Carta: Anita Malfatti
Mário de Andrade
S. Paulo 1-12-1924
Anita do coração, estou pra te escrever
faz dias dando-te os parabéns pela tua aceitação no Salão de Outono. Fiquei
contentíssimo e consegui notícias no Jornal do Comércio e Correio Paulistano.
No Estado não posso chegar. Inimigos. Mas soube pela tua mãi que reproduziram a
notícia. Ainda bem. Apareceu alguma crítica? Também é tanta gente a concorrer
ao Salão!... E teus quadros ficaram bem colocados? Morri de desejo de vê-los. E
a estátua do Brecheret? Aquele animal não há meio de me escrever nem uma linha.
Estou danado com ele. Por que não pede pra noiva, não? Quem tem uma noivinha
boa como me dizem que é a dele, pode pedir a ela que escreva. Depois bota um
abraço em baixo e pronto. Vi a fotografia da Porteuse de Parfums. Achei-a
lindíssima. Que equilíbrio e que construção! Morri de desejos de vê-la também.
Vivo morrendo por causa de vocês. Que amigos assassinos, puxa! Brecheret ao
menos mandou fotografias. E tu nem isso! Pois si já me contaste que as
fotografias foram tiradas, por que se fazer de rogada agora? Manda as
fotografias in continente sinão me zango de verdade.
Nós aqui bem. Eu como sempre de cangalha
no pescoço. Mal posso me mexer. Antes-de-ontem caí do bonde. Um Horror! Assim:
De bunda no trilho. Felizmente há um anjo-da-guarda pros malucos que tomam
bonde andando. O caradura me pegou com as pernas e me atirou longe. Rolei no
asfalto que nem uma bolinha de papel, disse um que viu. Felizmente não
aconteceu nada. Escangalhei roupa, chapéu e botina. No corpo umas arranhaduras.
Só que tudo me dói, pescoço, braços, joelhos, costas, tudo. Está sarando, não
te assustes.
Já te falei do baile futurista? Esteve
estupendo. Um pintor russo de muito valor que mora agora aqui fez as decorações
duma sala. Estupendas, nem imaginas. E esteve divertidíssimo até 6 horas da
manhã.
Não tenho mais nada pra te contar. Ando
miquiado e saí de Ariel. São trezentos milréis de menos. Justamente o que te
devo e não me esqueço. Dia virá. Espera. Dia virá, minha querida Anita. O
“querida” não está aqui pra adoçar a tua espera. Está porque te quero bem. Até
logo.
O mais apertado dos abraços do Mário.
Marta Rossetti Batista, org.
Mário de Andrade – Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1989.
Fonte: Livro – Ler,
entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p.131-3.
Fonte da imagem - https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FAnita_Malfatti&psig=AOvVaw18_iIFEz4qlg4p4TBEXork&ust=1611610652312000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCMC6y-DDte4CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo a carta:
01 – O texto acima é uma
carta enviada pelo escritor Mário de Andrade à pintora Anita Malfatti. Onde e
quando foi escrita essa carta?
Em São Paulo, em
1/12/1924.
02 – Muitas das expressões
usadas por Mário de Andrade em sua carta à amiga nos soam estranhas. No
entanto, ela foi redigida em português, a mesma língua que falamos hoje. Como
se explica essa estranheza?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Em mais de setenta anos, a língua – que não é algo rígido e
imutável – se transformou: fixou-se de alguma forma a grafia de certas palavras
que ainda era oscilante. Certos vocábulos deixaram de ser usados e outros foram
incorporados, etc. Acrescentem-se a isso certas maneiras de grafar próprias de
Mário de Andrade, que escrevia, por exemplo, mãi, sinão e si, em lugar de mãe,
senão e se.
03 – Leia: “Pois si já me contaste que as fotografias
foram tiradas, por que se fazer de rogada agora? Manda as fotos in continente
sinão me zango de verdade”. Tanto em sua correspondência como em algumas
obras, o escritor Mário de Andrade grafou certas palavras da forma como são
pronunciadas, e não como estão registradas no dicionário. Identifique no trecho
acima as palavras em que isso ocorre.
Si e sinão (em lugar de se e senão).
04 – Pesquise no dicionário
ou converse com pessoas mais velhas para descobrir o significado, no texto, de:
a) Fazer-se
de rogado;
Agir como pessoa que gosta que lhe peçam algo com insistência.
b) In
continente;
Imediatamente.
c) De
cangalha no pescoço;
Trabalhando bastante, sem tempo livre.
d) Escangalhar;
Estragar.
e) Estupendo;
Maravilhoso.
f) Miquiado.
Sem dinheiro.
05 – Mário de Andrade grafou
antes-de-ontem (com hifens) e milréis (em uma palavra só). Como essas
palavras aparecem registradas hoje nos dicionários?
Anteontem (ou antes de ontem); mil-réis.
06 – Releia: “Anita do coração, estou pra te escrever
faz dias dando-te os parabéns pela tua aceitação no Salão de Outono”.
a) Que pronome pessoal Mário de Andrade emprega para dirigir-se a sua interlocutora?
Tu.
b) Como você chegou a essa conclusão?
Pelo emprego do pronome pessoal oblíquo te e do pronome possessivo tua.
07 – A carta de Mário de
Andrade transmite certa jovialidade e revela a intimidade que havia entre os
interlocutores. Essa impressão é causada pelo emprego de algumas expressões
próprias da linguagem informal. Quais são elas?
Entre outras,
“pra”, “aquele animal”, “estou danado”, “puxa!”, “pros”, “que nem”, “pra adoçar
a tua espera”.
Muito obrigado
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