História: O velho lobo-do-mar (Fragmento)
R. L. Stevenson
O squire Trelawney, o Dr. Livesey e os
outros cavalheiros tendo pedido para que eu escrevesse sobre a Ilha do Tesouro,
lance por lance, do começo até o fim, não deixando nada de fora a não ser a
localização da ilha, e isso apenas porque há nela um tesouro ainda não
retirado, pego de minha pena no ano da graça de 17... e recuo até a época em
que meu pai possuía a estalagem Almirante Benbow e em que o velho marinheiro
moreno, com um corte de sabre, veio hospedar-se sob nosso teto.
Lembro-me dele como se fosse ontem, de
como foi aproximando-se devagar da porta da estalagem, de seu baú de marujo
vindo atrás num carrinho de mão; um homem alto, forte, pesado, de pele
amorenada; um rabo-de-cavalo seboso caía sobre os ombros de seu casaco azul
manchado; as mãos, cheias de calos e cicatrizes, as unhas pretas e quebradas; o
corte de sabre de um lado do rosto era de um branco lívido, sujo. Lembro-me
dele olhando a enseada e assoviando para si mesmo, como costumava fazer, e
súbito entoando aquela velha canção do mar que, depois, ele cantou tantas
vezes:
Quinze homens sobre o baú do morto
Yo-ho-ho, e uma garrafa de rum! No mais
alto de uma voz trêmula, velha, que parecia ter sido modulada e triturada nas
barras do cabrestante. Então bateu na porta com um pedaço de vara igual a uma estaca
que carregava e, quando meu pai apareceu, pediu com rispidez um copo de rum.
Quando foi servido, bebeu lentamente, como um bom apreciador, demorando-se a
saboreá-lo e olhando sempre à sua volta para os rochedos e espiando nossa
tabuleta.
-- É uma enseada jeitosa – disse, por
fim. – E um boteco agradavelmente situado. Muita gente, companheiro?
Meu pai disse-lhe que não, muito pouca
gente, o que era mesmo uma pena.
-- Bem – ele disse –, para mim isto é
uma cabine. Você aí, camarada – gritou para o homem que empurrava o carrinho. –
Traga meu baú para cá e o leve para dentro. Vou ficar aqui algum tempo –
continuou. – Sou um homem simples; rum, bacon e ovos é tudo que quero e ficar
vendo daqui de cima passar os navios. Como é que deve me chamar? Pode me chamar
de capitão. Ah, já sei em que é que... está aqui. – E jogou na soleira três ou
quatro moedas de ouro. – Pode me avisar quando eu já tiver gasto – disse,
olhando ameaçadoramente como um comandante.
E, de fato, apesar das roupas ruins e
do jeito grosseiro de falar, não tinha a aparência de um simples marinheiro;
parecia mais um capitão de navio, acostumado a ser obedecido ou a intimidar. O
homem que trouxe o carrinho disse-nos que a diligência o deixara de manhã
diante do Royal George; que ele perguntara sobre as estalagens que existiam ao
longo da costa e ouvindo falar bem da nossa, suponho, que fora descrita como
isolada, escolhera-a para sua residência. E isso foi tudo que pudemos saber
sobre nosso hóspede.
Ele era um homem silencioso por hábito.
Passava os dias rondando a enseada ou sobre os rochedos, com um telescópio de
metal; à noite, sentava-se a um canto da sala de estar perto do fogo e bebia
rum forte misturado com água. Na maioria das vezes não respondia quando falavam
com ele, apenas olhava de modo rápido e feroz, e a soprar pelo nariz como um
fole; e nós e as pessoas que vinham à nossa casa logo aprendemos a deixa-lo a
sós. Todo dia, quando voltava de seu passeio, perguntava se algum marinheiro
tinha passado pela estrada. No início, pensamos que era o desejo de companhia
de alguém de seu meio que o fazia perguntar, mas por fim começamos a desconfiar
que ele desejava evita-los. Quando algum marujo parava no Almirante Benbow
(como ainda hoje alguns fazem, tomando a estrada costeira para Bristol), ele o
olhava através das frestas da porta antes de entrar na sala; e sempre
mantinha-se calado como um rato quando havia alguém assim. Para mim, pelo
menos, o caso já não tinha mais segredo, pois eu, de certo modo, partilhava de
seus alarmes. Um dia chamou-me de lado e me prometeu uma moeda de prata de
quatro pence no primeiro dia de cada mês se eu ficasse “de olho num marujo com
uma perna só” e o avisasse quando ele aparecesse. Muitas vezes, quando chegava
o primeiro dia do mês e eu lhe pedia meu pagamento, ele apenas soprava pelo
nariz e me fazia baixar a vista; mas antes que a semana terminasse ele sempre
mudava de ideia, dava-me a moeda de quatro pence e repetia suas ordens sobre “o
marujo com uma perna só”.
Como esse personagem assombrava meus
sonhos, eu nem sei dizer-lhe. Nas noites de tempestade, quando o vento sacudia
os quatro cantos da casa e a rebentação zoava ao longo da enseada e contra os
rochedos, eu ficava a vê-lo de mil formas e com mil expressões diabólicas. Ora
a perna era cortada até o joelho, ora até os quadris, ora era um tipo
monstruoso de criatura que sempre tivera uma perna só, bem no meio de seu
corpo. Vê-lo saltar e correr e perseguir-me entre as sebes e sobre o fosso era
o pior dos pesadelos. E assim, no fim de contas, eu pagava muito caro pelos
quatro pence mensais, sob a forma dessas fantasias abomináveis.
Mas, embora eu tivesse aterrorizado com
a ideia do marujo de uma perna só, era eu quem tinha menos medo do próprio capitão
do que qualquer outro que o conhecia. Havia noites em que ele tomava bem mais
rum com água do que sua cabeça podia aguentar; e aí algumas vezes sentava-se e
cantava as suas velhas, perversas, rudes canções de marujo, sem ligar para
ninguém; mas às vezes pedia copos para os outros e forçava seus trêmulos
convivas a ouvir suas histórias ou a acompanha-lo, fazendo coro para sua
cantoria. Ouvi muitas vezes a casa estremecer com seu “Yo-ho-ho, e uma garrada
de rum!”; todos o acompanhavam por amor à vida, com medo de morrer ali mesmo, e
cada um cantando mais alto que o outro, para evitar reprimendas. Pois nesses
acessos ele era o mais tirânico companheiro que jamais se viu; dava murros na
mesa para impor silêncio a todos; ficava tomado pela raiva a uma pergunta
qualquer ou às vezes porque ninguém perguntava e, desse modo, julgava que sua
plateia não estava seguindo a história. Nem permitia também que ninguém saísse
da estalagem enquanto não estivesse caindo de bêbado e fosse cambaleando para a
cama.
Mas eram suas histórias o que mais
assustava as pessoas. Eram terríveis histórias, essas; sobre enforcamentos e
andar em cima da prancha e tempestades no mar e sobre Tortuga e façanhas
selvagens e lugares nos mares da Espanha. Pelo que contava, devia ter passado
sua vida entre alguns dos mais perversos homens que Deus colocava sobre o mar;
e a linguagem em que contava essas histórias chocava nossa simples gente do
campo quase tanto quanto os crimes que descrevia. Meu pai estava sempre dizendo
que a estalagem iria arruinar-se, pois logo as pessoas deixariam de vir para
não serem tiranizadas e humilhadas e irem para a cama tremendo; mas eu
acreditava de fato que sua presença nos fazia bem. Na época, as pessoas estavam
apavoradas, mas lembrando direito elas bem que gostavam daquilo; era uma bela
excitação numa tranquila vida no campo; e havia até mesmo uma parte dos mais
jovens que achava que o admirava, chamando-o de “um verdadeiro lobo-do-mar” e
um “autêntico marinheiro da velha-guarda” e outros nomes assim, e dizendo que
aquele era o tipo de homem que tinha tornado a Inglaterra temível nos mares.
[...]
A Ilha do Tesouro. São
Paulo, Ática, 1997.
Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p.217-220.
Entendendo a história:
01 – No texto lido, qual é o
significado da expressão lobo-do-mar?
A quem ela é atribuída?
No texto,
“lobo-do-mar” significa marinheiro experiente, que conhece bem todos os
detalhes de sua profissão. A expressão é atribuída ao velho marinheiro que se
intitula “capitão” e se hospeda na estalagem Almirante Benbow.
02 – Qual é o significado da
expressão ano da graça? Por que
existem reticências depois de 17?
A expressão “ano
da graça” tem origem religiosa e é utilizada para indicar um ano determinado
depois do nascimento de Cristo. As reticências foram empregadas porque o
narrador não quis precisar para o leitor o ano exato em que se passaram os
fatos que pretende narrar.
03 – Faça uma lista de
palavras e expressões cujo significado você desconhece. Se não puder deduzi-lo
do próprio texto, pesquise num dicionário. Lembre que nos dicionários as
palavras podem apresentar mais de um significado. Anote apenas o adequado para
cada palavra ou expressão na frase em que ela aparece.
Resposta pessoal do aluno.
04 – Quem narra a história
da Ilha do Tesouro?
O filho do dono
da estalagem Almirante Benbow, que é um narrador-personagem.
05 – Quais aspectos físicos
do marinheiro o narrador selecionou para descrevê-lo?
Homem alto,
forte, pesado, de pela amorenada; um rabo-de-cavalo seboso caído sobre os
ombros; mãos calosas e com cicatrizes; unhas pretas e quebradas; um corte de
sabre de um lado do rosto.
06 – Quais aspectos do modo
de ser do marinheiro o narrador selecionou para descrevê-lo?
Ríspido,
autoritário, modo grosseiro de falar, silencioso, preferia o isolamento,
desconfiado em relação aos desconhecidos. Gostava de cantar canções do mar e de
contar histórias de terror numa linguagem rude, que despertava medo em seus
interlocutores.
07 – A descrição do velho
marinheiro permite ao leitor visualizá-lo? Leve em conta suas respostas às
questões 5 e 6 para chegar a uma conclusão e comente sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
08 – De seu ponto de vista,
qual aspecto do marinheiro mais chamava a atenção dos que visitavam a estalagem
e do narrador e pode despertar também a curiosidade do leitor?
O seu gosto por
contar histórias de terror. Essa característica do marinheiro pode criar no
leitor a expectativa de que a história que vai ler certamente envolve aventuras
e façanhas no mar.
09 – Quais fatos do texto
permitem ao leitor imaginar que o marinheiro esperava alguém?
Ele passava os
dias rondando a enseada ou sobre os rochedos, com um telescópio de metal.
Depois, ofereceu dinheiro para o filho do dono da estalagem (e narrador da
história) para que ele o avisasse a respeito da chegada de um marujo com uma
perna só.
10 – O marujo que talvez apareça
na estalagem é amigo do “capitão” ou pode haver um conflito entre eles?
Justifique sua resposta com elementos do texto.
Pode haver um
conflito entre eles. O fato de o “capitão” ter oferecido dinheiro para que o
filho do dono da estalagem vigiasse a chegada desse marujo comprova a
possibilidade de um conflito.
11 – Informe-se sobre o que
é uma enseada e, em seu caderno, desenhe-a cercada de rochedos.
Resposta pessoal
do aluno.
12 – O texto que você leu é
um trecho do 1° capítulo de um livro chamado A Ilha do Tesouro. Em sua opinião,
este é um bom início? Comente um pouco sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
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