Conto:
Mitos do combate à pobreza
ODED GRAJEW
Elenco a seguir alguns mitos que
circulam sobre a pobreza.
Primeiro mito: A erradicação da
pobreza é um processo lento.
A maioria das pessoas, mesmo aquelas
que têm uma real preocupação com a pobreza, suspiram diante dos terríveis
indicadores brasileiros e se confortam (e/ou se alienam) afirmando: "Mudar
esta situação é um lento processo".
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEju7F00dxZ4eV85wKG6GuiYSDpxUVVyx9IBOBDeGZhJJr-I8lNB52YnsY-Ek-6JhBo20wQ6uxBrALtcLErfjYqhIEGUaIke3Ysmv6chDrTPT10A-RYK_cgNtUAQbwMKZLyjpVZpAugdCgfTovb-4ZsDsosT_2TBSOMRN_Zv1hpDsEZKkLIxpjVFCrpior4/s320/POBREZA.png
Imaginemos uma pessoa pobre que venha a
mim pedindo para deixar de ser pobre. Eu poderia lhe dizer que isso é,
infelizmente, um processo lento e complicado, que depende de muitas variáveis e
que o Brasil não conseguiu resolver esse drama em 500 anos e não vai ser agora,
num minuto, que o solucionará.
Mas também eu poderia pesquisar qual a
renda mensal de que essa pessoa necessitaria para deixar de ser pobre e,
dependendo de minhas possibilidades financeiras, garantiria a ela essa renda,
desembolsando imediatamente a primeira parcela. Instantaneamente essa pessoa
deixaria de ser pobre.
Se isso fosse feito com todos os pobres
brasileiros, teríamos uma rápida erradicação da pobreza em nosso país.
Trata-se, portanto, de mapear os pobres e miseráveis deste país (o IBGE acaba
de fazer esse levantamento) e assegurar a cada um uma renda mínima (um direito
que cada cidadão possui, pela Constituição brasileira), que os tire
imediatamente da pobreza.
Segundo mito: Não se deve dar o
peixe aos pobres, mas ensiná-los a pescar.
As duas posturas – dar o peixe e ensinar
a pescar – são tidas como mutuamente excludentes, o que conforta (e/ou aliena)
todos que se sentem impotentes diante da miséria brasileira. Deve-se "dar
o peixe" e, concomitantemente, ensinar a pescar! Quem tem fome não
consegue levantar a vara nem entender as instruções para a pesca.
Tenho certeza de que a maioria dos
leitores deste artigo chegou aonde chegou porque seus pais assim agiram com
eles. A todos foi assegurado o peixe nos primeiros (e a muitos privilegiados
nem os tão primeiros) anos de suas vidas, enquanto lhes foi ensinada a pesca.
Portanto cada beneficiário da renda
mínima deveria assinar inicialmente um "contrato de cidadania", que,
dependendo de cada caso, comprometesse-o com uma ou mais das seguintes atividades:
formação educacional e profissional, manutenção dos filhos na escola, prestação
de serviços à comunidade, etc.
Ao governo caberá oferecer as condições
para a concretização dessas atividades, estimular as empresas a contratar as
pessoas como aprendizes de uma profissão, emprego definitivo, apoio aos
projetos filantrópicos etc.; empregar essas pessoas nos programas de obras de
serviços essenciais, estimular empreendimentos através da reforma agrária, do
crédito rural, do microcrédito etc. O beneficiário da renda mínima sairá do
programa no momento em que não cumprir as suas obrigações ou conseguir auferir
por conta própria uma renda equivalente ou maior.
Terceiro mito: Não há recursos
para erradicar a pobreza no Brasil.
Todos os estudos mostram que há
recursos de sobra para acabar com a pobreza. O que falta é vontade política. Um
estudo da Fundação Getúlio Vargas informa que R$ 15 mensais arrecadados dos
não-pobres seriam suficientes para acabar com a fome dos 50 milhões de pobres
brasileiros. O ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque avalia que o
custo bruto de um programa de erradicação da pobreza no Brasil seria de, no
máximo, R$ 44,4 bilhões por ano. Isso equivale a apenas 10,5% da receita
prevista para o setor público e a apenas 4% da renda nacional (riqueza gerada
anualmente).
Uma pesquisa do Banco Mundial revela
que, excluindo a Previdência Social (de cujos recursos apenas 8% beneficiam os
20 % mais pobres!), só 19% do gasto social federal atinge os 20% mais pobres!
Quem analisar nossos orçamentos públicos ficará horrorizado com o desperdício
de recursos causado por corrupção, corporativismo, incompetência e
clientelismo.
Nossos governantes e legisladores não
usam os serviços públicos pelos quais têm a responsabilidade de zelar. No
momento em que nossas elites políticas fizessem uso da educação primária e
secundária, saúde, segurança e transporte públicos, tenho a certeza de que
haveria muito mais vontade política para direcionar recursos a fim de melhorar
esses serviços. A maioria usa o orçamento para políticas clientelistas,
devolver favores ou formar fundos de campanha.
Os mitos que sustentam a ideia de que o
combate à pobreza no Brasil é lento, complicado e inviável financeiramente reforçam
a posição dos mal-intencionados, insensíveis e incompetentes. Servem de
consolo, mas também de alienação aos que estão com a consciência pesada ou mal
informados. Jogam no desespero e na marginalidade milhões de cidadãos
brasileiros.
Aproximadamente 500 crianças abaixo de
5 anos morrem diariamente no Brasil, de pobreza. Essas crianças não podem
esperar e aguardam que as pessoas de bem deste país terminem rapidamente com
essa vergonha.
Oded Grajew, 57, diretor-presidente do Instituto Ethos de Empresas e
Responsabilidade Social, é presidente do Conselho de Administração da Fundação
Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente e membro do Conselho
Deliberativo da Transparência Brasil.
“Mitos do combate à pobreza”, de Oded Grajew. Editoria Opinião, pág. A3.
Folha de S. Paulo, 26/3/2002.
Fonte: Português –
Novas Palavras – Ensino Médio – Emília Amaral; Mauro Ferreira; Ricardo Leite;
Severino Antônio – Vol. Único – FTD – São Paulo – 2ª edição. 2003. p. 584-586.
Entendendo o conto:
01
– Qual o primeiro mito sobre a pobreza que o autor aborda?
O primeiro mito é
a crença de que a erradicação da pobreza é um processo lento e demorado.
02
– Como o autor ilustra a possibilidade de erradicar a pobreza de forma rápida?
O autor usa o exemplo
de garantir uma renda mínima para uma pessoa pobre, mostrando que isso a
tiraria da pobreza instantaneamente. Se feito em larga escala, erradicaria a
pobreza no país.
03
– Qual o segundo mito apresentado no texto e como ele é desconstruído?
O segundo mito é a
ideia de que se deve "ensinar a pescar" em vez de "dar o
peixe". O autor argumenta que ambas as ações são necessárias
simultaneamente, pois quem tem fome não tem condições de aprender.
04
– O que o autor propõe como "contrato de cidadania" para os
beneficiários da renda mínima?
O contrato
incluiria compromissos como formação educacional e profissional, manutenção dos
filhos na escola e prestação de serviços à comunidade.
05
– Qual o terceiro mito abordado pelo autor e como ele o refuta?
O terceiro mito é
a alegação de que não há recursos suficientes para erradicar a pobreza no
Brasil. O autor apresenta dados que mostram que há recursos de sobra, mas falta
vontade política.
06
– Que dados o autor apresenta para comprovar a viabilidade financeira do
combate à pobreza?
O autor menciona
estudos da Fundação Getúlio Vargas e do ex-governador Cristovam Buarque, além
de dados do Banco Mundial, que evidenciam a disponibilidade de recursos.
07
– Qual a crítica do autor em relação ao uso dos recursos públicos?
O autor critica o
desperdício de recursos devido à corrupção, corporativismo, incompetência e
clientelismo, além da falta de uso dos serviços públicos pelas elites
políticas.
08
– Como os mitos sobre a pobreza influenciam a sociedade, segundo o autor?
Os mitos reforçam
a inação dos mal-intencionados e servem de consolo para os desinformados,
perpetuando a pobreza e o sofrimento de milhões de brasileiros.
09
– Qual a urgência do combate à pobreza destacada pelo autor?
O autor ressalta
que cerca de 500 crianças abaixo de 5 anos morrem diariamente de pobreza no
Brasil, evidenciando a necessidade de ação imediata.
10
– Qual a principal mensagem do autor sobre o combate à pobreza?
A mensagem
principal é que a erradicação da pobreza é possível e urgente, dependendo da
vontade política e da ação conjunta da sociedade.