CRÔNICA – O RATO E O CANÁRIO
Carlos Drummond de Andrade
Homem com fome,
o que é comum; sem comida para satisfazer sua fome, o que também não é raro.
Aparência modesta, mas digna; barba por fazer; cara de necessidade. Levava uma
sacola. Passou pelo restaurante também simpático modesto, com qualquer coisa de
simpático – a cor das paredes, talvez – e entrou. Foi direto ao gerente, na
caixa:
--- Desculpe...
Se lhe disser que há cinco dias eu não como propriamente, só estarei falando
verdade. Mas o senhor não vai acreditar.
--- Por que
não?
--- Sinto que é
compreensivo.
--- Também já
passei dias sem levar um bocado a boca, e sei que não é nada divertido.
--- Então eu
queria lhe pedir...
Não precisou explicar. O gerente chamou
o garçom.
--- Sirva
alguma coisa a esse senhor. Por conta da casa.
E voltou-se
para o recém-chegado:
--- Hoje é o
meu dia de ajudar o próximo. Aniversário da minha santa mãezinha, que Deus
tenha.
O homem
sentou-se, comeu lentamente, saboreando o prato simples que uma senhora
desconhecida e falecida lhe despachava do céu. Acabando, voltou à caixa:
--- Claro que
não posso te pagar, o amigo sabe. Mas agradecer de coração, isso eu posso.
--- De nada,
ora essa.
--- Mas não vou
embora sem lhe provar e alguma maneira minha gratidão. Tenho aqui uma
curiosidade, que o senhor vai apreciar.
Tirou da sacola
um piano minúsculo e um ratinho, e disse a este:
--- Toque, Evaristo.
Evaristo não se
fez de rogado, e executou um trecho de Pour Elise com bastante sensibilidade.
--- É
fantástico! – exclamou o gerente. – Nunca vi coisa igual.
--- Tem mais. O
senhor ainda não viu o meu canarinho.
Surgiu da
sacola um canário-da-terra, dócil à convocação.
--- Aquela
modinha, Sizenando.
Com
acompanhamento de piano por Evaristo, Sizenado atacou É a Ti. Flor do Céu,
arrancando discreta lágrima do gerente.
--- Que beleza!
Mas o senhor, não leve a mal eu perguntar, com esse tesouro nas mãos, precisa
viver desse jeito?
--- Ah, meu
amigo, não posso, não devo explorar esses inocentes. Como é que iria
mercantilizar os dons do Evaristo e do Siza, que considero meus filhos, de
tanto que eu gosto deles?
Diante do
gerente boquiaberto, o homem retirou-se com a sacola e seu conteúdo. Foi
andando pela rua. De repente estacou, preocupado.
--- Eu não
devia ter feito isso com um cara tão generoso, que me matou a fome.
Voltou ao
restaurante, onde o gerente o recebeu com surpresa:
--- Esqueceu
alguma coisa? Não vai me dizer que, cinco minutos depois, está novamente com o
estômago vazio? Ou pensou melhor, e quer me vender os dois artistazinhos e mais
o pianito?
--- Nada disso.
Vim por uma questão de consciência.
--- Como disse?
--- Questão de
consciência. O senhor foi tão legal comigo...
--- E daí?
--- Daí que eu
não tinha o direito de fazer o que fiz.
--- E que fez o
amigo senão me regalar com o seu par de artistas que me fizeram subir água aos
olhos?
--- Por isso
mesmo. O senhor se comoveu com a audição, mas não é justo que continue iludido
num ponto fundamental.
--- Cada vez
percebo menos. Desembuche, homem!
--- O seguinte.
Eu enganei o senhor. O Siza não canta coisa nenhuma, é um canário bobo, faz
aquela figuração toda, mas quem canta mesmo é o Evaristo, que é ventríloquo!
Este caso me
foi contado por um amigo merecedor de crédito, mas fico na dúvida se não será
criação de algum escritor, adaptada ao modo de ser carioca. Neste caso, que o
autor me perdoe o avanço em sua obra.
ANDRADE, Carlos Drummond de. O rato e o canário.
In: Boca de luar. Rio de Janeiro. Record.
1984, p. 96-9.
Bocado: porção de alimento.
Pour Elise: conhecida composição musical de
Beethoven.
Regalar: alegrar, causar prazer.
Ventríloquo: aquele que sabe falar sem abrir a
boca, de modo que a voz parece sair de outra fonte que não ele.
1 – O narrador atribui a mesma característica ao homem
faminto e ao restaurante. Qual?
A modéstia.
2 – “... saboreando o prato simples que uma senhora
desconhecida e falecida lhe despachava do céu.” Explique essa passagem do
texto.
O dono
do restaurante considerou que ajudar um faminto seria uma homenagem ao
aniversário de sua falecida mãe.
3 – O fato narrado no texto é real ou fictício? Por quê?
Trata-se de um fato fictício, pois ratos e canários não apresentam as
habilidades que lhes são atribuídas na narrativa.
4 – Releia as linhas 43 e 44 e depois o penúltimo parágrafo
do texto. A fala final do faminto é esperada pelo leitor ou constitui um
“final-surpresa”?
Constitui um final-surpresa, pois o fato ainda mais inacreditável do que
já era.
5 – Para se comunicar, as personagens desse texto utilizam
exclusivamente a língua falada: elas dialogam. Transcreva fragmentos das falas
do homem faminto que indiquem: julgamento, simples informação, ordem.
Julgamento: “Sinto que é compreensivo”;
Simples informação: “Desculpe... Se lhe
disser que há cinco dias eu não como propriamente, só estarei falando verdade.
Mas o senhor não vai acreditar”.
Ordem: “Toque, Evaristo”.
6 – O texto prende a atenção do leitor e reserva a ele duas
surpresas. Quais?
Primeiro, a apresentação feita pelos “artistas”. Depois, o final
inesperado.
minha professora pediu pra fazer um texto em cima desse e ela nao gostou por o meu titulo e A MACACA E A TARTARUGA
ResponderExcluire nao gostou do meu text
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