Música: Cântico
Negro
Maria
Bethânia
Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
-- Sei que não vou por aí!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
-- Sei que não vou por aí!
Composição:
José Régio. Poemas de Deus e do diabo, cit.
p. 57-9.
Entendendo a canção:
01 – O eu lírico dirige-se a
seus interlocutores, criticando-os por seus valores e por sua visão de mundo.
De acordo com o texto:
a)
Quem provavelmente são esses interlocutores e
qual a sua visão de mundo?
Os interlocutores representam o grupo social dominante ou a
sociedade como um todo. Com a visão de mundo conservadora, eles insistem em
querer que todos aceitem seus valores, suas verdades e suas regras.
b)
Em que os valores do eu lírico diferem dos
valores de seus interlocutores?
O eu lírico não aceita soluções prontas. Cioso de sua independência
moral e ideológica, deseja ele mesmo traçar seu caminho e descobrir suas
verdades.
c)
Como se sente o eu lírico em sua relação com
o mundo?
Deslocado, inadequado.
02 – Na penúltima estrofe da
canção, é apontada uma causa possível da inadaptação do eu ao mundo.
Identifique-a e explique-a.
O eu lírico
associa o seu desencontro com a realidade à sua contradição espiritual, que o
leva a ficar dividido entre o bem e o mal. Embora Deus e o diabo possam figurar
apenas como metáforas de seu conflito emocional, o fato é que, no conjunto da
obra do poeta, essas duas entidades têm importância decisiva.
03 – Com base nas ideias da
canção, justifique o seu título.
O título da
canção se justifica pela postura de contestação a valores, verdades e regras
sociais adotada pelo eu lírico, assim como pela influência que ele diz ser
exercida sobre ele pelo diabo.
04 – José Régio persegue, na
literatura portuguesa, a tradição de Guerra Junqueiro, cuja poesia é marcada
por um tom grandiloquente e dramático. Em “Cântico Negro”, o caráter dramático
do texto reside, sobretudo, no tom declamatório dos versos e na força de
algumas imagens.
a)
Destaque alguns versos que comprovem essa
afirmação.
Entre outros: “Eu tenho a minha Loucura! / Levanto-a, como um facho,
a arder na noite escura, / E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...”.
b)
Que aspectos do poema se identificam com a
representação teatral?
Principalmente as frases exclamativas, caracterizadas por um tom
declamatório, e o suposto diálogo entre o eu lírico e o seu interlocutor.
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