CONTO: Os carros automáticos
Isaac Asimov
Sentamos no banco embaixo do velho
carvalho. Dali dava para avistar toda a extensão do pequeno lago e a rodovia
particular que tínhamos do lado oposto. Era um dia quente, os carros estavam do
lado de fora, distraindo-se – uns trinta deles, pelo menos. Mesmo a distância
eu podia ver que Jeremiah estava entregue à sua brincadeira de costume,
acompanhando em marcha lenta um dos modelos mais sérios, mais antigos, e de
repente arrancando em plena potência, cantando pneus e o ultrapassando com
estridência em questão de segundos. Há duas semanas ele tinha assustado o velho
Angus, fazendo-o perder a direção e sair do asfalto; aí tive que desligar seu
motor por dois dias.
Pelo que vejo agora, não adiantou
muito; parece que não há nada a fazer. Jeremiah é um desses modelos esportivos,
eles são assim mesmo, dão o maior trabalho.
-- Muito bem, Sr. Gellhorn – falei. – Quais
são as informações que deseja?
Mas o cara estava distraído, olhando em
redor.
-- Que lugar fantástico, Sr. Folkers.
-- Pode me chamar de Jake. Todo mundo chama.
-- Ok, Jake. Quantos carros você tem
aqui?
-- Cinquenta e um. Todo ano chegam mais
um ou dois. Houve um ano em que vieram cinco. Até agora não perdemos nenhum.
Estão todos funcionando perfeitamente. Temos até mesmo um Mat-O-Mot de 2015 em
perfeito funcionamento. Um dos primeiros automáticos. Foi o primeiro carro que
trouxemos para cá.
O velho Matthew. Agora ele costumava
ficar na garagem a maior parte do dia, afinal de contas ele era o avô de todos
os carros positrônicos. Da época em que os carros automáticos eram utilizados
apenas por veteranos de guerra, paraplégicos e chefe de Estado. Mas naquela
época Samson Harridge era meu patrão, ele era rico o bastante para ter um carro
automático. Eu era seu chofer.
Pensar naquilo fez com que me sentisse
velho. Sou do tempo em que não existia um único automóvel no mundo capaz de
encontrar sozinho o caminho de casa. Já dirigi umas coisas enormes e
desajeitadas cujo motorista não podia tirar as mãos do volante por um só
momento. Monstrengos desse tipo matavam dezenas de milhares de pessoas todo
ano.
Os automáticos resolveram esse
problema. Um cérebro positrônico pode reagir muito mais rápido do que um
cérebro humano, claro, e as pessoas não tinham que manter as mãos nos controles
o tempo inteiro. Sentavam ao volante, digitavam as instruções sobre o trajeto e
o carro fazia o resto sozinho.
Hoje em dia todo mundo já está
acostumado, mas eu me lembro de quando surgiram as primeiras leis retirando das
autoestradas os carros velhos e só autorizando viagens em carros automáticos.
Deus do céu, que balbúrdia. Disseram que isso era fascismo, que era comunismo,
mas o fato é que as estradas ficaram muito mais tranquilas e as mortes por
acidentes pararam como por encanto; um número muito maior de pessoas passou a
viajar com muito mais segurança.
Claro que os automáticos eram de dez a
cem vezes mais caros do que os carros manuais, e não havia muita gente que
pudesse pagar esse preço. A indústria começou a derivar para a produção de
ônibus automáticos. A qualquer momento você podia chamar uma empresa e em
poucos minutos ter um desses ônibus à sua porta, indo na direção que você
queria. Você tinha que viajar ao lado de outras pessoas que iam para o mesmo
lado, mas qual era o problema?
Samson Harridge, no entanto, tinha um
automóvel particular, e eu fui contra ele desde o instante em que o vi. Naquele
tempo, eu não via o tal carro como “Matthew”, não podia imaginar que ele se
tornaria no futuro o decano de nossa Fazenda. A única coisa que eu sabia era
que aquele carro ia me jogar no desemprego, por isto o odiei.
Falei:
-- Bem, acho que não vai mais precisar
de mim, Sr. Harridge.
-- Ora, Jake, que bobagem está me
dizendo? – foi a resposta dele. – Você não está pensando que vou deixar essa
geringonça tomar conta de mim, não é mesmo? Você é quem vai ficar ao volante.
Eu falei:
-- Mas esse carro funciona sozinho, Sr.
Harridge. Ele capta e analisa a imagem da estrada, evita os obstáculos, sejam
eles carros ou pedestres, e arquiva os trajetos na memória.
-- Sim, é o que dizem. Mesmo assim,
prefiro que você esteja sentado ao volante, no caso de alguma coisa não correr
bem.
É engraçado como a gente pode chegar a
se afeiçoar a um carro. De um dia para o outro eu já o tinha batizado de
Matthew e passava a maior parte do tempo dando polimento nele, checando o
motor. Um cérebro positrônico funciona melhor quando está em contato permanente
com o seu “corpo”, ou seja, o chassi, de modo que ajuda bastante se a gente
mantiver o tanque cheio para que o motor possa ficar ligado dia e noite. Depois
de algum tempo acostumei-me tanto àquilo que bastava ouvir o som do motor para
saber como Matthew estava se sentindo.
O Sr. Harridge também gostava muito de
Matthew, ao seu modo. Ele não tinha ninguém mais para gostar. Tinha ficado sem
três esposas, através da viuvez ou do divórcio; e acabou vivendo mais tempo do
que cinco filhos e três netos. Desse modo, quando morreu não foi surpresa para
ninguém que ele fizesse converter suas propriedades numa Fazenda para
Automóveis Aposentados, onde eu era o curador e Matthew o primeiro membro de
uma família que viria a se tornar ilustre.
Minha vida passou a ser apenas isso.
Nunca me casei. Você não pode ser casado e ao mesmo tempo se dedicar a carros
automáticos de uma maneira adequada.
Sonhos de Robô. São
Paulo, Record, 1991. p. 151-153.
Fonte: Português –
Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder
Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 231-4.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Carvalho: tipo de árvore.
·
Extensão: tamanho.
·
Estridência: barulho em tom alto.
·
Positrônico: referente ao pósitron antipartícula do elétron (parte do
átomo).
·
Paraplégicos: pessoas com problemas de locomoção, com paralisia de certos
membros.
·
Balbúrdia: confusão.
·
Fascismo: sistema político muito autoritário.
·
Comunista: pensamento político que proíbe a propriedade particular dos
meios de produção.
·
Decano: o mais velho.
·
Geringonça: máquina estranha, engenhoca.
·
Converter: transformar.
·
Curador: aquele que cuida de uma instituição cultural.
·
Adequada: certa, correta.
02 – Onde acontecem os fatos
apresentados no texto?
Os fatos
acontecem em um museu de automóveis automáticos.
03 – Quando acontecem esses
fatos?
Esses fatos acontecem num futuro
distante, em algum ponto do século XXI.
04 – Quem são Jeremiah e
Matthew?
São carros
automáticos: Jeremiah é um carro esportivo, brincalhão e “sem juízo”; Matthew é
o mais velho dos carros automáticos, o primeiro que foi trazido pelo
milionário.
05 – Quem é o narrador? O
que sabemos dele?
O
narrador é Jake Folkers, motorista do falecido milionário Samson Harridge. Jake
é solteiro e cuida do museu dos carros automáticos.
06 – Como são os carros
automáticos? Que habilidades eles têm?
Os carros
automáticos dirigem a si mesmos. Chegam a ter vida própria: captam e analisam a
imagem da estrada, evitam obstáculos e arquivam os trajetos na memória.
07 – Qual é a grande
vantagem dos automóveis automáticos sobre os atuais?
A vantagem é a segurança. Os automóveis
automáticos praticamente não sofrem acidentes, evitando automaticamente carros
e pedestres.
08 – Como se sentia o senhor
Harridge quanto aos carros automáticos?
Devia gostar
muito deles porque destinou sua fortuna para um museu de carros automáticos.
09 – E Jake Folkers, como se
sentia com relação aos carros automáticos?
Igualmente, devia gostar deles, pois nem
se casou para dedicar-se ao museu de carros automáticos “de maneira adequada”.
10 – O texto se passa no
século XXI. As personagens se comportam de modo diferente dos seres humanos?
A pergunta é
especulativa. As personagens se comportam como os seres humanos atuais. A
diferença reside no comportamento das máquinas.
11 – Você gostaria de
possuir um carro automático? Por quê?
Resposta pessoal
do aluno.
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