Até agora fingíamos que a Inquisição
era um episódio da história europeia, que tendo durado do século XII ao século
XIX, nada tinha a ver com o Brasil. No máximo, se prestássemos muita atenção,
íamos falar de um certo Antônio José – o Judeu, um português de origem
brasileira, que foi queimado porque andou escrevendo umas peças de teatro.
Mas não dá mais
para escamotear. Acabou de se realizar um congresso que começou em Lisboa,
continuou em São Paulo e Rio, reavaliando a Inquisição. O ideal seria que esse
congresso tivesse se desdobrado por todas as capitais do país, por todas as
cidades, que tivesse merecido mais atenção da televisão e tivesse sacudido a
consciência dos brasileiros do Oiapoque ao Chuí, mostrando àqueles que não
podem ler jornais nem frequentar as discussões universitárias o que foi um dos
períodos mais tenebrosos da história do Ocidente. Mas mostrar isso, não por
prazer sadomasoquista, e sim para reforçar os ideais de dignidade humana e
melhorar a debilitada consciência histórica nacional.
Calar
a história da Inquisição, como ainda querem alguns, em nada ajuda a história
das instituições e países. Ao contrário, isto pode ser ainda um resquício
inquisitorial. E no caso brasileiro essa reavaliação é inestimável, porque
somos uma cultura que finge viver fora da história.
Por
outro lado, estamos vivendo um momento privilegio em termos de recons-trução da
consciência histórica. Se neste ano (1987) foi possível passar a limpo a
Inquisição, no ano que vem será necessário refazer a história do negro em nosso
país, a propósito dos cem anos da libertação dos escravos. E no ano seguinte,
1989, deveríamos nos concentrar para rever a “república” decretada por Deodoro.
Os próximos dois anos poderiam se converter em um intenso período de pesquisas,
discussões e mapeamento de nossa silenciosa história. Universidades, fundações
de pesquisa e os meios de comunicação deveriam se preparar para participar
desse projeto arqueológico, convocando a todos: “Libertem de novo os escravos”,
“proclamem de novo a República”.
Fazer história
é fazer falar o passado e o presente, criando ecos para o futuro.
História é o
anti-silêncio. É o ruído emergente das lutas, angústias, sonhos, frus-tações.
Para o pesquisador, o silêncio da história oficial é um silêncio ensurdecedor.
Quando penetra nos arquivos da consciência nacional, os dados e os feitos
berram, clamam, gritam, sangram pelas prateleiras. Engana-se, portanto, quem
julga que os arquivos são lugares de poeira e mofo. Ali está pulsando algo.
Como um vulcão aparentemente adormecido, ali algo quer emergir. E emerge. Cedo
ou tarde. Não se destrói totalmente qualquer documentação. Sempre vai sobrar um
herege que não foi queimado, um judeu que escapou ao campo de concentração, um
dissidente que sobreviveu aos trabalhos forçados na Sibéria. De nada adiantou
àquele imperador chinês ter queimado todos os li-vros e ter decretado que a
história começasse por ele.
A história começa com cada um de
nós, apesar dos reis e das inquisições.
SANT’ANNA, Affonso R. de. A
raiz quadrada do absurdo.
Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1989.
Entendendo o texto:
01 – Tendo em vista o desenvolvimento
do texto, assinale a opção que justifica o título “Cinzas da Inquisição”:
a. ( ) A Inquisição se transformou em cinzas e deve ser
arquivada.
b. ( ) A valorização da
dignidade do ser humano é ponto básico da história da Inquisição.
c.
( ) A Inquisição deixou marcas que devem levar a uma reflexão.
d. ( ) A discussão dos
fatos relacionados à Inquisição tem se mostrado infrutífera.
e. ( ) A lembrança dos
fatos da Inquisição não conseguiu melhorar o futuro.
02 – Assinale a opção em que há erro
na relação entre a ideia e o parágrafo indicado entre parênteses:
a. ( ) Os brasileiros
supunham que a Inquisição pertencesse somente à história da Europa.
b. ( ) Foi realizado um
congresso com o intuito de reavaliar a Inquisição.
c. ( ) A História estabelece
relações entre o passado e o futuro.
d. ( ) O momento é
propício para fazermos uma reflexão sobre importantes fatos de nossa
história.
e. ( ) A história tem sua
força própria, ela grita e aparece, apesar de todos os obstáculos.
03 – Com relação aos cem anos da
libertação dos escravos e aos cem anos da Proclamação da República, pode-se
afirmar, de acordo com o texto, que:
a. ( ) é necessário
comemorar as várias conquistas feitas ao longo desses anos.
b. ( ) tanto a libertação dos
escravos quanto a Proclamação da República precisam ser revistas e repensadas.
c. ( ) têm sido
convocados mais pesquisadores para estudar esse período de nossa história.
d. ( ) esses assuntos vêm
sendo constantemente abordados nas universidades brasileiras.
e. ( ) o governo deve dar
a essas datas históricas a mesma importância que dá a outras.
04 – O paradoxo da expressão “um
silêncio ensurdecedor” indica que o silêncio:
a. ( ) provoca alienação e torpor
b. ( ) leva à paralisação e à inércia
c. ( ) gera atos de violência e loucura
d.
( ) atordoa e aflige
e. ( ) causa temor e respeito.