Crônica: O Automóvel
Walcyr Carrasco
QUANDO PAPAI COMPROU nosso primeiro carro, mamãe decidiu:
— Vou tirar carta de motorista!
Eu era criança. Não era comum que mulheres
dirigissem. Mamãe tinha alma de pioneira. Por exemplo, trabalhava fora,
enquanto suas amigas se conformavam em ser donas-de-casa. Morávamos em uma
cidade do interior. A autoescola só tinha um jipe. Começaram as aulas. Comigo
no banco de trás, as mãos presas agarradas na capota. O jipe dava solavancos e
rodopiava pelas ruas. O instrutor aterrorizado.
— O breque, o breque! Aperte o breque!
Mamãe se confundia. Enfiava o pé no acelerador.
Ela gritava. O instrutor gritava. Os pedestres corriam. Entre as façanhas,
arrancou a porta de um Karmann Guia. Na última aula antes do exame arrasou a
entrada do mercado municipal.
Repetiu duas vezes. Na terceira, o examinador
tremia:
— Mais devagar! Assim a senhora enfia o carro
em uma árvore.
Surpreendentemente, ganhou a carta. Talvez por
terror dos examinadores. Seu idílio automobilístico não durou muito. Papai
perdeu o pouco que tinha. Viemos para São Paulo com uma mão na frente e outra
atrás. Carro? Nem pensar. Ficou mais de dez anos sem dirigir. A vida melhorou.
Minha cunhada ofereceu o volante.
— Só para ter o gostinho.
Entrou
atrás de um caminhão parado.
Mais uma temporada de exílio. Papai se
recuperou montando um estacionamento. Todas as manhãs, lá estava mamãe,
gordinha, de chapéu de homem na cabeça, dando ordens aos manobristas.
— À direita! Vira... vai que dá, vai que dá!
Só havia uma condição. Não fazer manobras ela
mesma. Seria impossível pagar os prejuízos. O incrível é que papai não gostava
de dirigir. Desistiu de ter automóvel. Mamãe olhava os modelos. Sonhava.
Mudaram-se para Santos. Tempos depois, papai faleceu. Para surpresa de toda a
família, mamãe veio a arrumar um namorado, aos 64 anos. Perguntei, cauteloso, a
idade do príncipe encantado.
— Sessenta e três.
- Suspirei, aliviado. Se fosse trinta, aí sim,
eu ficaria bem preocupado.
Nunca se viu casal tão apaixonado. Era um
senhor aposentado, de índole calma. Mamãe me contou:
— Sabe, ele está pensando em comprar um carro.
— Mãe, quem é doida por automóvel é você!
Convenceu o velho?!
— Não tenho o direito?
Tinha. Juntaram as economias. Vieram para São
Paulo. Compraram um bom automóvel usado no sábado de manhã. Pegaram a serra. Na
curva, havia óleo na pista. Derraparam de leve. Pararam. Um policial
aproximou-se.
— Deixem
o carro aí, já vamos ver. Venham para cá, por causa da curva.
Mal se afastaram caminhando, outro carro veio
voando na curva. Derrapou também. Voou em cima do automóvel. O que sobrou dava
para levar em uma sacola.
Não tinha seguro. Perda total. Revoltada, mamãe
não se conformava:
— Não ficamos mais de uma hora com o carro!
Tentei confortá-la.
— Mamãe, quem sabe seu destino não é ter
automóvel.
— Que conversa é essa de destino? Eu não me
conformo!
E vou ter!
Teve. Dali a meses comprou novo veículo em
sociedade com o namorado. Eu e meus irmãos demos uma força. Que felicidade!
Subiam a serra só para comer um filé. Só se tornou um pouco ressabiada.
—- Ele dirige muito bem — contou, referindo-se
ao grisalho. — Às vezes tenho vontade de pegar a direção, mas não gosto da
serra.
Com a proximidade do Dia das Mães, sinto um aperto no coração. Ela partiu há dois anos, doente, e às vezes me dá uma imensa saudade. Sinto também uma sensação de alegria. Mamãe conseguiu seu carro. Felizmente, eu a ajudei a realizar seu sonho!
Entendendo o texto
01. Qual
foi a reação da mãe do narrador quando o pai comprou o primeiro carro da
família?
a) Decidiu
aprender a dirigir.
b) Recusou-se a
aprender a dirigir.
c) Contratou um
motorista particular.
d) Pediu para vender
o carro.
02. Onde a família morava quando a mãe
decidiu aprender a dirigir?
a) Na capital.
b) Em uma cidade do interior.
c) Na praia.
d) Em outro país.
03. Por que o instrutor de direção ficava
aterrorizado durante as aulas com a mãe do narrador?
a) Porque ela era muito calma.
b) Porque ela dirigia muito devagar.
c) Porque ela
tinha dificuldade em controlar o carro.
d) Porque ela era uma motorista
experiente.
04. O que aconteceu na última aula de
direção da mãe antes do exame?
a) Ela passou no exame de direção.
b) Ela arrancou a porta de um carro
estacionado.
c) Ela desistiu de aprender a dirigir.
d) Ela comprou um carro novo.
05. Por quanto tempo o pai ficou sem dirigir
após perder o pouco que tinha?
a) Mais de dez
anos.
b) Um ano.
c) Um mês.
d) Uma semana.
06. O que a mãe fazia todas as manhãs após o
pai montar um estacionamento?
a) Ia trabalhar como motorista de
ônibus.
b) Dava ordens aos manobristas.
c) Ficava em casa sem fazer nada.
d) Ia à autoescola aprender a dirigir
novamente.
07. O que aconteceu com o carro que a mãe e o
namorado compraram em um sábado de manhã?
a) Foi roubado.
b) Sofreu um acidente grave.
c) Foi vendido rapidamente.
d) Ficou intacto por anos.
08. Por que a mãe ficou revoltada após o
acidente com o carro novo?
a) Porque o carro estava muito velho.
b) Porque o seguro não cobria o
acidente.
c) Porque o namorado não estava
dirigindo com cuidado.
d) Porque eles
não tinham seguro para o carro.
09. Qual era o sentimento do narrador em
relação à mãe, dois anos após sua partida?
a) Tristeza.
b) Alegria.
c) Raiva.
d) Indiferença.
10. O que o narrador
sente em relação ao fato de ter ajudado a mãe a realizar seu sonho de ter um
carro?
a) Remorso.
b) Felicidade.
c) Desgosto.
d) Arrependimento.
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