Romance: O Quinze I – (Fragmento)
Rachel de Queiroz
Eles tinham saído na véspera, de manhã,
da Canoa.
Eram duas horas da tarde.
Cordulina, que vinha quase cambaleando,
sentou-se numa pedra e falou, numa voz quebrada e penosa:
-- Chico, eu não posso mais... Acho até
que vou morrer. Dá-me aquela zoeira na cabeça!
Chico Bento olhou dolorosamente a
mulher. O cabelo, em falripas sujas, como que gasto, acabado, caia, por cima do
rosto, envesgando os olhos, roçando na boca. A pele, empretecida como uma
casca, pregueava nos braços e nos peitos, que o casaco e a camisa rasgada
descobriam.
(...)
No colo da mulher, o Duquinha, também
só osso e pele, levava, com um gemido abafado, a mãozinha imunda, de dedos
ressequidos, aos pobres olhos doentes.
E
com a outra tateava o peito da mãe, mas num movimento tão fraco e tão triste
que era mais uma tentativa do que um gesto.
Lentamente o vaqueiro voltou as costas;
cabisbaixo, o Pedro o seguiu.
E foram andando à toa, devagarinho,
costeando a margem da caatinga.
(...)
De repente, um bé!, agudo e longo,
estridulou na calma.
E uma cabra ruiva, nambi, de focinho
quase preto, estendeu a cabeça por entre a orla de galhos secos do caminho,
aguçando os rudimentos de orelha, evidentemente procurando ouvir, naquela
distensão de sentidos, uma longínqua resposta a seu apelo.
Chico Bento, perto, olhava-a, com as
mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados.
O
animal soltou novamente o seu clamor aflito.
Cauteloso, o vaqueiro avançou um passo.
E de súbito em três pancadas secas,
rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a cabra entonteceu, amunhecou, e caiu em
cheio por terra.
Chico Bento tirou do cinto a faca, que
de tão velha e tão gasta nunca achara quem lhe desse um tostão por ela.
Abriu no animal um corte que foi de
debaixo da boca até separar ao meio o úbere branco de tetas secas, escorridas.
Rapidamente iniciou a esfolação. A faca
afiada corria entre a carne e o couro. Na pressa, arrancava aqui pedaços de
lombo, afinava ali a pele, deixando-a quase transparente. Mas Chico Bento
cortava, cortava sempre, com um movimento febril de mãos, enquanto Pedro,
comovido e ansioso, ia segurando o couro descarnado. Afinal, toda a pele
destacada estirou-se no chão. E o vaqueiro, batendo com o cacete no cabo da
faca, abriu ao meio a criação morta.
Mas Pedro, que fitava a estrada, o
interrompeu:
-- Olha, pai!
Um
homem de mescla azul vinha para eles em grandes passadas. Agitava os braços em
fúria, aos berros:
-- Cachorro! Ladrão! Matar minha
cabrinha! Desgraçado!
Chico Bento, tonto, desnorteado, deixou
a faca cair e, ainda de cócoras, tartamudeava explicações confusas.
O homem avançou, arrebatou-lhe a cabra
e procurou enrolá-la no couro.
Dentro da sua perturbação, Chico Bento
compreendeu apenas que lhe tomavam aquela carne em que seus olhos famintos já
se regalavam, da qual suas mãos febris já tinham sentido o calor confortante.
E lhe veio agudamente à lembrança
Cordulina exânime na pedra da estrada... o Duquinha tão morto que já nem
chorava...
Caindo quase de joelhos, com os olhos
vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, suplicou, de mãos
juntas:
-- Meu senhor, pelo amor de Deus! Me
deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher
mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! já caíram com a fome! ...
-- Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha!
Cabra sem-vergonha!
A energia abatida do vaqueiro não se
estimulou nem mesmo diante daquela palavra.
Antes se abateu mais, e ele ficou na
mesma atitude de súplica.
E o homem disse afinal, num gesto
brusco, arrancando as tripas da criação e atirando-as para o vaqueiro:
-- Tome! Só se for isto! A um diabo que
faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais! ...
A faca brilhava no chão, ainda
ensanguentada, e atraiu os olhos de Chico Bento.
Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir
disputar a presa, mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão,
faltou-lhe o ânimo.
O homem, sem se importar com o sangue,
pusera no ombro o animal sumariamente envolvido no couro e marchava para a casa
cujo telhado vermelhava, lá além.
Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato
que ficara no chão e correu para a mãe.
Chico Bento ainda esteve uns momentos
na mesma postura, ajoelhado.
E antes de se erguer, chupou os dedos
sujos de sangue, que lhe deixaram na boca um gosto amargo de vida.
O Quinze, Rachel de Queiroz.
Rio de Janeiro: J. Olympio, s.d. p. 72-5.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Brandir: agitar de modo repetido e ameaçador.
·
Estridulou: soou agudo e penetrante.
·
Exânime: desfalecido.
·
Falripas: cabelos muito ralos na cabeça.
·
Jucá: pau-ferro.
·
Orla:
borda, beira, margem.
02 – Chico Bento e sua
família são retirantes. Qual é a condição física deles no momento retratado
pelo texto? Comprove sua resposta com trechos do texto.
Eles estavam
degradados fisicamente, conforme comprovam nos trechos: “Cordulina, que vinha
quase cambaleando”; “O Duquinha, também só osso e pele”.
03 – Chico Bento, antes da
seca, não era vagabundo nem bandido; era um trabalhador rural. Levante
hipóteses:
a)
Como deve ter se sentido ao ser xingado pelo
proprietário da cabra?
Deve ter se sentido humilhado, atingido moralmente, pois não era
ladrão; roubara por necessidade.
b)
Por que não reagiu aos insultos?
Por reconhecer as razões do homem e, talvez, por pensar na família.
04 – Ao ver que sua presa
seria levada, Chico Bento chegou a sentir vontade de lutar por ela com sua
faca, “mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe
o ânimo”. Embora esse seja apenas um fragmento da obra, é possível extrair
algumas conclusões importantes desse fato.
a)
O sertanejo, no texto, é visto como um ser
resignado à sua condição ou como um ser transformador, responsável por seus
próprios destinos?
Resignado. Exausto e desesperançoso, Chico Bento sente-se sem ânimo
para lutar contra sua sorte.
b)
Nesse fragmento, como é vista a condição de
miséria e até de eventual violência (que acabou não se concretizando) em que
vivem as personagens: como fatalidade ou como resultado de políticas
governamentais ou de relações sociais inadequadas?
Como fatalidade; no episódio não há nenhuma referência a fatores de
ordem social, também responsáveis pela condição das personagens.
05 – O Quinze é um bom
exemplo de como os romancistas da década de 1930 lidam com a linguagem
literária. Observe a linguagem empregada no texto quanto a: vocabulário (mais
culto ou mais popular, regionalismos), construções sintáticas (mais prolixas ou
mais próximas da fala), períodos (longos ou curtos), etc. Em seguida,
caracterize-a.
A linguagem é
culta, porém direta, com vocabulário acessível, por vezes incluindo algum termo
regional. Os períodos são curtos e buscam maior proximidade com a linguagem
oral.
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