Autobiografia: “O ARCO-ÍRIS”
Frei Betto.
Debruçado no chão, abri o álbum de
desenhos vazados que ganhara de aniversário, derramei em volta a caixa de lápis
de cor e, em fúria policrômica, preenchi de cores que sugeriam bichos, nuvens, semáforos
e paisagens campestres. As cores fortes, como o vermelho e o roxo, expressavam
com maior nitidez a ênfase criativa que me inundava o peito. Rompi os limites
das gravuras e aqueles que a própria natureza impôs à sua harmonia, pintando as
montanhas de violeta e as estradas de azul.
Findo o álbum, peguei folhas de
rascunho na escrivaninha do papai, deitei-me na copa e, absorto, entreguei-me
ao delírio, traçando arcos e linhas, curvas e hipérboles, círculos e triângulos,
retorcendo a geometria e enlouquecendo o próprio Euclides, caso visse aquilo.
Desenhar eu nunca soube. Jamais tive o
domínio da forma das mãos. Nem o olho da perspectiva. Em compensação, o mundo
coloria-se através dos meus dedos, que subvertiam a estética divina, pintando
as árvores de vermelho, o oceano de amarelo, o céu de marrom, o sol de azul.
Enchia folhas e folhas com linhas esdrúxulas, perfis surreais, astros
impressionistas, cujos significados só existiam em meu espírito.
Reproduzi
o arco-íris que coroava os céus de Belo Horizonte na época das chuvas, mapeando
tesouros inidentificáveis. Estiquei paralelamente os traços de cores variadas, até
gastar a ponta dos lápis. Não coube nas folhas espalhadas pelo chão da copa. Prossegui
sobre o piso de cerâmica e subi parede afora. Todos os tons de minha caixa estavam
representados naquele borrão forte, espectro de serpente alada.
Mamãe deu um suspiro ao entrar
na copa. Por um momento, acometeu-me a dúvida se de admiração ou indignação
recobrada a fala, deserdou-me em zangas. Correu a molhar o pano na torneira da
pia e obrigou-me a limpar a parede e o chão. Fiquei inconsolável. Aquilo era
uma obra de arte, que me exigira esforço e criatividade. Só não merecia
reconhecimento porque eu era criança.
Ao preparar-me para limpar
“essa sujeirada”, como exclamou minha mãe, adentrou meu pai, vindo do trabalho.
Espantou-se ao ver o filho, sob o olhar severo da mulher, esfregando na parede
o pano de chão. Meteu-se em nossa discussão, inteirou-se do motivo, contemplou
o que restava do meu arco-íris.
-- Uma beleza, meu filho! – reconheceu para
desagrado de minha mãe. – Vamos deixar aí para que todos possam apreciar.
Irritada, minha mãe bateu boca com meu
pai sobre o modo de educar os filhos. (Teria gostado que me consultassem, mas
isso estava fora de cogitação, uma vez que todos os adultos se julgam mais
sábios que as crianças). Contudo, enchi-me de orgulho com o arco-íris exposto
na copa.
Cecília, minha mãe, também olhou e,
virando o rosto, encaretou-se, como quem se depara com uma porcaria. Não me
importei, sabia que as mulheres nada entendiam de obra de arte. Nunca ouvira
papai citar uma mulher artista. Ele só falava em pintores: Di Cavalcanti, Portinari,
Marcier, Guignard, Segall, Velázquez, Cézanne, Matisse, Van Gogh e outros.
Meu pai levou-me, um par de dias
depois, a uma galeria de arte. Um amigo dele expunha pinturas abstratas. Vi lá
borrões muito piores do que os meus. Mas ninguém ousou pedir ao artista que
apagasse aquilo. Pelo contrário, todos o cobriam de sorrisos e cumprimentos
elogiosos.
No Natal, ganhei uma aquarela. Uma
cartolina branca em forma de paleta, com um arco de botões de múltiplas cores
na borda, dois pincéis finos e um copinho de cerâmica para pôr água. Revesti as
paredes da garagem de obras, se perenizadas como as pinturas rupestres,
possivelmente me garantiriam ao menos o reconhecimento da posteridade. Contudo,
levei boas palmadas de papai quando, ao sair do banho, encontrou-me estirado em
sua cama, aquarela em punho, transformando em estampado o lençol branco. Desta
vez, ele concordou com o desgosto artístico de minha mãe.
FREI BETTO. Alfabeto: Autobiografia escolar. São Paulo: Ática, 2002, p.
48-50.
Entendendo
a autobiografia:
01 – Qual foi a reação inicial
da mãe de Frei Betto ao ver a parede e o chão da copa pintados?
A mãe de Frei
Betto ficou indignada e zangada ao ver a parede e o chão da copa pintados. Ela
o obrigou a limpar tudo imediatamente.
02 – Como o pai de Frei Betto
reagiu ao ver a obra de arte na copa?
O pai de Frei
Betto ficou impressionado e reconheceu a beleza da obra, decidindo deixá-la
para que todos pudessem apreciar, apesar do desagrado da mãe.
03 – Quais artistas o pai de
Frei Betto mencionava frequentemente?
O pai de Frei
Betto mencionava frequentemente artistas como Di Cavalcanti, Portinari,
Marcier, Guignard, Segall, Velázquez, Cézanne, Matisse e Van Gogh.
04 – Como Frei Betto se sentiu
quando sua mãe pediu para ele limpar a parede e o chão?
Frei Betto ficou
inconsolável, pois considerava sua obra uma verdadeira arte que exigira muito
esforço e criatividade.
05 – Qual presente Frei Betto
recebeu no Natal e como ele o usou?
No Natal, Frei
Betto recebeu uma aquarela. Ele usou a aquarela para revestir as paredes da
garagem com suas obras de arte.
06 – Qual foi a reação do pai
de Frei Betto quando encontrou a cama pintada?
O pai de Frei Betto ficou zangado e
concordou com o desgosto artístico da mãe, dando-lhe boas palmadas.
07 – O que motivava a
criatividade de Frei Betto ao pintar?
Frei Betto era
movido por uma fúria policrômica e uma ênfase criativa que inundava seu peito,
levando-o a preencher os desenhos com cores intensas e subverter a estética
convencional.
08 – Como Frei Betto via suas
próprias habilidades de desenho?
Frei Betto reconhecia que não sabia
desenhar bem, mas compensava isso com sua habilidade de colorir o mundo através
de seus dedos de forma criativa e subversiva.
09 – Como Frei Betto percebia
a arte das mulheres em comparação com a dos homens?
Frei Betto
percebia que as mulheres não eram reconhecidas como artistas, já que nunca
ouvira seu pai mencionar uma mulher artista, e isso influenciava sua visão de
que as mulheres não entendiam de arte.
10 – Qual foi a experiência de
Frei Betto ao visitar uma galeria de arte com seu pai?
Ao visitar uma
galeria de arte com seu pai, Frei Betto viu pinturas abstratas que considerava
piores que as suas, mas percebeu que essas obras eram elogiadas e reconhecidas,
ao contrário das suas.
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