Relato de viagem: Brasília
Beatriz Sarlo
Caminhamos até a praça dos Três
Poderes, que era a imagem de Brasília que melhor conhecíamos por fotografias.
Nossa ideia de espaço público havia se
limitado, até pisar a praça dos Três Poderes, à praça de Maio de Buenos Aires.
As diferenças são evidentes, mas apenas ali tivemos consciência delas. A praça
de Maio é o produto de uma superposição de modificações, reconstruções e
demolições realizadas ao longo de dois séculos. Não surge de um só gesto, mas
sim de uma soma estatística e paisagística, da coexistência desigual dos
edifícios neoclássicos, italianos e modernos que a rodeiam. É heterogênea, suas
qualidades não provêm de uma só concepção urbanística nem arquitetônica, mas
sim de acréscimos e correções. Fundamentalmente, seu sentido é dado pelos
acontecimentos que ocorreram e ocorrem ali. A praça de Maio está quase sempre
(inclusive sob ditaduras militares) cheia de gente, curiosos, manifestantes,
vendedores, turistas, mendigos, veteranos das Malvinas.
Em 1970, a diferença com a praça dos
Três Poderes não provinha só da beleza, que, claro, nos deixou pasmos, enquanto
caminhávamos de um extremo ao outro pelas esplanadas. A diferença era que a
praça dos Três Poderes estava deserta. Não havia ninguém ali. Seu simbolismo se
originava na potência do gesto arquitetônico e construtivo, na confiança
política fundacional, não nas camadas do passado que ainda não haviam tido
tempo de se depositar sobre aquelas superfícies perfeitas. Na praça dos Três
Poderes, a decisão de um Estado e o gênio de Niemeyer haviam substituído a
história que é a grande arquiteta das outras praças latino-americanas.
Tudo estava vazia. Uma fotografia
mostra dois de nós, distantes várias centenas de metros do palácio do Planalto.
A extensão registrada é enorme. Sobre a planície de cimento estão apenas esses
dois argentinos, contra a silhueta do palácio. É aproximadamente meio-dia e não
se vê ninguém mais. Aposta máxima da arquitetura moderna: sustentar-se sobre
vazio. Chandigarh, Brasília, autofundar-se com um duplo gesto material e
simbólico.
Hoje as imagens são bem diferentes.
Centenas de presidentes, ministros e embaixadores percorreram essa extensão,
registrados em milhares de fotos jornalísticas e de sequências televisivas.
Quando nós chegamos, ao contrário, a fenomenal e desmesurada aposta estava nua.
Então podia se formular a pergunta: o que será amanhã, dentro de vinte ou
trinta anos, desta esplanada deserta?
Não nos fizemos essa pergunta.
Aparentemente simples, era, no entanto, complicada demais para nós. Discutimos
outras coisas. Habituados às mobilizações em praça pública, nos esforçamos por
imaginar como seria uma hipotética mobilização popular na praça dos Três
Poderes. Sentados sobre o cimento, ao sol, só pensávamos a partir do que acreditávamos
ser uma espécie de norma universal: as praças são projetadas para que os
manifestantes as ocupem. A clareza do Plano Piloto acentuava nosso erro: como
se Lucio Costa (ao contrário do barão de Haussmann) houvesse decidido um
traçado urbano especialmente propício para multidões que avançassem em colunas
pela avenida dos ministérios até a praça.
Assim delirávamos, impactados por uma
obra ainda desprovida das imagens que iriam rodeá-la com o passar do tempo.
Simultaneamente ela tinha algo de irreal, como se estivéssemos passeando por
uma cenografia da história futura. As duas cúpulas invertidas, as duas torres
brilhavam com a aura do vento. Não havia acontecido ainda o lento, inexorável e
desgastante processo que converte as imagens, os edifícios, as paisagens em
familiares. Tudo explodia diante dos olhos.
SARLO, Beatriz. Viagens
da Amazônia às Malvinas. São Paulo: E-galáxia, 2015. [s. p.].
Fonte: Práticas de
Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Faraco – Moura – Maruxo – 1ª
ed., São Paulo, 2020. Ed. Saraiva. p. 44-6.
Entendendo o relato:
01 – É possível que você já
tenha visto imagens da praça dos Três Poderes, em Brasília (DF), em meios de
comunicação impressos e digitais. Em sua opinião, essa praça, na situação
atual, aproxima-se ou não da imagem construída por Beatriz Sarlo? Por quê?
Responda no caderno.
Resposta pessoal
do aluno.
02 – Na opinião da escritora
Beatriz Sarlo, que característica da praça dos Três Poderes, em Brasília (DF),
dificultaria a ocupação do espaço?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Segundo Sarlo, a concepção arquitetônica da praça Três
Poderes, muito ampla, dificulta a percepção do entorno da praça, dos limites do
perímetro.
03 – De acordo com o relato de
Sarlo, que aspectos da praça de Maio, em Buenos Aires, na Argentina, e da praça
dos Três Poderes, em Brasília (DF), ajudam o leitor a compreender a diferença
entre esses locais?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Em sua opinião, o relato
de viagem de Sarlo permite entender a diferença entre as cidades de Buenos
Aires e Brasília? Explique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: As alterações sofridas pela praça de Maio ao longo de dois
séculos são consequências de momentos históricos pelos quais a Argentina e
também sua capital passaram. Em contrapartida, à época da visita de Sarlo à
praça dos Três Poderes, em Brasília, não existiam marcas históricas e temporais
como em outras cidades do Brasil, uma vez que a própria cidade fora projetada pouco
antes de 1960.
05 – Muitas manifestações
populares já aconteceram na praça dos Três Poderes nos mais de cinquenta anos
da construção de Brasília.
a) Ao tentar definir a Brasília que visitava nos anos 1970. Sarlo utiliza uma imagem que reflete a impressão de uma cidade construída do nada. Que imagem é essa?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A ideia de uma cidade vazia.
Uma das possibilidades é o trecho “aposta máxima da arquitetura moderna:
sustentar-se sobre o vazio”.
b) Em que essa impressão de Sarlo contrasta com a imagem das manifestações populares já ocorridas na capital do Brasil?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Ao longos dos anos, desde a
construção de Brasília, as muitas manifestações ocorridas na capital do país
permitiram a ocupação dos espaços vazios da cidade pela multidão, incluindo a
praça dos Três Poderes.
06 – Que adjetivo você
empregaria para caracterizar a impressão que Beatriz Sarlo teve da cidade de
Brasília? Esse adjetivo expressa a característica que você, hoje, atribui a
essa cidade? Explique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno.
07 – Após refletir com os
colegas e o professor sobre o relato de viagem, como você responderia à
seguinte pergunta de Beatriz Sarlo: “O que será amanhã, dentro de vinte ou
trinta anos, desta esplanada deserta”? Socialize a resposta oralmente com os
colegas.
Resposta pessoal
do aluno.
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