Conto: Feliz de quem tem cem perninhas – Fragmento
Índigo
Não eram nem sete horas da manhã e eu
já estava escondida atrás de uma banca de jornal, tremendo de frio. Eu tremia
de frio porque Mirela, minha segunda melhor amiga, mandou eu tirar a blusa de
lã e escondê-la no fundo da mochila. Aquela blusa de lã ia estragar tudo.
Depois ela mandou eu puxar a camiseta do uniforme para fora da calça. Puxei a
camiseta para fora.

— Cadê a Cíntia? — perguntou Mirela.
Cíntia era minha melhor amiga. Éramos
em três: Cíntia, Mirela e eu. Enquanto falava comigo, Mirela mexia no meu
cabelo. Parte da franja eu punha atrás da orelha direita. Sempre foi assim.
Mirela não queria mais que minha orelha servisse de anteparo para a franja e a
puxou para frente.
— Beeeeeem melhor... — disse. — Então,
cadê a Cíntia? Quero ver suas meias.
Eu não sabia de Cíntia. Ergui a calça.
Meias brancas, lisas, normais.
Eu sabia pouca coisa nesse dia. Sabia
que toda lagarta, em algum ponto de sua vida, vai passar por uma metamorfose.
Ela deixa de ter dezenas de perninhas, ganha duas asas coloridas e se
transforma numa linda borboleta. Mas nessa manhã eu não queria ser linda e sair
voando por aí. Eu trocaria duas lindas asas coloridas por dezenas de perninhas.
É mais seguro. Nessa manhã fria eu deixava de ter controle sobre a minha forma.
Como uma lagarta que chega ao ponto de metamorfose, eu sabia que era hora de me
enfiar num casulo, me dissolver numa sopa de DNA e me reorganizar. Essa era
minha situação. Com a única diferença que, no meu caso, não havia casulo onde
eu pudesse me enfiar. Nesse primeiro dia de quinta série eu me sentia como uma
sopa e o futuro era incerto.
— Vamos esperar mais cinco minutos e
daí entramos.
O portão da escola já estava aberto e
quando meu pai, minutos antes, me deixou ali, ele perguntou se não íamos
entrar. Mirela respondeu por mim dizendo que sim, que já estávamos entrando. E
meio que entramos. Mas assim que ele virou a esquina corremos para trás da
banca de jornal, por causa da minha blusa de lã que ia estragar tudo.
Em menos de cinco minutos eu estaria
oficialmente no segundo ciclo e isto muda tudo na vida de uma pessoa. Eu teria
muitas professoras, uma para cada matéria e nenhuma delas seria responsável
pela nossa classe. Em menos de cinco minutos ninguém mais seria responsável por
nós, pois em menos de cinco minutos seríamos responsáveis por nós mesmas. E
nunca mais eu poderia acordar tarde e ligar a televisão. Agora, até o fim da
minha vida, eu teria que acordar cedo, tomar banho, escovar os dentes e partir
para minhas obrigações, com o céu ainda escuro. Era preciso tomar muito cuidado
porque dentro de quatro minutos todas as pessoas na escola seriam mais velhas
do que eu. As crianças estudavam à tarde. De manhã não havia criança na escola.
As pessoas que estudavam de manhã eram livres. Elas viviam com seus pais, mas
era diferente. Elas haviam adquirido independência de pensamento, tinham
opiniões próprias e faziam abaixo-assinados. Mais três minutos e eu estaria no
meio delas. E este seria apenas o primeiro de quatro anos de matérias
dificílimas, com provas de cinco páginas, em que minha nota seria um número,
não mais uma letra. E os números, ao contrário das letras, não têm fim.
— Mais dois minutos — disse Mirela.
Mais dois minutos e eu entraria para a
escola onde estudei a vida inteira. O mesmo prédio, as mesmas classes, as
mesmas carteiras. E isso era o mais apavorante de tudo. Talvez, ao passar por
aquele portão, um aluno do colegial atirasse Mirela e eu dentro do tanque de
areia. Talvez jogassem futebol com alunas do nosso tamanho. A gente, sendo a
bola.
— Pronto. Vamos — disse Mirela.
[…]
ÍNDIGO. Perdendo
perninhas. São Paulo: Hedra, 2006. p. 9-12. (Fragmento).
Fonte: Língua
Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e
Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 19-20.
Entendendo o conto:
01 – Onde a narradora e Mirela
estão escondidas no início do fragmento e por quê?
A narradora e
Mirela estão escondidas atrás de uma banca de jornal. Elas se esconderam porque
Mirela mandou a narradora tirar a blusa de lã e a esconder na mochila, além de
puxar a camiseta do uniforme para fora da calça, pois a blusa de lã "ia
estragar tudo" e elas não queriam ser vistas entrando na escola daquele
jeito pelo pai da narradora.
02 – Qual é a preocupação
principal da narradora em relação à sua blusa de lã e o que isso revela sobre a
dinâmica entre ela e Mirela?
A blusa de lã é
uma preocupação porque, segundo Mirela, ela "ia estragar tudo",
indicando que ela não se encaixava na imagem ou no plano que Mirela tinha para
elas. Isso revela que Mirela exerce uma influência forte e controladora sobre a
narradora, que obedece às suas instruções, mesmo que isso a deixe tremendo de frio.
03 – Como a narradora descreve
sua amizade com Cíntia e Mirela?
A narradora
afirma que eram em três: Cíntia, sua melhor amiga, e Mirela, sua segunda melhor
amiga, e ela mesma. A dinâmica parece ser de que Mirela é a mais dominante
entre as três, dando ordens e controlando a aparência da narradora.
04 – Que metáfora a narradora
usa para descrever sua situação e o que ela significa?
A narradora se
compara a uma lagarta que está prestes a passar por uma metamorfose,
transformando-se em uma borboleta. No entanto, ela preferiria ter "dezenas
de perninhas" do que "duas lindas asas coloridas", pois julga
que é "mais seguro". Essa metáfora expressa a sensação de perda de
controle sobre sua própria forma e a incerteza do futuro, sentindo-se "uma
sopa de DNA" sem um casulo para se proteger, simbolizando a transição para
a quinta série e as mudanças que ela acarreta.
05 – Quais são as grandes
mudanças que a narradora espera ao entrar no "segundo ciclo" na
escola?
Ao entrar no
"segundo ciclo" (a quinta série), a narradora espera ter muitas
professoras (uma para cada matéria), não ter mais uma única professora
responsável pela turma, e ter que assumir mais responsabilidade por si mesma
("seríamos responsáveis por nós mesmas"). Ela também menciona a
mudança de horários e a sensação de que as pessoas da manhã seriam mais velhas
e independentes.
06 – Por que a narradora
considera apavorante o fato de a escola ser a mesma em que estudou a vida
inteira?
A narradora considera
apavorante o fato de o prédio, as classes e as carteiras serem os mesmos
porque, apesar da familiaridade, ela sente que tudo ao seu redor vai mudar. Ela
teme que, ao passar pelo portão, as dinâmicas sociais serão diferentes e mais
perigosas, como ser jogada em um tanque de areia ou usada como bola de futebol
por alunos mais velhos. A aparente estabilidade do ambiente contrasta com a
radicalidade das mudanças internas e sociais que ela antecipa.
07 – O que a diferença entre
"números" e "letras" em relação às notas escolares
simboliza para a narradora?
Para a narradora,
a mudança de notas de "letras" para "números" simboliza uma
transição para um sistema mais rígido e implacável. Ela afirma que os
"números, ao contrário das letras, não têm fim", sugerindo que as
cobranças e as dificuldades serão contínuas e crescentes, sem um ponto final
claro. Isso reflete a pressão e a seriedade que ela associa à nova fase
escolar.
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