REPORTAGEM: A vendedora de peixe e o custo Brasil
Claudio de Moura Castro – Ensaio
Em países onde há solidariedade mais forte, o avanço é mais fácil. A esperteza
brasileira sai muito cara
Uma colega de trabalho aqui em
Washington abriu uma microempresa para vender peixes do Pará, seu Estado natal.
Não resisti a perguntar: Por que uma empresa nos Estados Unidos para vender
peixe paraense, em tempos de DDD, fax e Internet à disposição de qualquer
comerciante brasileiro de peixes, secos ou molhados? A resposta é simples, mas
pouco edificante para as vaidades da pátria amada: americano não compra peixe
de brasileiro. Não confia. Não está convencido de que será entregue na hora
certa, de que não está podre ou mesmo de que foi pescado. E o pior é que isso
não é superstição, preconceito ou má vontade. É algo aprendido à custa de
prejuízos e dissabores.
Já no tempo da borracha os seringueiros
colocavam uma pedra na balança para pesar mais. Queixava-se um executivo de
multinacional farmacêutica que seus fornecedores brasileiros nem sequer
respondiam à correspondência. Um amigo do Espirito Santo, para conseguir
exportar mármore, teve de lutar anos para convencer seus clientes americanos de
que não era mais um a prometer e não cumprir. Custou aos exportadores de
Petrolina entender que uma uvinha murcha escondida no fundo da caixa resultava
no contêiner inteiro devolvido. Queixamo-nos dos estivadores, dos buracos nas
estradas e dos impostos. É o custo Brasil, dizem todos, assim não podemos
exportar! Porém, há outro custo Brasil, mais insidioso e não menos corrosivo: a
falta de palavra e de cumprimento.
Max Weber, em um trabalho clássico,
mostra os benefícios que trazem ao comércio e à indústria as virtudes morais do
protestantismo. Poder confiar no outro, manter a palavra ou não errar
propositadamente no troco são fatores de desenvolvimento econômico tão
poderosos quanto a força de trabalho e as maquinarias. Essa ideia antiga ganha
roupagens novas nas teorias de Putnam sobre o capital social.
Nas sociedades em que há forte
solidariedade social, o desenvolvimento econômico é mais fácil. Todos jogam no
mesmo time, não se dispersam forças defendendo-se das safadezas dos outros. As
energias vão para as atividades produtivas, e não para assegurar-se dos
direitos e interesses legítimos. Evita-se o custo de precaver-se para não ser
passado para trás. Quando um não pode confiar na palavra do outro,
multiplicam-se os formalismos legais para garantir o cumprimento. Ou se deixa
de fazer o negócio se não há tempo, ou possibilidade, de estar protegido da
safadeza do outro. O que podia ser resolvido pelo telefone requer uma visita e
uma assinatura. Se o funcionário do banco não pode resolver sem a assinatura do
seu chefe, são precisos muitos chefes para a infinidade de assinaturas
requeridas em operações triviais. Quando o carro ou o televisor enguiça na
garantia, o representante acha logo que tem safadeza do cliente e este que o
fabricante vendeu propositadamente um produto defeituoso. O duelo inútil
consome o tempo de todos.
Quando todos são caretas e praticam no
cotidiano as virtudes pequeno-burguesas, tudo é mais simples e mais barato,
pois se economiza no controle, no vigia, no que vigia o vigia e assim por
diante. Quando não confia no outro, a prestação do serviço e o pagamento são
feitos cada um na hora mais conveniente para as partes. Mas, se há presunção de
desonestidade, a operação parece troca de sequestrado pelo resgate, inconveniente
para todos.
Na verdade, há um círculo virtuoso ou
vicioso nessa relação de confiança e desconfiança. Pesquisas demonstram:
aqueles que confiam nos outros provocam nas pessoas com quem lidam um
comportamento mais coreto. Isto é, quem confia é menos enganado pelo próximo do
que os desconfiados, que geram nos outros comportamentos que confirmam as
desconfianças. Quando todos são muito espertos, todos têm de gastar seu
precioso tempo defendendo-se das espertezas dos outros. A celebrada esperteza
brasileira é um dos mais horrendos custos Brasil.
P.S.: Contou-me ontem a vendedora de
peixe que acaba de levar calote de um dos seus fornecedores brasileiros.
Veja,
30 jul. 1997.
Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 180-2.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Edificante: construtiva.
·
Precaver-se: acautelar-se, prevenir-se.
·
Superstição: crença falsa.
·
Formalismos: medidas que valorizam excessivamente as formalidades, o
cumprimento de determinações e requisitos.
·
Preconceito: ideia que se forma antes de observada a realidade.
·
Dissabores: contrariedades.
·
Triviais: comuns, corriqueiras.
·
Contêiner: caixa de aço para transporte de mercadoria.
·
Pequeno-burguesas: próprias da classe média.
·
Insidioso: traiçoeiro.
·
Presunção: suspeita, suposição.
·
Corrosivo: destrutivo.
·
Celebrada: louvada, divulgada de forma positiva.
02 – Por que é difícil
vender peixe brasileiro nos Estados Unidos?
Americano não compra peixe de brasileiro
porque não confia na qualidade do produto nem no cumprimento dos prazos de
entrega.
03 – De que aspecto do
comportamento do brasileiro o texto trata?
O texto trata da
suposta esperteza, da falta de compromisso, do não-cumprimento da palavra dada,
do desrespeito aos compromissos assumidos.
04 – Quais são as ideias que
o texto opõe ao comportamento do brasileiro?
São as ideias das virtudes morais:
honestidade, solidariedade, correção, confiança no semelhante.
05 – Qual a principal
vantagem da honestidade?
No caso de que
trata o texto é a economia de energia, de tempo e de dinheiro.
06 – O texto apresenta uma
solução para os problemas provocados por esse comportamento dos brasileiros.
Qual seria essa solução?
A superação do desejo de levar vantagem em
tudo e a adoção da honestidade e da solidariedade nos atos do dia-a-dia.
07 – Como você entende:
“Quando todos são muito espertos, todos têm de gastar seu precioso tempo
defendendo-se das espertezas dos outros”?
A esperteza geral
não traz benefícios para ninguém, mas provoca uma desgastante perda de tempo
com milhares de precauções, desconfianças, cuidados para não ser passado para
trás.
08 – Quais são as
consequências da “esperteza brasileira”?
O aumento do
custo Brasil e o prejuízo decorrente desse aumento para a imagem do país no
exterior.
09 – Você já ouviu falar na
famosa “lei de Gerson”? Em que consiste? De onde surgiu essa expressão?
Essa expressão remete ao famoso
“jeitinho” do brasileiro, que procura, em todos os momentos, levar vantagem em
tudo. Surgiu de um comerciante em que um famoso jogador de futebol da época –
Gerson – aconselhava o público a não se esquecer de procurar levar vantagem em
tudo.
10 – Como você entende: “...
se há presunção de desonestidade, a operação parece troca de sequestrado pelo
resgate, inconveniente para todos”?
Resposta pessoal
do aluno.
11 – O que você pensa sobre
as afirmações contidas no texto?
Resposta pessoal
do aluno.
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