sábado, 1 de abril de 2017

LITERATURA - ANA TERRA - COM GABARITO

LITERATURA -  ANA TERRA - COM GABARITO

ANA TERRA
         [...]
         Mal raiou o dia, Ana ouviu um longo mugido. Teve um estremecimento, voltou a cabeça para todos os lados, procurando, e finalmente avistou uma das vacas leiteiras da estância, que subia a coxilha na direção do rancho. A Mimosa! – reconheceu. Correu ao encontro da vaca, enlaçou-lhe o pescoço com os braços, ficou por algum tempo a sentir o rosto o calor bom do animal e a acariciar lhe o pelo do pescoço. Leite pras crianças – pensou. O dia afinal de contas começava bem. Apanhou do meio dos destroços do rancho um balde amassado, acocorou-se ao pé da vaca e começou a ordenha-la. E assim, quando Eulália, Pedrinho e Rosa acordaram, Ana pôde oferecer a cada um deles um caneco de leite.
         - Sabe quem voltou, meu filho? A Mimosa.
         O menino olhou para o animal com olhos alegres.
         - Fugiu dos bandidos! – exclamou ele.
         Bebeu o leite morno, aproximou-se da vaca e passou-lhe a mão pelo lombo, dizendo:
         - Mimosa velha... Mimosa valente...
         O animal parecia olhar com seus olhos remelentos e tristonhos para as sepulturas. Pedro então perguntou:
         - E as cruzes, mãe?
         - é verdade. Precisamos fazer umas cruzes.
         Com pedaços de taquara amarrados com cipós, mãe e filho fizeram quatro cruzes, que cravaram nas quatro sepulturas. Enquanto faziam isso, Eulália, que desde o despertar não dissera uma única palavra, continuava sentada no chão a embalar a filha nos braços, os olhos voltados fixamente para as bandas do Rio Pardo.
         No momento em que cravara a última cruz, Ana teve uma dúvida que a deixou apreensiva. Só agora lhe ocorria que não tinha escutado o coração dum dos escravos. O mais magro deles estava com a cabeça decepada – isso ela não podia esquecer...
         Mas e o outro? Ela estava tão cansada, tão tonta e confusa que nem tivera a ideia de verificar se o pobre do negro estava morto ou não. Tinham empurrado o corpo para dentro da cova e atirado terra em cima... Ana olhava, sombria, para as sepulturas.
         Fosse como fosse, agora era tarde demais. “Deus me perdoe” – murmurou ela. E não se preocupou mais com aquilo, pois tinha muitas coisas em que pensar.
         Começou a catar em meio dos destroços do rancho as coisas que os castelhanos haviam deixado intatas: a roca, o crucifixo, a tesoura grande de podar – que servira para cortar o umbigo de Pedrinho e de Rosa -, algumas roupas e dois pratos de pedra.
          Amontoou tudo isso e mais o cofre em cima dum cobertor e fez uma trouxa.
          Naquele dia alimentaram-se de pêssegos e dos lambaris que Pedrinho pescou no poço. E mais uma noite desceu – clara, morna, pontilhada de vaga-lumes e dos gemidos dos urutaus.
          Pela madrugada Ana acordou e ouviu o choro da cunhada. Aproximou-se dela e tocou-lhe o ombro com a ponta dos dedos.
          - Não há de ser nada, Eulália...
          Parada junto de Pedro e Rosa, como um vaga-lume pousado a luciluzir entre os chifres, a vaca parecia velar o sono das crianças, como um anjo da guarda.
          - Que vai ser de nós agora? – choramingou Eulália.
          - Vamos embora daqui.
          - mas pra onde?
          - Pra qualquer lugar. O mundo é grande.
          Ana sentia-se animada, com vontade de viver, por piores que fossem as coisas que estavam por vir, não podiam ser tão horríveis como as que já tinha sofrido. Esse pensamento dava-lhe uma grande coragem. E ali, deitada no chão a olhar para as estrelas, ela se sentia agora tomada por uma resignação que chegava quase a ser indiferença. Tinha dentro de si uma espécie de vazio: sabia que nunca mais teria vontade de rir nem de chorar. Queria viver, isso queria, e em grande parte por causa de Pedrinho, que afinal de contas não tinha pedido a ninguém para vir ao mundo. Mas queria viver também de raiva, de birra. A sorte andava sempre virada contra ela. Pois Ana estava agora decidida a contrariar o destino. Ficara louca de pesar no dia em que deixara Sorocaba para vir morar no Continente.
         Vezes sem conta tinha chorado de tristeza e de saudade naqueles cafundós. Vivia com medo no coração, sem nenhuma esperança de dias melhores, sem a menor alegria, trabalhando como uma negra, e passando frio e desconforto... Tudo isso por quê? Porque era a sua sina. Mas uma pessoa pode lutar contra a sorte que tem. Pode e deve. E agora ela tinha enterrado o pai e o irmão e ali estava, sem casa, sem amigos, sem ilusões, sem nada, mas teimando em viver. Sim, era pura teimosia. Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula.

   VERISSIMO, Erico. O Continente. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

1 – Em que ambiente vive Ana Terra?
      Vive no meio rural, em um rancho.

2 – O autor não descreve a indumentária da Ana Terra. Levando em conta o contexto em que ela vive, como você imagina que seja a vestimenta dessa personagem?
       Resposta pessoal.

3 – O que podemos dizer a respeito da condição econômica da personagem Ana na situação narrada no texto?
       Que ela estava desprovida dos bens materiais necessários para viver com conforto. Estava sem casa, passando frio, vivendo de sobras deixadas pelos castelhanos e trabalhando duramente.

4 – Releia o seguinte trecho:
          [...] e finalmente avistou uma das vacas leiteiras da estância, que subia a coxilha na direção do rancho. A Mimosa! – reconheceu. Correu ao encontro da vaca, enlaçou-lhe o pescoço com os braços, ficou por algum tempo a sentir contra o rosto o calor bom do animal e a acariciar lhe o pelo do pescoço. Leite pras crianças – pensou. O dia afinal de contas começava bem. [...].
         - Sabe quem voltou, meu filho? A Mimosa.
         O menino olhou para o animal com olhos alegres.
         - Fugiu dos bandidos! – exclamou ele.
         Bebeu o leite morno, aproximou-se da vaca e passou-lhe a mão pelo lombo, dizendo:
         - Mimosa velha... Mimosa valente...
         O animal parecia olhar com seus olhos remelentos e tristonhos para as sepulturas. [...].
a)     Nesse trecho, a vaca representa o alimento, o sustento dos filhos. O que mais a vaca representa para as personagens?
Ela representa a resistência, o afeto, a valentia de viver.

b)    Apesar de narrar um dia que começava bem, o trecho revela uma visão idealizada da vida de Ana Terra? Explique.
Não. O trecho revela as condições reais de vida que ele enfrenta, passando necessidades e vivendo uma situação difícil.

5 – Ana ficou sem casa, sem amigos, sem ilusões.
a)     O que lhe restou e o que a levou a resistir?
O que lhe restou foi a vontade de viver, em grande parte, por causa de Pedrinho, mas também por conta da raiva que se transformara em birra, teimosia, e porque Ana havia herdado do pai o seu gênio de “mula”.

b)    O que significa o trecho “sabia que nunca mais teria vontade de rir nem de chorar”?
Uma espécie de indiferença causada pelo sofrimento, pelas perdas, pela falta de esperança e alegria.

6 – Podemos considerar Ana Terra como uma mulher que decide tomar as rédeas de seu destino?
         Sim. Ana Terra decide contrariar a sorte e a própria sina. Sabe que essa sua obrigação e até pensa: “Pode e deve”. Graças a sua teimosia, sem ter ninguém para apoiá-la, pois pai e irmão estavam enterrados, assim como os amigos, decide enfrentar seu destino, afinal chamava-se Ana Terra, era filha de seu pai, a quem o leitor pode atribuir uma personalidade também firme, obstinada.


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