quarta-feira, 21 de junho de 2023

CRÔNICA: O MARRECO QUE PAGOU O PATO - CARLOS EDUARDO NOVAES - COM GABARITO

 CRÔNICA: O MARRECO QUE PAGOU O PATO

                    Carlos Eduardo Novaes

 Semana passada, São Paulo, apesar de toda fama de que não pode parar, parou. E não foi num congestionamento. Parou para discutir o caso do marreco Quércia e sua marreca Amélia, presos e engaiolados durante 24 horas sob a acusação de poluírem o meio ambiente. Diante do fato eu fico aqui pensando que os paulistas já devem ter resolvido todos os seus grandes problemas urbanos. Sim, claro: quando um povo começa a prender marrecos é porque não tem mais nada para fazer.

  

Fonte da imagem - https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2KIYLsOBW0u5H8Qv_dhMSPgOI_s2N-RL9Xl_kzcxusrDVScW807vN-S_HI0WHoZS_3Q2D28Dqi5m2_wjSx4ltt5ps31e2e1c2A8sMEHnNrOPqVux550E84wdLbItBhjxPYqOMmbT6q9-doljoa_-Ly0PVLYwx_LW97KjgvZjxfVO7tLAW0GEsZTuUL-g/s320/Marreco.jpg

O marreco Quércia - deixa-me explicar - ganha a vida honestamente como relações-públicas da casa Agro Dora, na Rua da Consolação, 208. Em seu trabalho passa os dias inteiros circulando pela calçada e atraindo fregueses para a loja. Na segunda-feira o gerente da loja foi surpreendido com a presença de um fiscal, que muito compenetrado perguntou se o marreco era de sua propriedade. Diante da resposta positiva, virou-se para o gerente e pediu:

"Seus documentos?". Leu atentamente um por um, devolveu-os e disse: "Agora deixe-me ver os documentos do marreco".

- O marreco não tem documentos - respondeu o gerente.

- Nenhum? Nem título de eleitor? Certificado de reservista? Nada? Então eu acho que vou ter que prender o seu marreco.

- O senhor não pode fazer uma coisa dessas - ponderou o gerente. - Não há nenhuma lei que obrigue marrecos a ter documento.

- Não há? - desconfiou o fiscal. - Então espere um momentinho.

Foi ao telefone e ligou para o chefe da repartição: "Alô, chefe? Encontrei um marreco passeando pela rua sem documento".

- Que está esperando? - vociferou o chefe. - Prenda-o por vadiagem.

- Mas, chefe, é um marreco. Precisamos de uma lei para enquadrá-lo. O senhor sabe qual é o número dessa lei?

- Não tenho a menor ideia.

- Então pergunta se alguém aí sabe.

 - Alguém aí sabe - perguntou o chefe, voltando-se para os funcionários da repartição - quais são os documentos que um marreco necessita para transitar livremente pelas ruas?

Não. Ninguém sabia. O chefe então sugeriu que o fiscal procurasse outro motivo para prender o marreco. "Mas que motivo?", perguntou o fiscal, que era meio duro de imaginação.

- O marreco está nu? - Indagou o chefe. - Então prenda-o por atentado ao pudor.

O fiscal parou um pouco, pensou e não se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido. Não, essa era demais. O chefe, já pensando no almoço de domingo, insistiu: "O marreco está parado em cima da calçada?".

- Está.

- Então prenda-o por estacionar em local proibido.

"Boa ideia", pensou o fiscal. Voltou ao gerente, que estava parado na calçada ao lado do marreco, disfarçou, disse que iria perdoar, disse que iria perdoar a falta de documentos, "mas infelizmente tenho que levar o seu marreco por estar parado em local não permitido".

- Esta certo - concordou, irritado, o gerente -, mas então chama o guincho.

- Pra que guincho?

- Meu marreco só sai daqui rebocado.

Formou-se a maior confusão em torno do marreco. O fiscal querendo levá-lo de qualquer maneira, e o gerente, apoiado por dezenas de populares, defendendo a inocência do marreco. Nisso, chegou um segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro e decretou: "O marreco não pode ficar solto, é um agente da poluição".

- Agente de quem? - espantou-se um balconista da loja. - Garanto que não.

O Quércia trabalha aqui há mais de dois anos.

- E daí? - interveio um popular que estava do lado do fiscal. - Ele pode ter dois empregos. Vai ver que quando sai daqui faz um bico em alguma agência.

- E você acha que o marreco, com esse bico, ainda precisa fazer outro?

- A acusação é injusta - interrompeu o gerente -, o marreco não pode ser acusado de poluir. Se eu tivesse aqui um elefante soltando fumaça pela tromba está certo, mas o Quércia nem fuma.

- Não interessa - afirmou o segundo fiscal, meio agressivo -, isso o senhor explica lá para o chefe.

O marreco entrou na sede da Administração Regional da Sé cheia de ginga.

Imediatamente o chefe destacou um funcionário para qualificá-lo: nome, endereço, estado civil, essas coisas.

De gravata e camisa de manga curta, o burocrata sentou-se à máquina e começou: "Nome?". O gerente com o marreco no colo respondeu: "Quércia".

- Quércia de quê?

- De nada.

- Como de nada? Ele não tem família?

- Tem. É da família dos anatídeos.

- Então - prosseguiu o funcionário batendo na máquina -, Quércia Anatídeo.

Terminada a ficha o burocrata abriu uma gaveta e, enquanto procurava o material para tirar as impressões digitais, disse ao gerente:

- Me dá aí o polegar do marreco.

- O marreco não tem polegar - desculpou-se o gerente.

- Não? - disse o funcionário já contrariado porque não encontrava as almofadas para carimbos. - Então me dá o indicador.

- O marreco também não tem indicador.

- E o anular, tem?

- Também não, senhor.

- Poxa - chateou-se o burocrata -, então me dá aí qualquer dedo que estiver sobrando.

O gerente precisou explicar que marreco não tinha dedo. Tinha pata. Ainda assim o funcionário já meio perturbado entendeu que o gerente se referia à companheira do marreco e perguntou: "Uma pata?".

- Não. Duas.

- E ele vive bem com as duas?

Custou pouco para desfazer a confusão. Encerrada essa fase, o funcionário encaminhou-se para outra sala, onde o marreco teria que tirar umas fotos três por quatro de identificação.

O fotógrafo, repetindo gestos tão automáticos quanto a máquina, mandou o marreco subir na cadeira, esticar bem o pescoço, olhar para a frente e não se mexer. O marreco, mesmo sem entender nada, seguiu as instruções do fotógrafo. Quando enfiou a cabeça por debaixo do pano preto - a máquina era daquelas antigas -, observou pelo visor que alguma coisa estava errada. Tornou a levantar a cabeça e indagou do funcionário: "Nós vamos fotografá-lo assim?.

- Assim como? - indagou o funcionário sem entender.

- Sem gravata?

- Não sei - disse o funcionário meio reticente -, mas eu acho que marreco não precisa botar gravata.

- Acho melhor botar uma gravata nele - retrucou o fotógrafo -, você sabe como é o chefe: já disse que foto só de gravata.

O funcionário tirou sua gravata, pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos necessárias e depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a poluição em São Paulo diminuiu sensivelmente...

NOVAES, Carlos Eduardo. A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1995. p. 77-81.

Fonte: Livro – Português – Conexão e Uso -7º Ano – Dileta Delmanto/Laiz B. de Carvalho, Editora Saraiva, 1ª ed., São Paulo, 2018.p 188-193.

Vocabulário

compenetrado: concentrado.

certificado de reservista: documento utilizado para comprovar

que o cidadão prestou serviço às Forças Armadas do Brasil.

ponderou: considerou, expôs com prudência e calma.

vociferou: berrou, reclamou aos gritos.

transitar: percorrer, caminhar.

atentado ao pudor: ato ofensivo à decência, honra, dignidade de alguém.

ginga: movimento de balançar o corpo de um lado para outro, expressão corporal de quem caçoa.

qualificar: avaliar, emitir opinião a respeito de algo.

burocrata: (pejorativo) pessoa que, por achar de grande prestígio seu cargo burocrático, exorbita de suas funções e assume atitudes intoleráveis no desempenho dessas funções.

anatídeos: família de aves que inclui patos, marrecos, cisnes.

reticente: que hesita ou age com cautela.

retrucou: respondeu de modo imediato.

ENTENDENDO O TEXTO

01. Essa crônica foi escrita por Carlos Eduardo Novaes, conhecido cronista brasileiro.

         a) Qual é a finalidade da crônica de Carlos Eduardo Novaes?

             Despertar reflexões e divertir o leitor.

         b) Qual é o assunto da crônica?

              A história de um marreco que foi preso sem motivo algum.

         c) Sua hipótese sobre o assunto da crônica foi confirmada? Explique.

             Resposta pessoal.

      02. O cronista narra um evento, um pequeno acontecimento, tomando o tema para discutir:

          a) a situação dos patos que são utilizados em atividades comerciais.

          b) a burocracia que leva a situações absurdas no dia a dia das pessoas.

         c) o envolvimento de pessoas estranhas ao caso no desenrolar do conflito.

     03. Converse com os colegas e verifique quais afirmações a seguir se referem adequadamente à crônica lida.

a) Trata-se de uma história curta, com narrador, personagens, tempo e espaço.

         b) Leva à reflexão sobre um problema social.

         c) Faz crítica por meio do humor.

         d) Apresenta trechos narrativos, mas não é considerada como narrativa por apresentar diálogos e descrições.

         e) Trata de um tema atual.

         f) Tem como ponto de partida uma cena ou uma questão do cotidiano.

  04. “O marreco que pagou o pato” é uma crônica narrativa, pois apresenta uma história com começo, meio e fim e tem elementos próprios das narrativas (personagens, tempo, espaço, narrador), assim como acontece no conto, na fábula, no causo, etc.

a) O cronista escolheu o ponto de vista da 3a pessoa. É um narrador que apenas observa e conta o que viu ou parece conhecer os sentimentos dos personagens? Identifique um trecho que exemplifique sua resposta.

Ele parece saber o que se passa no interior dos personagens. Possibilidades: “O fiscal parou um pouco, pensou e não se lembrou de ter visto jamais um marreco vestido.” / “’Boa ideia’, pensou o fiscal.”

b) As narrativas costumam organizar-se nestas partes, que você já conhece.

Situação inicial        Desenvolvimento (ações)      Complicação

Clímax (o ponto mais tenso)           Desfecho

Indique  que momento da narrativa corresponde à complicação e ao desfecho.

Complicação: Os marrecos são presos.

Desfecho: O marreco é fichado como se fosse um criminoso.

 05.Releia estes trechos.

Nisso, chegou um segundo fiscal [...] e decretou: “o marreco não pode ficar solto, é um agente da poluição”.

O funcionário tirou sua gravata, pediu um paletó emprestado a um datilógrafo, tiraram as fotos necessárias e depois engaiolaram o marreco. E não é que no dia seguinte a poluição em São Paulo diminuiu sensivelmente...

a)    Em sua opinião, o narrador acredita que a poluição tenha diminuído depois da prisão do marreco? Explique sua resposta.

Não, ele está zombando da atitude dos burocratas.

b)    Além do contexto, no segundo trecho, qual é a expressão que confirma sua resposta?

Espera-se que os alunos percebam que é a expressão “não é que”, que indica suposta surpresa.

Recursos expressivos

01. A história é narrada em 3a pessoa.

a)   Quem poderia ser esse narrador?

Uma pessoa que teria presenciado os acontecimentos.

b)   Como você o imagina?

Resposta pessoal. Possibilidade: Uma pessoa crítica, irônica e bem-humorada.

c)   Você acha que o narrador poderia ter mesmo presenciado tudo que narra? Explique.

Resposta pessoal.

02. As crônicas podem apresentar uma mistura de trechos narrativos, expositivos (em que se expõem informações para explicar algo), descritivos e opinativos. Indique no caderno se os trechos a seguir são narrativos, expositivos, descritivos ou opinativos.

a)   O marreco Quércia — deixa-me explicar — ganha a vida honestamente como relações públicas da casa A. D. [...]. expositivo

b)   Foi ao telefone e ligou para o chefe da repartição [...].

narrativo

c)    Formou-se a maior confusão em torno do marreco.

narrativo

d)   Sim, claro: quando um povo começa a prender marrecos é porque não tem mais nada para fazer.

opinativo

e)   Nisso, chegou um segundo fiscal pouquinha coisa mais inteligente que o primeiro [...].

opinativo

03. O fiscal e os policiais queriam que o marreco seguisse uma série de normas. Indique algumas dessas normas.

Sugestões: O marreco não pode andar sem documentos, a ave não deveria andar sem roupas nem estacionar em local proibido, o marreco não pode ficar solto, é um agente de poluição.

04. Há momentos em que o narrador conversa diretamente com o leitor, tornando o texto mais informal. Localize um deles.

“O marreco Quércia — deixa-me explicar — ganha a vida honestamente como relações públicas [...].”

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