Crônica: Casa Própria
Walcyr Carrasco
SER DONO DO PRÓPRIO teto é um sonho. Dá segurança morar no que é seu. O caso é que a residência equivale ao casco da tartaruga. Ou seja, é uma extensão do corpo. Aí começam as loucuras. É impressionante o número de pessoas que constroem casas delirantes. Certa vez um corretor me ofereceu uma que imitava um navio. Em vez de janelas, escotilhas. A estrutura de concreto, curva, semelhante ao casco. Era um barco encalhado.
No
terreno e na imobiliária. Uma amiga resolveu construir o lar na Granja Viana.
No alto de um morro. A vista, deslumbrante. Todo o dinheiro foi gasto em
concreto. Parecia um viaduto pela metade. Aconselhei:
— Use o que você ainda tem para comprar o
material essencial para terminar a obra. -
Encomendou boxes de Blindex e o motor da
piscina. Detalhe: não havia piscina. Nem o buraco. Acabou ela mesma pintando
quilômetros de chão de cimento da sala. Descobriu-se que o concreto a
transformava em um forno no verão. Uma geladeira nó inverno. Comentei:
— Pelo menos, daqui a séculos, a casa vai estar
de pé. Os arqueólogos vão achar que era um templo. E você, a deusa.
Vendeu para um casal apaixonado, por menos do
que as sacas de concreto gastas no empreendimento. Os amigos correram a
aconselhar:
— Compre alguma coisa feita, que só exija uma
pintura.
Em segredo, arrumou um terreno no meio da Mata
Atlântica. No momento, discute o corte das árvores com o Ibama. Outro amigo,
advogado, apaixonou-se por uma mansão no Pacaembu. Mal comprou, descobriu: a
casa tinha sido usada como escola de tiro ao alvo. Todas as paredes sofreram
intervenção. Os alicerces. O telhado. A piscina. Só a cozinha estava ótima. Ele
fez questão de quebrar porque queria uma parede curva. A obra foi estimada em
seis meses. Faz dois anos. Pensam que está angustiado? De jeito nenhum. Está
realizando um projeto de vida, apesar dos cabelos um tanto mais brancos.
Eu poderia dar um martelo de presente para
vários conhecidos. Adoram derrubar paredes. Uma atriz passou anos economizando
para ter seu cantinho. Conseguiu um apartamento antigo com terraço, na Vila
Buarque. Pagou com esforço. Chamou os pedreiros e resolveu dar umas mexidinhas.
Prometeram terminar em um mês. Um ano depois, ela conta, sem perder o sorriso
de felicidade: — Abri tudo, ficou um salão. Agora o jeito é arrumar grana para cobrir
o terraço e fazer o quarto, senão vou ter de dormir embaixo da pia.
Certas pessoas têm até consciência do delírio.
Uma corretora que conheço recebeu um cliente. Queria um terreno no campo para
fazer um paredão com uma porta de alumínio, e um único quarto. Tipo galpão. Ela
aconselhou:
— Olha, esse é o tipo de casa que se um dia
você quiser vender, não consegue.
A resposta, com os olhos brilhando.
— Claro. Eu vou construir um mico.
Meus miolos também não funcionam bem quando o
assunto é moradia. Faço o gênero nômade. Vivo numa chácara há dois anos. O
excesso de paz me enerva. Volto para a cidade. Reclamo do trânsito. O dono da
transportadora já me propôs abrir uma conta corrente. Cada vez, eu prometo.
— Agora é para sempre!.
Em seguida, começo a empacotar os trastes.
Só conheço uma pessoa que não se importa com
casa. E o único de meus amigos que realmente posso dizer que é rico. Prefere
pagar aluguel. Perguntei, surpreso, o motivo.
— Existem maneiras melhores de investir o
dinheiro —- comentou.
Pode ser. Mas certamente nenhuma mais gostosa do que enlouquecer com a casa própria, quebrar umas paredes, trocar o piso e imaginar que o sonho está prestes a ser realizado!
Entendendo o texto
01. Qual é a analogia feita pelo autor entre uma casa e
a casca de uma tartaruga?
a) Ambas são
frágeis.
b) Ambas
são essenciais para a segurança.
c) Ambas são comuns
na natureza.
d) Ambas são
construídas lentamente.
02. Qual foi a sugestão do autor para a
amiga que construiu uma casa na Granja Viana?
a) Investir em acabamentos luxuosos.
b) Comprar móveis caros.
c) Gastar mais dinheiro em concreto.
d) Comprar materiais essenciais para
terminar a obra.
03. O que aconteceu com a casa da amiga do
autor na Granja Viana no verão?
a) Tornou-se um forno devido ao concreto.
b) Ficou fria e úmida.
c) Foi inundada.
d) Não teve mudanças de temperatura.
04. Por que o advogado que comprou uma
mansão no Pacaembu quebrou a cozinha?
a) Porque queria uma cozinha moderna.
b) Porque estava em mau estado.
c) Porque queria uma parede curva.
d) Porque estava realizando um projeto
de vida.
05. O que a atriz fez com seu apartamento na
Vila Buarque?
a) Vendeu-o.
b) Reformou-o completamente.
c) Deixou-o como estava.
d) Construiu uma nova casa no terreno.
06. Por que a corretora aconselhou contra a
construção do paredão com uma porta de alumínio?
a) Porque seria muito caro.
b) Porque não seria seguro.
c) Porque
seria difícil de vender no futuro.
d) Porque não seria esteticamente
agradável.
07. Qual é a característica do autor em
relação à moradia?
a) Ele é muito rico e constrói várias
casas.
b) Ele é nômade e muda constantemente
de residência.
c) Ele é conservador e mantém a mesma
casa por anos.
d) Ele é um construtor talentoso.
08. Por que o autor volta para a cidade
depois de viver na chácara por dois anos?
a) Porque
sente falta do trânsito.
b) Porque prefere a paz da cidade.
c) Porque recebeu uma oferta de
emprego na cidade.
d) Porque está construindo uma nova
casa.
09. Qual é a atitude do único amigo rico
do autor em relação à casa própria?
a) Ele investe em casas luxuosas.
b) Ele prefere pagar aluguel.
c) Ele constrói suas próprias casas.
d) Ele não se importa com onde mora.
10. Qual é a conclusão do autor sobre o
desejo de possuir uma casa própria?
a) É uma realização essencial na vida.
b) É um investimento financeiro
importante.
c) É uma fonte de estresse e
preocupação.
d) É uma jornada emocionante e às
vezes irracional.
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