CRÔNICA: ESTADO DE COMA
Quando entrou, a mulher
parecia uma louca.
– Estou nas últimas.
– Calma – solicitou Dr.
Novaes.
A mulher não obedeceu ao
pedido. Num histerismo preocupante começou a despir-se, mostrando feridas
inexistentes e mazelas prováveis. Falava muito e muito depressa. Dr. Novaes não
conseguia acompanhar os sintomas que ela expunha.
– Isto, doutor, não pode
ser câncer?
– Bem…
– Veja como está
arroxeado. Eu já li muito sobre isso. Esta mancha escura não pode ser um
melanoma? Eu tenho pavor de câncer, doutor. E o meu pulmão? Examine.
Tirou a blusa e o sutiã
para que Dr. Novaes encostasse o ouvido na suas costas, sem que nada o
obstasse.
– Seu pulmão – começou o
doutor…
– Se eu ainda tiver
pulmão. E as palpitações, doutor, são constantes. Disritmia. Tem hora que
o coração parece ter parado. Fico fria, sinto um torpor no corpo, o braço
dormente. Braço esquerdo. Esquerdo, frisava, de olho rútilo. – Não
é coisa de coração? Quais são os sintomas de enfarte?
– O enfarte…
– E o fígado? Bata no meu
fígado.
O doutor obedeceu por
obedecer. Ressoou um “tum-tum” surdo.
– Se eu já não tiver com
hepatite, ando por perto.
– A senhora está nervosa.
– E deveria estar calma? E
os rins, que não funcionam direito? E nem falo da cistite, que não me dá
um dia de sossego.
Tirou a saia para mostrar
melhor as varizes que nasciam nos tornozelos e iam em frente. O doutor,
muito paciente, fazia o que ela mandava.
– Aperte aqui.
Ele apertava.
– Veja aqui.
Ele via.
– Empurre aqui.
Ele empurrava.
– Ausculte, pressione,
experimente, observe.
Ele auscultava,
pressionava, experimentava, observava, obedecia com muita tranquilidade, uma
calma que não era muito do agrado da mulher que, neste momento, não usava no
corpo nada além dos sapatos que acabava de tirar.
– Já viu meu pé?
– Estou vendo.
– Pé chato. Isso pode ser
a causa do cansaço. Mas eu uso sapato ortopédico, o pé chato nada tem a
ver com o cansaço, tem?
– Não, não tem.
– No entanto, parece que
não há um palmo cúbico de ar para que eu respire. Veja como suo nas mãos.
Ele viu que ela suava
realmente.
E tinha dores no estômago pela manhã, o
intestino não funcionava a contento, a vesícula devia estar preguiçosa, o
pâncreas ficava como se tivesse comido brasa, a urina era escura um dia,
avermelhada no outro.
Dr. Novaes não se abalou
em nenhum instante. A mulher, inteiramente desnuda, deliberadamente
deitou-se na mesa para um exame mais detalhado. Dr. Novaes fez.
– Pode se vestir.
– Como? Sem que o senhor
examine o baço?
Ele, com um dedo sobre o
baço, bateu várias vezes nele com o rígido médio.
– Vista-se agora.
Ela se disse
impossibilitada. Sentia o tal sintoma de prostração de que tanto falara. Viu?
Ainda bem que no consultório lhe tinha dado, para que o Dr. Novaes não pensasse
que se tratava de hipocondria ou coisa semelhante.
Foi-lhe dado um pouco de
água mexida com uma colher. Nada havia além da água no copo, mas o mexer da
colher fez com que, ao beber a água pura, ela chegasse a sentir um gosto muito
ruim.
– O que foi que o senhor
me deu para beber?
– Nada – disse o Dr.
Novaes.
– Eu preciso saber o
nome deste remédio. Em dois minutos me deixou outra. Estou reanimada,
recuperada.
– Vista-se.
Ela começou a se
vestir. Vestiu-se sem parar de falar de doença. Dores de cabeça ao
amanhecer, uma ponta de febre no começo da noite, insônia progressiva – Mandrix
já fazia efeito semelhante à Cibalena – perda de apetite.
– Como isso,
parece que comi um boi.
E a memória, não raro, lhe
faltava. Seria amnésia? Essa doença existe mesmo, ou é coisa de filme? E os
olhos sempre vermelhos. Há uma mancha num deles, vê? O olho direito. Não seria
um carcinoma? Os seios doídos. Às vezes, não suportava o sutiã.
– A senhora está nervosa
demais.
– Se fosse somente o
sistema nervoso, era ótimo. Eu tomava uns sedativos, uns tranquilizantes,
pronto. O estado geral é que é o drama. Devo me hospitalizar? Diga, Doutor.
Preciso ser operada? É caso de cirurgia, ou…? O que o senhor disser eu faço.
– Então faça o seguinte –
disse o Dr. Novaes. – Procure um médico.
– Hem?
– Eu sou economista. O Dr.
Drúlio, que tinha consultório aqui, mudou-se para a Rua Sorocaba.
Daí, ela apressou-se a
vestir a roupa.
CHICO ANÍSIO. Feijoada no Copa. Editora
Rocco, 1976, Rio de Janeiro.
Entendendo o texto:
01 – Pesquise e informe os órgãos do corpo humano que são diretamente
atacados por estas doenças:
a) hepatite: Fígado.
b) pneumonia: Pulmões.
c) cistite: Bexiga. d)
rinite: Mucosas
do nariz.
02 – O que são sintomas?
Quaisquer fenômenos ou mudanças no
organismo humano, cuja descrição pode auxiliar o médico nos diagnóstico de
doenças.
03 – Identifique e transcreva as palavras do texto que tenham estes
significados:
a) Dilatação
permanente das veias.
Varizes.
b) Abatimento,
enfraquecimento, debilidade.
Prostração.
c) Estado mórbido que
se manifesta pelo aumento da temperatura anormal do corpo.
Febre.
d) Diminuição ou perda
da memória por motivo orgânico ou emocional.
Amnésia.
04 – Já sabemos que a mulher esteve no escritório de um economista e não
num consultório médico. Qual foi o motivo do engano?
a. ( ) Ainda existia a placa do Dr. Drúlio na porta.
b. ( ) O Dr. Drúlio e o Dr. Novaes eram muito parecidos.
c. ( ) A mulher estava habituada a ir aquele local.
d.
(X) A mulher pensou que Dr. Novaes fosse médico.
05– Que doença foi a primeira preocupação da mulher?
Câncer.
06– Quando a mulher perguntou quais os sintomas do enfarte, Dr. Novaes
esboçou uma resposta, mas foi interrompido. Na sua opinião, como ele
completaria a frase?
Resposta pessoal do
aluno. Mas, deve ser adequada a situação.
07– Mesmo não sendo médico, Dr. Novaes efetuou alguns exames na mulher.
Na sua opinião por que ele agiu assim?
Resposta pessoal do
aluno. Mas, deve ser adequada a situação.
08 – A mulher já havia feito outras consultas sem que os médicos
encontrassem qualquer doença. Ela, entretanto, não concordava com seus diagnósticos
porque não se considerava portadora de:
a. ( ) tuberculose b. ( )
hepatite
c.
(X) hipocondria d. ( ) disritmia.
09 – Quando o Dr. Novaes lhe deu água, houve uma súbita melhora no
estado nervoso em que a mulher se encontrava. Por quê?
A mulher, por ser hipocondríaca, achou
que o Dr. Novaes havia lhe dado algum remédio para seu nervoso.
10 – Nesse texto, o autor quis nos divertir com uma situação incômoda
para os personagens. Entretanto, é possível extrair uma lição desse episódio.
Qual seria?
As pessoas fragilizadas
por alguma doença, principalmente os hipocondríacos, são vítimas fáceis de
aproveitadores (certos médicos, farmacêuticos, vendedores de farmácia,
curandeiros) e com isso põem a vida em risco, além de se exporem ao ridículo.
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