobre os perigos do egoísmo, da brutalidade e da falta de consciência.

 

 

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