Texto: Figuras
de linguagem
Mia Couto
Observe a imagem e leia o
trecho que a acompanha.
Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra. Mia Couto.
[...] Até há pouco a vila tinha apenas
uma rua. Chamavam-lhe, por ironia, a Rua do Meio. Agora, outros caminhos de
areia solta se abriram num emaranhado. Mas a vila é ainda demasiado rural,
falta-lhe a geometria dos espaços arrumados.
Lá estão os coqueiros, os corvos,
as lentas fogueiras que começam a despontar. As casas de cimento estão em
ruína, exaustas de tanto abandono. Não são apenas casas destroçadas: é o
próprio tempo desmoronado [...]
Dói-me a ilha como está, a decadência
das casas, a miséria derramada pelas ruas. Mesmo a natureza parece sofrer de
mau-olhado. Os capinzais se estendem secos, parece que empalharam o horizonte.
À primeira vista, tudo definha. No entanto, mais além, à mão de um olhar, a
vida reverbera, cheirosa como um fruto em verão: enxames de crianças atravessam
os caminhos, mulheres dançam e cantam, homens falam alto, donos do tempo.
Couto, Mia. Um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.
27-28. (Fragmento).
Interpretação do texto:
01 – Mariano (o narrador em
1ª pessoa) volta à ilha onde nasceu, Luar-do-chão, para acompanhar o funeral do
avô. Para Mariano, Rua do Meio é um nome irônico. Explique essa ironia.
Como durante muito tempo, só existiu uma rua
em Luar-do-Chão, é irônico que ela se chamasse “Rua do Meio”, porque esse nome
parece sugerir que haveria pelo menos outras duas ruas.
02 – Releia:
“As casas de cimento estão em ruína,
exaustas de tanto abandono. Não são apenas casas destroçadas: é o próprio tempo
desmoronado.”
a)
O narrador usa duas imagens no trecho acima.
Quais são elas?
As imagens são: “as casas de cimento estão [...] exaustas de tanto
abandono” e “é o próprio tempo desmoronado.”
b)
Que tipo de impressão sobre a vila descrita
essas imagens provocam no leitor?
Resposta pessoal do aluno. Espera-se que os alunos percebam que a
ideia das casas “exaustas” e do tempo “desmoronado” sugere decadência,
abandono.
03 – Os termos exaustas
e desmoronado são adjetivos. A que termos eles se referem, no texto?
O adjetivo
exaustas refere-se ao substantivo casas; o adjetivo desmoronado refere-se ao
substantivo tempo.
a)
Os dois adjetivos aparecem, no trecho, em um
contexto inesperado. Explique por quê.
Nos dois casos, observamos um uso inesperado dos adjetivos porque
explicitam atributos estranhos aos termos a que se referem. Exaustas é um
adjetivo normalmente aplicado a seres animados. O mesmo raciocínio é válido
para o uso do adjetivo desmoronado associado ao substantivo tempo.
b)
De que modo esse uso dos adjetivos ajuda o
narrador a tornar mais subjetiva a sua descrição de Luar-do-Chão?
O emprego desses adjetivos revela o sentimento provocado em Mariano
pela visão das casas em ruína e pela miséria geral ao seu redor. A decadência
de Luar-do-Chão produz forte impacto sobre a percepção do narrador, que acaba
por associar um atributo não físico a algo material como as casas, e um
atributo físico a algo imaterial como o tempo.
04 – O trecho abaixo
confirma a visão do narrador de que Luar-do-Chão passa por um processo de
decadência generalizada. Observe:
“Dói-me a ilha como está, a decadência
das casas, a miséria derramada pelas ruas. Mesmo a natureza parece sofrer de
mau-olhado. Os capinzais se estendem secos, parece que empalharam o horizonte.
À primeira vista, tudo definha.”
a)
Que outro adjetivo, no trecho, é utilizado
com função semelhante à do adjetivo desmoronado (“... é o próprio tempo
desmoronado”)?
Derramada. Em “a miséria derramada pelas ruas”, observa-se o mesmo
deslocamento de um adjetivo. Miséria é uma condição mais geral, um estado
provocado por um conjunto de fatores. Normalmente, o adjetivo derramado
refere-se a uma substância em estado líquido, o que não é o caso.
b)
Também podemos identificar um uso pouco comum
de um verbo. Que verbo é esse? Explique por que ele ajuda o narrador a
construir a imagem de uma natureza “amaldiçoada”.
O verbo é empalharam. Nessa passagem, a miséria, a decadência, o
“mau-olhado” criam uma imagem de morte. O verbo empalhar, com o sentido que
aparece no texto, é usado para fazer referência a um processo de preservação de
animais mortos: as vísceras do animal são retiradas e substituídas por palha
seca.
05 – Dói-me a ilha como
está. A escolha do verbo, nessa passagem, sugere, mais uma vez, o desejo do
narrador de expressar emoções claramente particulares. O que ele pode ter
pretendido dizer com essa afirmação?
A visão de uma
ilha não dói fisicamente. Portanto, a dor a que faz alusão o narrador é uma dos
psicológica. Podemos imaginar que ele sofra por ver o estado atual de
Luar-do-Chão, mas também por constatar que o tempo passou e a ilha que ele
conheceu na infância não existe mais.
06 – Uma expressão, no
último parágrafo, dá a entender ao leitor que a imagem de decadência pode ser
algo percebido somente pelo narrador. Que expressão é essa?
A expressão é: No
entanto.
a)
A qual outra expressão do texto ela se
vincula, para quebrar a expectativa criada? Justifique.
No entanto sinaliza, para o leitor, que o narrador vai mudar de
“rumo” na sua fala. Essa expressão se vincula, por meio de uma relação de
oposição, à expressão À primeira vista. Até aquele momento, Mariano descreve um
lugar decadente, que parece caminhar para a “morte”. A partir do uso da
expressão no entanto, o que Mariano narra sugere exatamente o contrário: a
presença da vida em Luar-do-Chão.
b)
Qual passagem do texto comprova a presença de
uma vida exuberante em Luar-do-Chão?
“A vida reverbera, cheirosa como um fruto em verão: enxames de
crianças atravessam os caminhos, mulheres dançam e cantam, homens falam alto,
donos do tempo.”
07 – Considerando o que você
analisou até agora, que sentido pode ser atribuído ao título Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra?
Espera-se que o aluno perceba o uso da
metafórico dos substantivos tempo e terra. A ideia da passagem do tempo é
associada ao fluxo do rio; a casa, assim como a terra, é o permanece, o que não
se desloca. Essas duas interpretações podem ser associadas também ao olhar de
Mariano para Luar-do-Chão. Ele saiu da ilha onde nasceu e, após muito tempo,
volta a ela para acompanhar o funeral do avô. Como as águas de um rio que flui,
o tempo levou-o para longe de sua terra, de sua casa.
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