TEXTO LITERÁRIO: SENHORA
José de Alencar
Quem
observasse Aurélia naquele momento, não deixaria de notar a nova fisionomia que
tomara seu belo semblante e que influía em toda
a sua pessoa.
Era uma expressão fria, pausada,
inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe
quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos
brilhavam as irradiações da inteligência. Operava-se nela uma revolução. O
princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para
concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.
[...]
Era realmente
para causar pasmo aos estranhos e susto a um tutor,
a perspicácia com que essa moça [...] apreciava
as questões mais complicadas; o perfeito conhecimento que mostrava dos
negócios, e a facilidade com que fazia, muitas vezes de memória, qualquer
operação aritmética por muito difícil e intrincada
que fosse. [...]
--- Tomei a
liberdade de incomodá-lo, meu tio, para falar-lhe de objeto muito importante
para mim.
--- Ah! Muito
importante? ... repetiu o velho batendo a cabeça.
--- De meu
casamento! disse Aurélia com a maior frieza e serenidade.
O velhinho
saltou na cadeira como um balão elástico. Para disfarçar sua comoção esfregou
suas mãos rapidamente uma na outra, gesto que indicava nele grande agitação.
--- Não acha
que já estou em idade de pensar nisso? Perguntou a moça.
---
Certamente! dezoito anos...
--- Dezenove.
--- Dezenove!
Cuidei que ainda não os tinha feito! ... Muitos casam-se nesta idade, e até
mais moças; porém é quando têm o paizinho ou a mãezinha para escolher um bom
noivo e arredar certos espertalhões. Uma menina órfã, inexperiente, eu não lhe
aconselharia que se casasse senão depois da maioridade, quando conhecesse bem o
mundo.
--- Já o
conhece demais, tornou a moça com o mesmo tom sério.
--- Então está
decidida?
--- Tão
decidida que lhe pedi esta conferência.
--- Já sei!
Deseja que eu aponte alguém. Que eu lhe procure um noivo nas condições
precisas... Ham! ...É difícil... um sujeito no caso de pretender uma moça como
você, Aurélia? Enfim há de se fazer a diligência!
--- Não
precisa, meu tio. Já o achei!
--- Como? ...
Tem alguém de olho?
--- Perdão,
meu tio, não entendo sua linguagem figurada. Digo-lhe que escolhi o homem com
quem me hei de casar.
--- Já
compreendo. Mas bem vê! ... Como tutor, tenho de dar a minha aprovação.
--- Decerto,
meu tutor; mas essa aprovação o senhor não há de ser tão cruel que a negue. Se
o fizer, o que eu não espero, o juiz de órfãos a suprirá.
[...]
--- O nome?
Perguntou o velho molhando a pena. Aurélia fez um aceno de espera.
--- Esse moço
chegou ontem [...]. O senhor deve procura-lo quanto antes...
--- Hoje
mesmo.
--- E
fazer-lhe sua proposta. Estes arranjos são muito comuns no Rio de Janeiro.
--- Estão-se
fazendo todos os dias.
--- O senhor
sabe melhor do que eu como se aviam estas
encomendas de noivos.
--- Ora, ora!
--- Previno-o
de que meu nome não deve figurar em tudo isto.
--- Ah! Quer
conservar o incógnito.
--- Até o momento
da apresentação. Entretanto pode dizer quanto baste para que não suponham que
se trata de alguma velha ou aleijada.
--- Percebo!
Exclamou o velho rindo. Um casamento romântico.
--- Não,
senhor, nada de exagerações. Só tem licença para afirmar que a noiva não é
velha nem feia.
--- Quer
preparar a surpresa.
--- Talvez. Os
termos da proposta... [...]
--- Os termos
da proposta devem ser estes; atenda bem. A
família de tal moça misteriosa deseja casá-la com separação de bens, dando ao
noivo a quantia de cem contos de réis de dote. Se não bastarem cem e ele exigir
mais, será o dote de duzentos...
--- Hão de
bastar. Não tenha dúvida.
--- Em todo o
caso quero que o senhor compreenda bem o meu pensamento. Desejo como é natural
obter o que pretendo, o mais barato possível; mas o essencial é obter, e
portanto até metade do que possuo, não faço questão de preço. É a minha
felicidade que vou comprar.
Estas últimas
palavras, a moça proferiu-as com uma indefinível expressão.
ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1999, p. 29-33.
1 – Releia o trecho:
Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava
seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as
faculdades especulativas do homem.
a) De acordo com o trecho, Aurélia rompe
com uma visão tradicional da mulher. Que visão seria essa?
A visão de que mulher não
pensa, sente. É importante observar a relação entre a mulher e o sentimento
(coração), e o homem e a inteligência (cérebro).
b) A visão da mulher citada no item
anterior é bastante romântica. O que você pensa sobre essa visão da mulher?
Você concorda com ela? Pense em argumentos que possam sustentar sua opinião e
registre-os em seu caderno.
Resposta pessoal.
c) Forme um pequeno grupo e exponha para
seus colegas sua opinião e os argumentos que a sustentam. Em seguida, ouça a
opinião e os argumentos deles. Todos tem a mesma opinião? Se não, que tal
organizar um pequeno debate? Se achar necessário, selecione mais argumentos que
possam fortalecer a defesa de sua ideias.
Espera-se que a turma
organize um debate sobre o tema, considerando a época em que o romance foi
escrito.
2 – Aurélia causa espanto por apresentar algumas
características não esperadas para uma moça na época. Que características são
essas? Justifique sua respostas.
Aurélia é inteligente e perspicaz, pois entende de negócios e sabe
aritmética. É também decidida e autônoma, uma vez que escolhe seu noivo. É
interessante discutir o exemplo relativo à aritmética, que, atualmente, pode
provocar risos; porém, não era essa a intensão do autor. É um momento propício
para se discutir a relação entre contexto de produção da obra e o efeito no
leitor de outra época.
3 – Por meio da conversa entre Aurélia e seu tutor, revela-se
um costume da época:
--- [...] Estes
arranjos são muito comuns no Rio de Janeiro.
--- Estão-se
fazendo todos os dias.
a) De que costume se trata?
O casamento arranjado.
b) Destaque no texto trechos em que tal
costume fica evidente.
Respostas possíveis: “[...]
quando tem o paizinho ou a mãezinha para escolher um bom noivo”; “Deseja que eu
aponte alguém. Que eu lhe procure um noivo nas condições precisas...”; “[...]
dando ao noivo a quantia de cem contos de réis de dote”.
c) De acordo com o texto, como se dá, na
prática, esse costume?
Não são os próprios noivos
que escolhem seus futuros cônjuges. É oferecida certa quantia (dote) ao
pretendente (noivo) para firmar o contrato de casamento.
Obrigado pelas respostas.
ResponderExcluirMeu comentario è gue hoje em dia o amor se acabou com o proximo por isso gue tem uma diviçao de bens dote
ResponderExcluirGostei !
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