sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

ROMANCE: A GRANDE ARTE - CAP. I - (FRAGMENTO) - RUBEM FONSECA - COM GABARITO

 Romance: A grande arte – Cap. I – Fragmento

                Rubem Fonseca

        Caminhei pelo canal do Mangue até encontrar um táxi.  A água poluída do canal exalava um odor desagradável.  Da janela do táxi fiquei olhando os outdoors colocados nos espaços abertos pela demolição das casas: cigarros, televisores, automóveis.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhN0mQCCR8xTWDEhsflhYMHnb0dymaUNAmK-qMPgI_jaFN18JkPav2D7Vl2QvnppncW4WWJ42vG52MoDQg-tqe4UygwfSpdJX_z5-aaf-npOHh3AJb1AJCEWbsDF4G6WHTOy_kIWpcliboQcEy9iVzUCMEC093TM_2S6__UmTRA_XuYrUsbtYZYkSPFItM/s320/Canal_do_Mangue_01.jpg


        Logo que cheguei, Wexler, o meu sócio, entrou na minha sala.

        "Está aqui uma dona com uma história esquisita. Cheguei a pensar que era ruim da cabeça. Vem conversar com ela."

        Sentada no sofá da sala do Wexler, olhava para as unhas. Uma mulher de pouco mais de vinte anos, com duas rodelas fortes de blush sobre os zigomas disfarçando sua cor pardacenta. Chamava-se Gisela.

        "Este aqui é o meu sócio. Conta para ele o caso que você me contou."

        Ela olhou para as unhas.

        Esperamos.

        "Eu já contei para o senhor."

        "Bem", disse Wexler, "ela está sendo ameaçada, não é isso?, por um homem cujo nome  não sabe."

        "O nome dele é Francês."

        "Você disse que não sabia o nome."

        "Foi esse o nome que a Danusa deu."

        "Quem é Danusa?"

        "Minha amiga, que levou ele lá em casa.  Ela tem um gabinete no Santos Vallis, na Senador Dantas."

        "E por que ele está ameaçando você?"  A mulher, além de lacônica, não deixava de olhar para as unhas. Usava um esmalte vermelho. A palavra que veio na minha cabeça foi carmesim.

        Esperamos. É preciso paciência para fazer as pessoas falarem.

        "Eu tenho uma coisa dele."

        "Ele ameaçou você porque você tem alguma coisa dele e não devolve. É isso?"

        "É."

        "E por que você não devolve?"

        "Tenho medo."

        "Que coisa é essa?  Um objeto, dinheiro, o quê?" 

        "Uma fita de videocassete."

        "Tem o que nessa fita?"

        "Não sei. Eu não tenho aparelho para ver."

        "O cassete é dele. Devolve e pronto, encerra o assunto", disse Wexler.

        "Estou com medo.  Quando liguei para dizer que estava com o cassete ele disse que eu era uma louca, que eu tinha visto o que não podia ver." 

        "O que esse Francês foi fazer na sua casa?" 

        Esperamos.

        "Bem..."

        Esperamos

        "Bem, eu sou massagista." Pausa. "Formada, registrada. Ele foi lá em casa, no gabinete, com a Danusa. E esqueceu essa caixa preta. Depois ligou todo nervoso."

        Wexler olhou para mim e fez a cara de desencanto com a  humanidade  que    os  judeus  sabem  fazer.  "E você pediu dinheiro a ele para devolver a caixa que você abriu e viu que tinha uma fita de videocassete dentro."

        Olhando para as unhas ela balançou a cabeça afirmativamente.

        "Minha senhora, nós não trabalhamos para chantagistas", disse Wexler.  "Não há nada que possamos ou queiramos fazer pela senhora."

        Pela primeira vez ela levantou o rosto e olhou para nós. Estava com medo, sim. Não tinha inteligência suficiente para fingir tão bem.

        "Quem mandou você aqui?"

        "Foi a Míriam.  Ela disse que vocês podiam me ajudar." 

        "Não podemos."

        Da porta ela olhou para nós pela última vez.  Mas não era de falar muito. Saiu calada. Sucumbida.

        "Sucumbida nada. Você não consegue ter uma atitude firme quando se trata de mulher. Além do mais não podemos perder nosso tempo com coisas tão ordinárias", disse Wexler.

        Pelo nosso escritório haviam passado criminosos e inocentes de todos os tipos.

        Gisela era um dos mais inexpressivos, entre todos. Poucas horas depois eu já me havia esquecido de que ela existia. À tarde, d.  Sônia, a secretária, me disse que um homem chamado Roberto Mitry queria falar comigo.

        Devia ter uns quarenta anos e vestia-se da maneira que os ricos julgam ser refinada e negligente.

        "O assunto que me traz aqui diz respeito a um objeto de minha propriedade que está em poder de uma cliente sua."

        "Cliente minha?" Eu havia realmente esquecido de Gisela.

        "Receio que ela, dona Gisela, a sua cliente, por eu ser um esportista, um homem da sociedade, meu nome nas colunas, ao saber quem eu sou, queira..."

        Esperei.

        "Os pobres..."

        Esperei.

        "Os pobres são fascinados pelas pessoas bem-situadas.  São eles os consumidores das colunas sociais."

        "E os ricos."

        "Estamos numa democracia. E os ricos, vá lá. Acho justo que todos tenham a mesma oportunidade." Mitry fingiu que bocejava. Parecia ter alguma coisa na boca. Seus maxilares moviam-se lentamente.

        "Tudo tão cansativo." Outro bocejo.

        "O senhor pode esperar um momento?"

        Fui falar com o Wexler.

        "Está na minha sala um sujeito chamado Mitry, que creio ser o tal Francês, mencionado pela moça que esteve aqui hoje de manhã. Ela disse a ele que era nossa cliente."

        "Eu vi que era uma mulher mentirosa. Diga isso a ele."

        "Você não quer ver o cara? É uma figura. Cheio de balangandâs de ouro."

        Apresentei Wexler ao sujeito. Wexler foi direto ao assunto.

        "Essa senhora não é nossa cliente. Veio aqui, dizendo que tinha um objeto seu, um videocassete, e que se sentia ameaçada pelo senhor."

        "É mentira. É mentira. Eu não a ameacei." Dissimuladamente Mitry colocou algo na boca. Mastigou de leve. Engoliu a saliva em pequenos goles.

        "Para falar a verdade, quem se sente ameaçado sou eu."

        "Por ela?"

        "Não, por ela não. Tenho razões, ou melhor, certos feelings que me permitem... Acho que estou correndo riscos, que estão me seguindo."

        Eu estava acostumado com a paranóia das pessoas. "Podia explicar melhor?"

        "Não. É uma intuição. Não tenho inimigos, entendem, mas me sinto ameaçado. É uma coisa subjetiva, reconheço. Gostaria que acreditassem em mim."

        Ficamos todos calados algum tempo. Acendi um Panatela. O Panatela escuro da Suerdieck faz uma cinza grafite, pode ser fumado a qualquer hora, não é como os charutos cubanos que devem ser  fumados com o estômago cheio. O Pimentel número dois, outro dos meus favoritos, é ordinário e fedorento, impregna com seu odor ofensivo cortinas, sofás e os vestidos das moças. Os americanos fabricam um charuto verde que já vem com um furinho.

        "Gostaria de ter os senhores como meus advogados", disse Mitry, afinal.

        "Para quê?" Wexler.

        "Estou sendo vítima de uma chantagem. E sei que o senhor é um profissional muito competente, informei-me antes de vir aqui." Mitry fez um gesto em minha direção.

        "Sou uma blue-chip", eu disse. Ele me dava a impressão de ser um daqueles sujeitos que enriqueceram manobrando na Bolsa.

        Mitry sorriu. "Estou disposto a me desfazer de parte das minhas para pagar o seu preço. E o dos outros, os extras envolvidos. Preço, não, desculpe, como é que vocês dizem?"

        "Honorários." Wexler.

        "Honorários." Ele riu. Eu e Wexler trocamos olhares.

        "Está bem. O senhor vai nos dar uma procuração. Vamos tentar resolver o caso sem interferência da polícia."

        "Não telefone nem se comunique de qualquer outra forma com essa mulher", disse Wexler.

        "É um prazer tê-lo como advogado, doutor Mandrake. Posso chama-lo pelo sobriquet?"

        "Como quiser." O telefone tocou. Era Ada.

        "Hoje faz um ano", disse Ada.

        "Eu gostaria de recuperar logo o cassete", disse Mitry para Wexler.

        "Lembra do primeiro dia?", perguntou Ada.

        "Se necessário, solicitaremos auxílio da polícia", disse Wexler.

        "Polícia não, não por enquanto", disse Mitry.

        Eu me lembrava do primeiro dia: [...].

FONSECA, Rubem. A grande arte. São Paulo: Círculo do livro, 1983, p. 10-13.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 504-507.

Entendendo o romance:

01 – Qual é o nome do protagonista e qual é a sua profissão?

      O nome do protagonista não é mencionado neste fragmento. Ele é sócio de um escritório de advocacia, como é evidenciado pela interação com Wexler.

02 – Quem é Wexler e qual é o papel dele na história?

      Wexler é o sócio do protagonista no escritório de advocacia. Ele é quem apresenta Gisela ao protagonista e participa da interação com Roberto Mitry.

03 – Quem é Gisela e por que ela procura o escritório de advocacia?

      Gisela é uma mulher que procura o escritório de advocacia com uma história de ameaças e chantagem envolvendo um vídeo cassete. Ela alega estar sendo ameaçada por um homem chamado Francês.

04 – Qual é o objeto de discórdia entre Gisela e o Francês?

      O objeto de discórdia é uma fita de vídeo cassete que Gisela possui e que o Francês (Roberto Mitry) deseja recuperar.

05 – Por que Gisela tem medo de devolver a fita para o Francês?

      Gisela tem medo porque o Francês a ameaçou, dizendo que ela tinha visto o que não devia na fita. Ela teme que a fita contenha algo comprometedor ou perigoso.

06 – Quem é Roberto Mitry e por que ele procura o escritório de advocacia?

      Roberto Mitry é o homem que Gisela chama de Francês. Ele é um esportista e figura socialmente conhecida, que procura o escritório de advocacia para reaver a fita e se defender de uma suposta chantagem.

07 – Qual é a versão de Roberto Mitry sobre o caso da fita de vídeo cassete?

      Roberto Mitry alega que está sendo vítima de chantagem por parte de Gisela e que ele é quem se sente ameaçado, não o contrário. Ele menciona ter "intuições" de que está sendo seguido e correndo riscos.

08 – Por que Roberto Mitry contrata o escritório de advocacia?

      Roberto Mitry contrata o escritório de advocacia para que eles o ajudem a reaver a fita de vídeo cassete sem precisar envolver a polícia, evitando assim escândalos que possam prejudicá-lo.

09 – Qual é a opinião do protagonista sobre Gisela e Roberto Mitry?

      O protagonista tem uma opinião negativa sobre Gisela, considerando-a uma pessoa inexpressiva e pouco confiável. Ele também demonstra ceticismo em relação a Roberto Mitry, achando-o afetado e pouco convincente.

10 – Que tipo de serviço o escritório de advocacia se propõe a fazer para Roberto Mitry?

      O escritório de advocacia se propõe a resolver o caso da fita de vídeo cassete de forma discreta, sem envolver a polícia, utilizando seus conhecimentos e habilidades para negociar com Gisela e reaver o objeto para seu cliente.

 

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