Carta: QUINTA – Fragmento
Sóror Mariana Alcoforado
Escrevo-lhe pela última vez e espero
fazer-lhe sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que finalmente
acabou por me convencer de que já me não ama e que devo, portanto, deixar de o
amar.
Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o
que me resta ainda de si. Não receie que lhe volte a escrever, pois nem sequer
porei o seu nome na encomenda. [...]
Não conheci o desvario do meu amor
senão quando me esforcei de todas as maneiras para me curar dele, e receio que
nem ousasse tentá-lo se pudesse prever tanta dificuldade e tanta violência.
Creio que me teria sido menos doloroso continuar a amá-lo, apesar da sua
ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que lhe queria menos do que à
minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la, depois que o seu indigno
procedimento me tornou odioso todo o seu ser.
O orgulho tão próprio das mulheres não
me ajudou a tomar qualquer decisão contra si. Ai, suportei o seu desprezo, e
teria suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a sua inclinação por outra!
Ao menos, teria qualquer paixão a combater. Mas a sua indiferença é
intolerável.
Os impertinentes protestos de amizade e
a ridícula correção da sua última carta provaram-me ter recebido todas as que
lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, não perturbaram o seu coração.
Ingrato! E a minha loucura é tanta
ainda, que desespero por já não poder iludir-me com a ideia de não chegarem aí,
ou de não lhe terem sido entregues.
Detesto a sua franqueza. Pedi-lhe eu
para me dizer pura e simplesmente a verdade? Porque me não deixou com a minha
paixão? Bastava não me ter escrito: eu não procurava ser esclarecida. Não me
chegava a desgraça de não ter conseguido de si o cuidado de me iludir? Era
preciso não lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto é indigno dos
meus sentimentos; conheço agora todas as suas detestáveis qualidades. Mas, se
tudo quanto fiz por si pode merecer-lhe qualquer pequena atenção para algum
favor que lhe peça, suplico-lhe que não me escreva mais e me ajude a esquecê-lo
completamente. Se me mostrasse, ao de leve que fosse, ter sentido algum
desgosto ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; talvez a sua confissão e o
seu arrependimento me enchessem de cólera e de despeito; e tudo isso poderia de
novo incendiar-me.
Não se meta pois no meu caminho;
destruiria, sem dúvida, todos os meus projetos, fosse qual fosse a maneira
porque se intrometesse. Não me interessa saber o resultado desta carta; não
perturbe o estado para que me estou preparando.
Parece-me
que pode estar satisfeito com o mal que me causa, qualquer que fosse a sua
intenção de me desgraçar. Não me tire desta incerteza; com o tempo espero fazer
dela qualquer coisa parecida com a tranquilidade. Prometo-lhe não o ficar a
odiar: por de mais desconfio de sentimentos de sentimentos exaltados para me
permitir intentá-lo. Estou convencida de que talvez encontrasse aqui um amante
melhor e mais fiel; mas ai!, quem me poderá ter amor? Conseguirá a paixão de
outro homem absorver-me? Que poder teve a minha sobre si? Não sei eu por
experiência que um coração enternecido nunca mais esquece quem lhe revelou
prazeres que não conhecia, e de que era suscetível?, que todos os seus impulsos
estão ligados ao ídolo que criou? que os seus primeiros pensamentos e primeiras
feridas não podem curar-se nem apagar-se?, que todas as paixões que se oferecem
como auxílio, e se esforçam por o encher e apaziguar, lhe prometem em vão um
sentimento que não voltará a encontrar? , que todas as distrações que procura,
sem nenhuma vontade de as encontrar, apenas servem para o convencer que nada
ama tanto como a lembrança do seu sofrimento? Porque me deu a conhecer a
imperfeição e o desencanto de uma afeição que não deve durar eternamente, e a
amargura que acompanha um amor violento, quando não é correspondido? E porque
razão, uma cega inclinação e um cruel destino, persistem quase sempre em
prender-nos àqueles que só a outros são sensíveis? [...].
Ao devolver-lhe as suas cartas,
guardarei, cuidadosamente, as duas últimas que me escreveu; hei de lê-las ainda
mais do que li as primeiras, para não voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah,
quanto me custam e como teria sido feliz se tivesse consentido que o amasse
sempre! Reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas queixas e a sua
infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranquilo,
que espero atingir, eu então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer
sem grande desgosto. De si nada mais quero.
Sou uma doida, passo o tempo a dizer a
mesma coisa. É preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Creio mesmo que não
voltarei a escrever-lhe.
Que obrigação tenho eu de lhe dar conta
de todos os meus sentimentos?
FIM
ALCOFORADO, Sóror
Mariana. Quinta carta. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. História e antologia
da literatura portuguesa – Século XVII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2005. p. 80-81.
Fonte: Língua
Portuguesa. Se liga na língua – Literatura – Produção de texto – Linguagem.
Wilton Ormundo / Cristiane Siniscalchi. 1 Ensino Médio. Ed. Moderna. 1ª edição.
São Paulo, 2016. p. 93-95.
Entendendo a carta:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Desvario: loucura.
·
Impertinentes: inadequados.
·
Correcção: cuidado.
·
Cólera: ira.
·
Intentá-lo: tenta-lo.
·
Suscetível: capaz de receber.
02 – Qual o objetivo da quinta
carta de Alcoforado?
Registrar sua
indignação com o amante e pedir a ele que não escreva mais para ela.
03 – Que tipo de sentimento
você identificou nela?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Raiva, mágoa, indignação, desprezo, etc.
04 – A carta de Alcoforado nos
permite inferir, de acordo com o ponto de vista da remetente, algumas
características morais de seu amante. Quais seriam elas?
Pode-se inferir,
pela leitura da carta, que o amante de Alcoforado é um homem ingrato, indigno,
indiferente e franco.
05
– Qual é o tema central da carta "Quinta" de Sóror Mariana
Alcoforado?
O tema central é
o desgosto e a desilusão amorosa da autora em relação a alguém que não
corresponde ao seu amor, expressando sua dor e tentativas de superação.
06
– Como a autora descreve a sua reação diante da indiferença da pessoa amada?
A autora descreve
a indiferença como intolerável e mais dolorosa do que qualquer desprezo, ódio
ou ciúme que poderia ter enfrentado.
07
– Quais são os sentimentos predominantes expressos pela autora em relação ao
seu amor não correspondido?
A autora expressa
sentimentos de desgosto, desilusão, tristeza e incredulidade diante da
indiferença e da falta de reciprocidade do seu amor.
08
– Como a autora percebe a franqueza da pessoa amada?
A autora detesta a franqueza
da pessoa amada, questionando por que a verdade foi revelada se não havia
intenção de buscar esclarecimentos, preferindo viver na ilusão da paixão.
09
– Qual é o pedido final da autora para a pessoa amada ao final da carta?
A autora suplica
que a pessoa amada não lhe escreva mais e a ajude a esquecê-lo completamente,
prometendo não odiá-lo e buscando alcançar um estado de tranquilidade
emocional.
10
– Como a autora espera lidar com suas emoções futuras em relação ao amor não
correspondido?
A autora espera alcançar um
estado mais tranquilo e promete tomar uma "resolução extrema" quando
atingir esse estado, sugerindo um distanciamento definitivo.
11
– Qual é a atitude que a autora decide tomar em relação ao seu amor não
correspondido no desfecho da carta?
A autora decide
que é necessário deixar de amar essa pessoa e não pensar mais nela, expressando
resignação e aceitação da situação.
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