quarta-feira, 4 de junho de 2025

CONTO: FELIZ DE QUEM TEM CEM PERNINHAS - FRAGMENTO - ÍNDIGO - COM GABARITO

 Conto: Feliz de quem tem cem perninhas – Fragmento

           Índigo

        Não eram nem sete horas da manhã e eu já estava escondida atrás de uma banca de jornal, tremendo de frio. Eu tremia de frio porque Mirela, minha segunda melhor amiga, mandou eu tirar a blusa de lã e escondê-la no fundo da mochila. Aquela blusa de lã ia estragar tudo. Depois ela mandou eu puxar a camiseta do uniforme para fora da calça. Puxei a camiseta para fora.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTad8eWmn_PnK3aodFmR1b5tianFruyD7EZUyDgtsmcbqPi4XjM0m4x_JTJyIy2ZwWtQUg9AW68HWXTxF0tQL2nK4M2C93YvNATwTgkujR7PMi2Dhx6tYcbEnUocGxoWKz-Y8O8GbpY-teytAxMPzjtmWx8nQpWyjlXTXcSLKzSMLggKJ49FQdsC73W9k/s1600/centop%C3%A9ia.jpg


        — Cadê a Cíntia? — perguntou Mirela.

        Cíntia era minha melhor amiga. Éramos em três: Cíntia, Mirela e eu. Enquanto falava comigo, Mirela mexia no meu cabelo. Parte da franja eu punha atrás da orelha direita. Sempre foi assim. Mirela não queria mais que minha orelha servisse de anteparo para a franja e a puxou para frente.

        — Beeeeeem melhor... — disse. — Então, cadê a Cíntia? Quero ver suas meias.

        Eu não sabia de Cíntia. Ergui a calça. Meias brancas, lisas, normais.

        Eu sabia pouca coisa nesse dia. Sabia que toda lagarta, em algum ponto de sua vida, vai passar por uma metamorfose. Ela deixa de ter dezenas de perninhas, ganha duas asas coloridas e se transforma numa linda borboleta. Mas nessa manhã eu não queria ser linda e sair voando por aí. Eu trocaria duas lindas asas coloridas por dezenas de perninhas. É mais seguro. Nessa manhã fria eu deixava de ter controle sobre a minha forma. Como uma lagarta que chega ao ponto de metamorfose, eu sabia que era hora de me enfiar num casulo, me dissolver numa sopa de DNA e me reorganizar. Essa era minha situação. Com a única diferença que, no meu caso, não havia casulo onde eu pudesse me enfiar. Nesse primeiro dia de quinta série eu me sentia como uma sopa e o futuro era incerto.

        — Vamos esperar mais cinco minutos e daí entramos.

        O portão da escola já estava aberto e quando meu pai, minutos antes, me deixou ali, ele perguntou se não íamos entrar. Mirela respondeu por mim dizendo que sim, que já estávamos entrando. E meio que entramos. Mas assim que ele virou a esquina corremos para trás da banca de jornal, por causa da minha blusa de lã que ia estragar tudo.

        Em menos de cinco minutos eu estaria oficialmente no segundo ciclo e isto muda tudo na vida de uma pessoa. Eu teria muitas professoras, uma para cada matéria e nenhuma delas seria responsável pela nossa classe. Em menos de cinco minutos ninguém mais seria responsável por nós, pois em menos de cinco minutos seríamos responsáveis por nós mesmas. E nunca mais eu poderia acordar tarde e ligar a televisão. Agora, até o fim da minha vida, eu teria que acordar cedo, tomar banho, escovar os dentes e partir para minhas obrigações, com o céu ainda escuro. Era preciso tomar muito cuidado porque dentro de quatro minutos todas as pessoas na escola seriam mais velhas do que eu. As crianças estudavam à tarde. De manhã não havia criança na escola. As pessoas que estudavam de manhã eram livres. Elas viviam com seus pais, mas era diferente. Elas haviam adquirido independência de pensamento, tinham opiniões próprias e faziam abaixo-assinados. Mais três minutos e eu estaria no meio delas. E este seria apenas o primeiro de quatro anos de matérias dificílimas, com provas de cinco páginas, em que minha nota seria um número, não mais uma letra. E os números, ao contrário das letras, não têm fim.

        — Mais dois minutos — disse Mirela.

        Mais dois minutos e eu entraria para a escola onde estudei a vida inteira. O mesmo prédio, as mesmas classes, as mesmas carteiras. E isso era o mais apavorante de tudo. Talvez, ao passar por aquele portão, um aluno do colegial atirasse Mirela e eu dentro do tanque de areia. Talvez jogassem futebol com alunas do nosso tamanho. A gente, sendo a bola.

        — Pronto. Vamos — disse Mirela.

        […]

ÍNDIGO. Perdendo perninhas. São Paulo: Hedra, 2006. p. 9-12. (Fragmento).

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 19-20.

Entendendo o conto:

01 – Onde a narradora e Mirela estão escondidas no início do fragmento e por quê?

      A narradora e Mirela estão escondidas atrás de uma banca de jornal. Elas se esconderam porque Mirela mandou a narradora tirar a blusa de lã e a esconder na mochila, além de puxar a camiseta do uniforme para fora da calça, pois a blusa de lã "ia estragar tudo" e elas não queriam ser vistas entrando na escola daquele jeito pelo pai da narradora.

02 – Qual é a preocupação principal da narradora em relação à sua blusa de lã e o que isso revela sobre a dinâmica entre ela e Mirela?

      A blusa de lã é uma preocupação porque, segundo Mirela, ela "ia estragar tudo", indicando que ela não se encaixava na imagem ou no plano que Mirela tinha para elas. Isso revela que Mirela exerce uma influência forte e controladora sobre a narradora, que obedece às suas instruções, mesmo que isso a deixe tremendo de frio.

03 – Como a narradora descreve sua amizade com Cíntia e Mirela?

      A narradora afirma que eram em três: Cíntia, sua melhor amiga, e Mirela, sua segunda melhor amiga, e ela mesma. A dinâmica parece ser de que Mirela é a mais dominante entre as três, dando ordens e controlando a aparência da narradora.

04 – Que metáfora a narradora usa para descrever sua situação e o que ela significa?

      A narradora se compara a uma lagarta que está prestes a passar por uma metamorfose, transformando-se em uma borboleta. No entanto, ela preferiria ter "dezenas de perninhas" do que "duas lindas asas coloridas", pois julga que é "mais seguro". Essa metáfora expressa a sensação de perda de controle sobre sua própria forma e a incerteza do futuro, sentindo-se "uma sopa de DNA" sem um casulo para se proteger, simbolizando a transição para a quinta série e as mudanças que ela acarreta.

05 – Quais são as grandes mudanças que a narradora espera ao entrar no "segundo ciclo" na escola?

      Ao entrar no "segundo ciclo" (a quinta série), a narradora espera ter muitas professoras (uma para cada matéria), não ter mais uma única professora responsável pela turma, e ter que assumir mais responsabilidade por si mesma ("seríamos responsáveis por nós mesmas"). Ela também menciona a mudança de horários e a sensação de que as pessoas da manhã seriam mais velhas e independentes.

06 – Por que a narradora considera apavorante o fato de a escola ser a mesma em que estudou a vida inteira?

      A narradora considera apavorante o fato de o prédio, as classes e as carteiras serem os mesmos porque, apesar da familiaridade, ela sente que tudo ao seu redor vai mudar. Ela teme que, ao passar pelo portão, as dinâmicas sociais serão diferentes e mais perigosas, como ser jogada em um tanque de areia ou usada como bola de futebol por alunos mais velhos. A aparente estabilidade do ambiente contrasta com a radicalidade das mudanças internas e sociais que ela antecipa.

07 – O que a diferença entre "números" e "letras" em relação às notas escolares simboliza para a narradora?

      Para a narradora, a mudança de notas de "letras" para "números" simboliza uma transição para um sistema mais rígido e implacável. Ela afirma que os "números, ao contrário das letras, não têm fim", sugerindo que as cobranças e as dificuldades serão contínuas e crescentes, sem um ponto final claro. Isso reflete a pressão e a seriedade que ela associa à nova fase escolar.

 

 

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