Crônica: Minha vida como pivete
Moacyr Scliar
Não há segundo ato nas vidas
americanas, disse Scott Fitzgerald, mas há nas vidas brasileiras: segundo,
terceiro, décimo atos. Num desses atos – misteriosos são os desígnios da
Providência – fui um pivete.
Não por muito tempo, devo dizer. Na
verdade, por muito pouco tempo, e em circunstâncias especiais. Aconteceu no Bom
Fim, e numa época em que o bairro ainda não era barra-pesada. Nós estávamos na
rua João Telles, uma noite, e jogávamos futebol no meio da rua. O futebol não é
um esporte silencioso, e algazarra nós fazíamos, não muita, mas o suficiente
para incomodar um dos moradores, que veio à janela e mandou-nos embora.
Seguiu-se uma áspera troca de palavras, e a janela fechou-se, no que parecia
uma retirada.
Não era. Enquanto continuávamos o jogo,
o homem chamava a polícia. Minutos depois encostava na rua uma viatura da PM.
Podíamos, ou devíamos ter fugido: na verdade, porém, não nos ocorria que o
objetivo das forças da lei era o nosso precário futebol. Para nossa surpresa os
policiais vieram em nossa direção. Um deles olhou-me (nunca imaginei ter
aparência perigosa) e, abrindo a porta do camburão, ordenou:
-- Entra!
Vacilei. Olhei lá dentro. Era um
compartimento escuro e apertado aquele, um lugar de aparência sombria. Mas o
pior era o significado de entrar ali. Quando a porta se fechasse, com estrondo,
sobre mim, eu não apenas estaria separado de meu bairro, de meus amigos, de
minha família. Eu estaria penetrando numa outra realidade, tão escura, apertada
e sombria quanto o compartimento dos presos no camburão. Eu estaria ingressando
na marginalidade, e quem me garantia que dela sairia? Não seria aquele o meu
primeiro passo numa carreira (talvez bem-sucedida; talvez trágica; quem conhece
os desígnios da Providência?) de gângster?
O policial esperava, impaciente, e eu
não me decidia, mas aí o destino interveio, sob a forma de um morador.
Dirigindo-se aos homens da lei, ele ponderou que não valia a pena me levar,
mesmo porque me conhecia e estava seguro de que eu era um bom guri.
-- Garanto que ele não incomoda mais –
repetia.
Os homens se olharam e resolveram que
não valia a pena gastar uma ficha policial comigo. De modo que depois de
algumas ameaças embarcaram na viatura e se foram.
Era o Bom Fim, não a Candelária; era o
Brasil, não a Europa Oriental. Escapei do Holocausto porque meus pais vieram
para este país, onde nasci. E escapei porque havia alguém ali para dizer que,
apesar das aparências, eu era um bom guri. Tive sorte. Temos, todos nós, muita
sorte. Em nome desta sorte devemos pensar, cada vez que olhamos um suposto
pivete, que ele pode, afinal, ser um bom guri.
Zero Hora. Porto
Alegre, 27 jul. 1993. Segundo Caderno.
Fonte: Português –
Linguagem & Participação, 5ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder
Rivas – Ed. Saraiva, 2ª ed. 1999, p. 83-5.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Scott
Fitzgerald (1896-1940): escritor
norte-americano, autor de O Grande Gatsby e de Suave é a Noite.
·
Marginalidade: condição de indivíduo marginal, aquele que vive à margem da
sociedade como mendigo, vagabundo ou delinquente.
·
Ato: parte em que se divide uma peça de teatro; ação, atitude.
·
Guri: garoto (no Rio Grande do Sul).
·
Desígnios: desejos, vontades.
·
Candelária: praça do Rio de Janeiro onde policiais mataram menores de
rua.
·
Providência: situação, estado de coisas em determinado momento. No texto,
ajuda de Deus.
·
Holocausto: massacre de milhões de judeus pelos nazistas durante a
Segunda Guerra Mundial; assassinato de grupos de pessoas que não têm como se
defender.
·
Barra-pesada: perigoso.
·
Áspera: agressiva.
·
Precário: frágil; insuficiente.
·
Suposto: hipotético, imaginário.
·
Compartimento: espaço cercado; divisão de uma casa.
·
Pivete:
menino de rua.
02 – Encontre dois cognatos
para as seguintes palavras retiradas do texto “Minha vida como pivete”.
·
Vida: vivo, viver.
·
Áspero: aspereza, asperamente.
·
Brasil: brasileiro, brasilidade.
·
Imaginação: imaginar, imaginário.
·
Verdade: verdadeiro, verdadeiramente.
·
Perigosa: perigo, perigosamente.
·
Tempo: temperatura, temporal.
·
Fechar: fechadura, fechado.
03 – O narrador é aquele que
conta a história. O título “Minha vida
como pivete” indica quem deve ser o narrador dessa história? Justifique sua
resposta.
O narrador deve
ser o próprio pivete devido ao uso do pronome minha especificando de quem é a vida de pivete.
04 – Se observarmos melhor,
o narrador desse texto também é uma das personagens porque conta a sua própria
história. Qual é o fato mais importante do texto para o narrador?
O fato de ter
sido “convidado” a entrar no carro da polícia.
05 – Onde e quando
aconteceram os fatos presentes no texto?
Os fatos
aconteceram no bairro do Bom Fim – quando ainda não era barra-pesada –, na rua
João Telles.
06 – Identifique a causa que
levou um dos moradores a chamar a polícia. Justifique a sua resposta.
Um dos moradores
da rua não queria que os meninos jogassem futebol devido ao barulho que faziam.
Ele não conseguiu que os meninos parassem e chamou a polícia.
07 – A princípio, a chegada
da viatura da PM não incomodou os meninos. Que atitude dos policiais fez com
que os meninos mudassem de opinião?
Os policiais
caminharam na direção dos meninos.
08 – Como o
narrador/personagem se livrou de ser preso?
Um vizinho
convenceu a polícia de que o menino era um bom guri.
09 – Como você entendeu o
desfecho do texto: Em nome desta sorte devemos pensar, cada vez que olhamos um
suposto pivete, que ele pode, afinal, ser um bom guri?
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