Romance: A grande arte – Cap. I – Fragmento
Rubem Fonseca
Caminhei pelo canal do Mangue até
encontrar um táxi. A água poluída do
canal exalava um odor desagradável. Da
janela do táxi fiquei olhando os outdoors colocados nos espaços abertos pela
demolição das casas: cigarros, televisores, automóveis.

Logo que cheguei, Wexler, o meu sócio,
entrou na minha sala.
"Está aqui uma dona com uma
história esquisita. Cheguei a pensar que era ruim da cabeça. Vem conversar com
ela."
Sentada no sofá da sala do Wexler,
olhava para as unhas. Uma mulher de pouco mais de vinte anos, com duas rodelas
fortes de blush sobre os zigomas disfarçando sua cor pardacenta. Chamava-se
Gisela.
"Este aqui é o meu sócio. Conta
para ele o caso que você me contou."
Ela olhou para as unhas.
Esperamos.
"Eu já contei para o senhor."
"Bem", disse Wexler,
"ela está sendo ameaçada, não é isso?, por um homem cujo nome não sabe."
"O nome dele é Francês."
"Você disse que não sabia o
nome."
"Foi esse o nome que a Danusa
deu."
"Quem é Danusa?"
"Minha amiga, que levou ele lá em
casa. Ela tem um gabinete no Santos Vallis,
na Senador Dantas."
"E por que ele está ameaçando
você?" A mulher, além de lacônica,
não deixava de olhar para as unhas. Usava um esmalte vermelho. A palavra que
veio na minha cabeça foi carmesim.
Esperamos. É preciso paciência para
fazer as pessoas falarem.
"Eu tenho uma coisa dele."
"Ele ameaçou você porque você tem
alguma coisa dele e não devolve. É isso?"
"É."
"E por que você não devolve?"
"Tenho medo."
"Que coisa é essa? Um objeto, dinheiro, o quê?"
"Uma fita de videocassete."
"Tem o que nessa fita?"
"Não sei. Eu não tenho aparelho
para ver."
"O cassete é dele. Devolve e
pronto, encerra o assunto", disse Wexler.
"Estou com medo. Quando liguei para dizer que estava com o
cassete ele disse que eu era uma louca, que eu tinha visto o que não podia
ver."
"O que esse Francês foi fazer na
sua casa?"
Esperamos.
"Bem..."
Esperamos
"Bem,
eu sou massagista." Pausa. "Formada, registrada. Ele foi lá em casa,
no gabinete, com a Danusa. E esqueceu essa caixa preta. Depois ligou todo
nervoso."
Wexler olhou para mim e fez a cara de
desencanto com a humanidade que
só os judeus
sabem fazer. "E você pediu dinheiro a ele para
devolver a caixa que você abriu e viu que tinha uma fita de videocassete
dentro."
Olhando para as unhas ela balançou a
cabeça afirmativamente.
"Minha senhora, nós não
trabalhamos para chantagistas", disse Wexler. "Não há nada que possamos ou queiramos
fazer pela senhora."
Pela primeira vez ela levantou o rosto
e olhou para nós. Estava com medo, sim. Não tinha inteligência suficiente para
fingir tão bem.
"Quem mandou você aqui?"
"Foi a Míriam. Ela disse que vocês podiam me
ajudar."
"Não podemos."
Da porta ela olhou para nós pela última
vez. Mas não era de falar muito. Saiu
calada. Sucumbida.
"Sucumbida nada. Você não consegue
ter uma atitude firme quando se trata de mulher. Além do mais não podemos
perder nosso tempo com coisas tão ordinárias", disse Wexler.
Pelo nosso escritório haviam passado
criminosos e inocentes de todos os tipos.
Gisela
era um dos mais inexpressivos, entre todos. Poucas horas depois eu já me havia
esquecido de que ela existia. À tarde, d.
Sônia, a secretária, me disse que um homem chamado Roberto Mitry queria
falar comigo.
Devia ter uns quarenta anos e vestia-se
da maneira que os ricos julgam ser refinada e negligente.
"O assunto que me traz aqui diz
respeito a um objeto de minha propriedade que está em poder de uma cliente
sua."
"Cliente minha?" Eu havia
realmente esquecido de Gisela.
"Receio que ela, dona Gisela, a
sua cliente, por eu ser um esportista, um homem da sociedade, meu nome nas
colunas, ao saber quem eu sou, queira..."
Esperei.
"Os pobres..."
Esperei.
"Os pobres são fascinados pelas
pessoas bem-situadas. São eles os
consumidores das colunas sociais."
"E os ricos."
"Estamos numa democracia. E os
ricos, vá lá. Acho justo que todos tenham a mesma oportunidade." Mitry
fingiu que bocejava. Parecia ter alguma coisa na boca. Seus maxilares moviam-se
lentamente.
"Tudo tão cansativo." Outro
bocejo.
"O senhor pode esperar um
momento?"
Fui falar com o Wexler.
"Está na minha sala um sujeito
chamado Mitry, que creio ser o tal Francês, mencionado pela moça que esteve aqui
hoje de manhã. Ela disse a ele que era nossa cliente."
"Eu vi que era uma mulher
mentirosa. Diga isso a ele."
"Você não quer ver o cara? É uma
figura. Cheio de balangandâs de ouro."
Apresentei Wexler ao sujeito. Wexler
foi direto ao assunto.
"Essa senhora não é nossa cliente.
Veio aqui, dizendo que tinha um objeto seu, um videocassete, e que se sentia
ameaçada pelo senhor."
"É mentira. É mentira. Eu não a
ameacei." Dissimuladamente Mitry colocou algo na boca. Mastigou de leve.
Engoliu a saliva em pequenos goles.
"Para falar a verdade, quem se
sente ameaçado sou eu."
"Por ela?"
"Não, por ela não. Tenho razões,
ou melhor, certos feelings que me permitem... Acho que estou correndo riscos,
que estão me seguindo."
Eu estava acostumado com a paranóia das
pessoas. "Podia explicar melhor?"
"Não. É uma intuição. Não tenho
inimigos, entendem, mas me sinto ameaçado. É uma coisa subjetiva, reconheço.
Gostaria que acreditassem em mim."
Ficamos todos calados algum tempo.
Acendi um Panatela. O Panatela escuro da Suerdieck faz uma cinza grafite, pode
ser fumado a qualquer hora, não é como os charutos cubanos que devem ser fumados com o estômago cheio. O Pimentel
número dois, outro dos meus favoritos, é ordinário e fedorento, impregna com seu
odor ofensivo cortinas, sofás e os vestidos das moças. Os americanos fabricam
um charuto verde que já vem com um furinho.
"Gostaria de ter os senhores como
meus advogados", disse Mitry, afinal.
"Para quê?" Wexler.
"Estou sendo vítima de uma
chantagem. E sei que o senhor é um profissional muito competente, informei-me
antes de vir aqui." Mitry fez um gesto em minha direção.
"Sou uma blue-chip", eu
disse. Ele me dava a impressão de ser um daqueles sujeitos que enriqueceram
manobrando na Bolsa.
Mitry sorriu. "Estou disposto a me
desfazer de parte das minhas para pagar o seu preço. E o dos outros, os extras
envolvidos. Preço, não, desculpe, como é que vocês dizem?"
"Honorários." Wexler.
"Honorários." Ele riu. Eu e
Wexler trocamos olhares.
"Está bem. O senhor vai nos dar
uma procuração. Vamos tentar resolver o caso sem interferência da
polícia."
"Não telefone nem se comunique de
qualquer outra forma com essa mulher", disse Wexler.
"É um prazer tê-lo como advogado,
doutor Mandrake. Posso chama-lo pelo sobriquet?"
"Como quiser." O telefone
tocou. Era Ada.
"Hoje faz um ano", disse Ada.
"Eu gostaria de recuperar logo o
cassete", disse Mitry para Wexler.
"Lembra do primeiro dia?",
perguntou Ada.
"Se necessário, solicitaremos
auxílio da polícia", disse Wexler.
"Polícia não, não por
enquanto", disse Mitry.
Eu me lembrava do primeiro dia: [...].
FONSECA, Rubem. A grande arte. São Paulo: Círculo do livro, 1983, p.
10-13.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 504-507.
Entendendo o romance:
01
– Qual é o nome do protagonista e qual é a sua profissão?
O nome do protagonista
não é mencionado neste fragmento. Ele é sócio de um escritório de advocacia,
como é evidenciado pela interação com Wexler.
02
– Quem é Wexler e qual é o papel dele na história?
Wexler é o sócio
do protagonista no escritório de advocacia. Ele é quem apresenta Gisela ao
protagonista e participa da interação com Roberto Mitry.
03
– Quem é Gisela e por que ela procura o escritório de advocacia?
Gisela é uma
mulher que procura o escritório de advocacia com uma história de ameaças e
chantagem envolvendo um vídeo cassete. Ela alega estar sendo ameaçada por um
homem chamado Francês.
04
– Qual é o objeto de discórdia entre Gisela e o Francês?
O objeto de
discórdia é uma fita de vídeo cassete que Gisela possui e que o Francês
(Roberto Mitry) deseja recuperar.
05
– Por que Gisela tem medo de devolver a fita para o Francês?
Gisela tem medo
porque o Francês a ameaçou, dizendo que ela tinha visto o que não devia na
fita. Ela teme que a fita contenha algo comprometedor ou perigoso.
06
– Quem é Roberto Mitry e por que ele procura o escritório de advocacia?
Roberto Mitry é o
homem que Gisela chama de Francês. Ele é um esportista e figura socialmente
conhecida, que procura o escritório de advocacia para reaver a fita e se
defender de uma suposta chantagem.
07
– Qual é a versão de Roberto Mitry sobre o caso da fita de vídeo cassete?
Roberto Mitry
alega que está sendo vítima de chantagem por parte de Gisela e que ele é quem
se sente ameaçado, não o contrário. Ele menciona ter "intuições" de
que está sendo seguido e correndo riscos.
08
– Por que Roberto Mitry contrata o escritório de advocacia?
Roberto Mitry
contrata o escritório de advocacia para que eles o ajudem a reaver a fita de
vídeo cassete sem precisar envolver a polícia, evitando assim escândalos que
possam prejudicá-lo.
09
– Qual é a opinião do protagonista sobre Gisela e Roberto Mitry?
O protagonista
tem uma opinião negativa sobre Gisela, considerando-a uma pessoa inexpressiva e
pouco confiável. Ele também demonstra ceticismo em relação a Roberto Mitry,
achando-o afetado e pouco convincente.
10
– Que tipo de serviço o escritório de advocacia se propõe a fazer para Roberto
Mitry?
O escritório de
advocacia se propõe a resolver o caso da fita de vídeo cassete de forma
discreta, sem envolver a polícia, utilizando seus conhecimentos e habilidades
para negociar com Gisela e reaver o objeto para seu cliente.
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