Crônica: Palavrinha Perigosa
Walcyr Carrasco
— Aceita uma cerveja? Ou prefere um suco?
Aceito, é claro. Um suco geladinho, delicioso.
Como alguns bolinhos de bacalhau. Entro no papo. Dali a algum tempo, resolvo me
despedir. Sorrio, grato pela tarde deliciosa.
— Bem, vou indo....
Imediatamente, ela saca um bloquinho, a caneta,
e começa a fazer as
contas.
— Deixa ver. Você tomou um suco... ou foram
dois? Quantos bolinhos de bacalhau?
A senhora portuguesa grita:
—
Seis! Ele comeu seis! :
Bem, eu comi seis pensando que fosse de graça!
Arranco algumas notas do
bolso, desenxabido. Ela recebe, feliz da vida.
— Volte sábado que vem.
É o drama da palavra "aceita". Ah,
palavrinha perigosa!
Conheci uma jovem que veio do interior estudar.
Vida difícil, morando em pensionato. Um dia resolveu fazer uma extravagância.
Saiu com umas amigas, estudantes como. ela, para jantar fora. Sentaram-se no
restaurante. Nenhuma tinha experiência de cidade grande. Veio o garçom.
— Aceitam uma entrada?
—Aceitamos!
— Aceitam um vinho?
— Oh, sim, aceitamos!
E foram aceitando. Certas de que fosse uma
gentileza, já que ninguém estava falando em dinheiro. No final veio a conta.
Quase morreram de susto. Passaram o mês comendo ovo com pão.
O verbo aceitar acabou se tornando uma forma
disfarçada de empurrar a mercadoria sem discutir o preço. O correto seria o
garçom ter oferecido a carta de vinhos.
Em tempos bicudos, as coisas ficam ainda mais
difíceis. Recentemente fui à casa de um amigo na Vila Madalena. Artesão. Mal
entrei, ele lembrou.
— Ainda não dei seu presente de aniversário!
Está guardado.
Foi para dentro, voltou com uma caixinha de
madeira enfeitada com flores
do tipo que detesto. Sorriu e disse:
— Que acha? Gosta?
-— É... linda!
— Quer ficar com ela?
— Claro!
Afinal, o que se diz diante de um presente? Mas
a coisa não era bem assim.
Saltitante, ele entrou no quarto. Voltou com um
pacote.
— Este é seu presente.
— Ahnnn?
Desembrulho uma camiseta, atônito. Ele
continua:
— Pela caixinha, vou fazer um preço especial!
E manda ver! Que tática, hein? Como voltar
atrás, ainda por cima sendo uma obra assinada pelo próprio? Deu vontade de
atirar a caixinha na cabeça dele.
Uma amiga, que mora em um bairro de classe
média tradicional da cidade, anda apavorada. Diante da crise que assola as
melhores famílias, a maioria das vizinhas partiu para negócios domésticos. Uma
faz massas em casa. Outra, doces e bolos. As visitas amigáveis de antigamente
transformaram-se em armadilhas.
—- Não quer levar uma lasanha para casa?
A ingênua caiu na conversa algumas vezes. Logo
depois de embrulhada a massa, ou a bandeja de docinhos, vinha o preço.
— Mas... mas...
Nos bons tempos, bastava devolver o prato com
outra gulodice. Minha amiga desenvolveu uma tática.
— Estou de regime.
Ninguém acredita, é claro. Continua gordíssima.
Mas com o dinheiro no
bolso.
Eu optei
pela franqueza.
— Não aceito não.
— Mas está tão gostoso.
— Não quero, não quero e não quero!
Vou acabar passando por mal-educado. Mas do
jeito que as coisas vão,
ficou perigoso aceitar até presente de aniversário.
Entendendo o texto
01. Qual é o principal tema abordado na crônica
"Palavrinha Perigosa" de Walcyr Carrasco?
a.
Experiências
gastronômicas.
b.
Os desafios de viver
na cidade grande.
c.
A arte de
presentear.
d.
Os
mal-entendidos causados pelo verbo "aceitar".
02. Qual é a situação inicial descrita pelo autor ao
visitar a amiga no antiquário?
a. Uma
festa de aniversário.
b. Uma degustação de
vinhos.
c. Um encontro
casual.
d. Um evento de
venda de antiguidades.
03. O que acontece quando o autor menciona
que vai embora após a festa?
a. Ele é
cobrado pelos gastos que teve.
b. Ele recebe presentes inesperados.
c. Ele é convidado para outra festa.
d. Ele é elogiado pela sua presença.
04. Qual é o exemplo dado pelo autor sobre o
uso perigoso da palavra "aceitar" em um restaurante?
a. Uma jovem pede diversos pratos sem
saber o preço.
b. Um grupo de amigos é surpreendido
com uma conta alta após aceitar vários itens.
c. Um garçom oferece gentilezas que no
final se revelam caras.
d. Um restaurante oferece promoções
falsas aos clientes.
05. O que o autor descobre ao aceitar um
presente de aniversário de um amigo artesão?
a. O presente era um objeto valioso.
b. O presente era uma caixa vazia.
c. O amigo queria vendê-lo por um
preço especial.
d. O amigo esperava uma reação
negativa.
06. Como as visitas amigáveis se transformaram
em armadilhas no bairro da amiga do autor?
a. Os vizinhos começaram a se afastar
uns dos outros.
b. As vizinhas passaram a oferecer
alimentos com preços ocultos.
c. As visitas se tornaram cada vez
mais frequentes.
d. As vendas de massas e doces
aumentaram.
07. Qual é a estratégia desenvolvida pela
amiga do autor para lidar com as ofertas indesejadas de comida?
a. Ela alega estar de dieta.
b. Ela recusa educadamente.
c. Ela finge não estar em casa.
d. Ela aceita e depois devolve os
alimentos.
08. Por que o autor considera perigoso
aceitar até presentes de aniversário?
a. Porque geralmente são presentes
caros.
b. Porque podem vir acompanhados de
cobranças ou vendas ocultas.
c. Porque os presentes podem ser de
má qualidade.
d. Porque os presentes podem ser
indesejados.
09. Qual é o sentimento principal
transmitido pelo autor em relação às mudanças nas relações sociais devido às
dificuldades econômicas?
a. Contentamento.
b. Confusão.
c. Desconfiança.
d. Preocupação.
10. Qual é a mensagem central que o autor
deseja transmitir com a crônica "Palavrinha Perigosa"?
a. A importância de aceitar presentes generosos.
b. A necessidade de ser franco ao
recusar ofertas.
c. Os perigos de assumir compromissos
sem entender as consequências.
d. As vantagens de viver em uma cidade
grande.
Nenhum comentário:
Postar um comentário