Texto Literário: Sedução
Eça de Queirós
“Luísa voltava entre os dedos o seu
medalhão de ouro, preso ao pescoço por uma fita de veludo preto.
-- E estiveste então um ano em Paris?
-- Um ano divino. Tinha um apartamento
lindíssimo, que pertencera a Lord Falmouth, Rue Saint Florentin; tinha três
cavalos....
E recostando-se muito, com as mãos nos
bolsos:
-- Enfim, a fazer este vale de lágrimas
o mais confortável possível! ... Dizes cá, tens algum retrato nesse medalhão?
-- O retrato do meu marido.
-- Ah! Deixa ver!
Luísa abriu o medalhão. Ele
debruçou-se; tinha o rosto quase sobre o peito dela. Luísa sentia o aroma fino que vinha de seus
cabelos.
-- Muito bem, muito bem! – fez Basílio.
Ficaram calados.
-- Que calor que está! – disse Luísa. –
Abafa-se, hem!
Levantou-se, foi abrir um pouco uma
vidraça. O sol deixara a varanda. Uma aragem suave encheu as pregas grossas das
bambinelas.
-- É o calor do Brasil – disse ele. –
Sabes que estás mais crescida?
Luísa estava de pé. O olhar de Basílio
Corria-lhes as linhas do corpo, e com a voz muito íntima, os cotovelos sobre os
joelhos o rosto erguido para ela:
-- Mas, francamente, dize cá, pensaste
que eu te viria ver?
-- Ora essa! Realmente, se não viesses
zangava-me. És o meu único parente.... O que tenho pena é que meu marido não
esteja...
-- Eu – acudiu Basílio – foi justamente
por ele não estar...
Luísa fez-se escarlate. Basílio emendou
logo, um ouço corado também:
-- Quero dizer... Talvez ele saiba que
houve entre nós...
Ela interrompeu;
-- Tolices! Éramos duas crianças. Onde
isso vai!
-- Eu tinha vinte e sete anos –
observou ele, curvando-se.
Ficaram calados, um pouco embaraçados.
Basílio cofiava o bigode, olhando vagamente em redor.
-- Estás muito bem instalada aqui –
disse.
Não estava mal ... A casa era pequena,
mas muito cômoda. Pertencia-lhes.
-- Ah! Estás perfeitamente! Quem é esta
senhora, com uma luneta de ouro?
E indicava o retrato por cima do sofá.
-- A mãe de meu marido.
-- Ah! Vive ainda?
-- Morreu.
-- É o que uma sobra pode fazer de mais
amável...
Bocejou ligeiramente, fitou um momento
os seus sapatos muito aguçados, e com um movimento brusco, ergueu-se, tomou o
chapéu.
-- Já? Onde estás?
-- No Hotel Central.
-- E até quando?
-- Até quando quiseres.
-- Não disseste que vinhas amanhã com o
rosário?
Ele tomou-lhe a mão, curvou-se:
-- Já se não pode dar um beijo na mão
de uma velha prima?
-- Por que não?
Pousou-lhe um beijo na mão, muito
longo, com uma pressão doce.
-- Adeus! – disse.
E à porta, com o reposteiro meio
erguido, voltando-se:
-- Sabes que eu, ao subir as escadas,
vinha a perguntar a mim mesmo como se vai isto passar?
-- Isto o quê? Vermo-nos outra vez?
Mas, perfeitamente. Que imaginaste tu?
Ele hesitou, sorriu:
-- Imaginei que não eras tão boa
rapariga. Adeus. Amanhã, hem?
No fundo da escada acedeu o charuto,
devagar.
-- Que bonita que ela está! – pensou.
E arremessando o fósforo, com força:
-- E eu, pedaço de asno, que estava
quase decidido a não a vir ver! Está de apetite! Está muito melhor! E sozinha
em casa: aborrecidinha talvez! ...
Luíza, quando o sentiu embaixo fechar a
porta da rua, entrou no quarto, atirou o chapéu para a causeuse, e foi-se logo
ver ao espelho. Que felicidade estar vestida! Se ele a tivesse apanhado em
roupão, ou mal penteada! ... [...]
-- Havia sete anos que não via o primo
Basílio! Estava muito trigueiro, mais queimado; mas ia-lhe bem!
E depois de jantar ficou junto à
janela, estendida na voltaire, com um livro esquecido no regaço. (...)
Que vida interessante a do primo
Basílio! – pensava. – O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer a s
suas malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos... [...] Era o que
ela tinha. Era bem feliz! Então veio-lhe uma saudade de Jorge, desejaria
abraçá-lo, tê-lo ali, ou quando descesse ir encontrá-lo fumando o seu cachimbo
no escritório, com o seu jaquetão de veludo. Tinha tudo, ele, para fazer uma
mulher feliz e orgulhosa: era belo, com uns olhos magníficos, terno, fiel.
[...]
Do céu estrelado caía uma luz difusa:
janelas alumiadas sobressaíam ao longe, abertas à noite abafada: voos de
morcegos passavam diante da vidraça.
-- A senhora não quer luz? – perguntou
à porta a voz fatigada de Juliana.
-- Ponha-a no quarto.
Desceu. Bocejava muito, sentia-se
quebrada.
-- É trovoada – pensou.
Foi a sala, sentou-se ao piano, tocou
ao acaso bocados da Lúcia, da Sonâmbula, o Fado, e parando, os dedos pousados
de leve sobre o teclado, pôs-se a pensar que Basílio devia vir no dia seguinte:
vestiria o roupão novo de foulard cor de castanho! Recomeçou o Fado, mas os
olhos cerravam-se-lhe.
E, foi para o quarto.
Juliana trouxe o rol e a lamparina.
Vinha arrastando as chinelas, com um casabeque pelos ombros, encolhida e
lúgubre. Aquela figura com um ar de enfermaria irritou Luísa.
-- Credo, mulher! Você parece a imagem
da Morte!
Juliana não respondeu. Pousou a
lamparina; apanhou, placa a placa, sobre a cômoda, o dinheiro das compras; e
com os olhos baixos:
-- A senhora não precisa mais nada,
não?
-- Vá-se mulher, vá!
Juliana foi buscar o candeeiro de
petróleo, subiu ao quarto. Dormia em cima, no sótão ao pé da cozinheira.
-- Pareço-te a imagem da Morte! –
resmungou, furiosa.
O quarto era baixo, muito estreito, com
o teto de madeira inclinado, o sol, aquecendo todo o dia as telhas por cima,
fazia-o abafado com um forno; havia sempre à noite um cheiro requentado de
tijolo escandecido. [...]
-- A senhora já se deitou, Srª.
Juliana? – perguntou a cozinheira do quarto pegado, de onde saía uma barra de
luz viva cortado a escuridão do corredor.
-- Já se deitou, Srª. Joana, já. Está
hoje com os azeites. Falta-lhe o homem!”
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. São
Paulo: Moderna.
Entendendo o texto:
01 – Muitas vezes observando
os gestos de uma personagem podemos perceber o que se passa com ela. Releia o
início do texto e explique o significado que pode ter o gesto de abrir a
vidraça, feito por Luísa. Será que ela
realmente estava apenas sentindo calor? Que outro significado pode ter esse
gesto no contexto?
Podemos dizer que
o “calor” sentido por Luísa é um índice de sua inquietação, da perturbação que
lhe causava a presença do primo, com quem tinha tido um relacionamento amoroso
antes do casamento.
02 – Sobre que assunto os
primos evitam falar de modo claro, embora ele seja insinuado o tempo todo?
Sobre o caso
amoroso que houve entre eles antes do casamento de Luísa.
03 – A visita de Basílio faz
Luísa compará-lo a Jorge. Cada um deles representa um tipo de vida. Quem sai
ganhando nessa comparação? Por quê?
Luísa acha o
Basílio muito interessante. Ela imagina que ele passe a vida em aventuras e
viagens e sonha em compartilhar com ele uma existência que imagina poética e
romântica. Bem diferente da vida burguesa que leva ao lado de Jorge.
04 – Com base nas
informações dadas pelo texto, faça uma descrição psicológica de Luísa.
Podemos dizer que
ela é uma mulher emocionalmente frágil. Exteriormente, parece ajustada ao
ambiente em que vive, mas interiormente vive frustrada, sonhando com uma vida
mais romântica e emocionante. Alimenta sua imaginação com as histórias dos
romances que lê, que falam de lugares fascinantes.
05 – Que mudança ocorre no
texto com a entrada, em cena, da empregada Juliana?
Há uma quebra
desse clima de sonho e Luísa cai bruscamente na realidade.
06 – Que impressão dá ao
leitor a descrição do quarto de Juliana?
O quarto de
Juliana lembra uma cela de prisão, é um lugar abafado e apertado, onde se vive
mal. Contrasta com o ambiente luxuoso e agradável em que se movimenta Luísa.
07 – Como sabemos o epílogo
do romance, que significado simbólico podemos atribuir à fala de Luísa,
dirigindo-se a Juliana: “Você parece a imagem da Morte!”?
Juliana será
indiretamente a causadora da morte de Luísa; por isso, essa fala tem um sentido
premonitório, antecipando o epílogo do romance.
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