domingo, 4 de junho de 2017

CRÔNICA: O RATO E O CANÁRIO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE -COM GABARITO


CRÔNICA – O RATO E O CANÁRIO
                      Carlos Drummond de Andrade

        Homem com fome, o que é comum; sem comida para satisfazer sua fome, o que também não é raro. Aparência modesta, mas digna; barba por fazer; cara de necessidade. Levava uma sacola. Passou pelo restaurante também simpático modesto, com qualquer coisa de simpático – a cor das paredes, talvez – e entrou. Foi direto ao gerente, na caixa:
        --- Desculpe... Se lhe disser que há cinco dias eu não como propriamente, só estarei falando verdade. Mas o senhor não vai acreditar.
        --- Por que não?
        --- Sinto que é compreensivo.
        --- Também já passei dias sem levar um bocado a boca, e sei que não é nada divertido.
        --- Então eu queria lhe pedir...
        Não precisou explicar. O gerente chamou o garçom.
        --- Sirva alguma coisa a esse senhor. Por conta da casa.
        E voltou-se para o recém-chegado:
        --- Hoje é o meu dia de ajudar o próximo. Aniversário da minha santa mãezinha, que Deus tenha.
        O homem sentou-se, comeu lentamente, saboreando o prato simples que uma senhora desconhecida e falecida lhe despachava do céu. Acabando, voltou à caixa:
        --- Claro que não posso te pagar, o amigo sabe. Mas agradecer de coração, isso eu posso.
        --- De nada, ora essa.
        --- Mas não vou embora sem lhe provar e alguma maneira minha gratidão. Tenho aqui uma curiosidade, que o senhor vai apreciar.
        Tirou da sacola um piano minúsculo e um ratinho, e disse a este:
        --- Toque, Evaristo.
        Evaristo não se fez de rogado, e executou um trecho de Pour Elise com bastante sensibilidade.
        --- É fantástico! – exclamou o gerente. – Nunca vi coisa igual.
        --- Tem mais. O senhor ainda não viu o meu canarinho.
        Surgiu da sacola um canário-da-terra, dócil à convocação.
        --- Aquela modinha, Sizenando.
        Com acompanhamento de piano por Evaristo, Sizenado atacou É a Ti. Flor do Céu, arrancando discreta lágrima do gerente.
        --- Que beleza! Mas o senhor, não leve a mal eu perguntar, com esse tesouro nas mãos, precisa viver desse jeito?
        --- Ah, meu amigo, não posso, não devo explorar esses inocentes. Como é que iria mercantilizar os dons do Evaristo e do Siza, que considero meus filhos, de tanto que eu gosto deles?
        Diante do gerente boquiaberto, o homem retirou-se com a sacola e seu conteúdo. Foi andando pela rua. De repente estacou, preocupado.
        --- Eu não devia ter feito isso com um cara tão generoso, que me matou a fome.
        Voltou ao restaurante, onde o gerente o recebeu com surpresa:
        --- Esqueceu alguma coisa? Não vai me dizer que, cinco minutos depois, está novamente com o estômago vazio? Ou pensou melhor, e quer me vender os dois artistazinhos e mais o pianito?
        --- Nada disso. Vim por uma questão de consciência.
        --- Como disse?
        --- Questão de consciência. O senhor foi tão legal comigo...
        --- E daí?
        --- Daí que eu não tinha o direito de fazer o que fiz.
        --- E que fez o amigo senão me regalar com o seu par de artistas que me fizeram subir água aos olhos?
        --- Por isso mesmo. O senhor se comoveu com a audição, mas não é justo que continue iludido num ponto fundamental.
        --- Cada vez percebo menos. Desembuche, homem!
        --- O seguinte. Eu enganei o senhor. O Siza não canta coisa nenhuma, é um canário bobo, faz aquela figuração toda, mas quem canta mesmo é o Evaristo, que é ventríloquo!
        Este caso me foi contado por um amigo merecedor de crédito, mas fico na dúvida se não será criação de algum escritor, adaptada ao modo de ser carioca. Neste caso, que o autor me perdoe o avanço em sua obra.

                                        ANDRADE, Carlos Drummond de. O rato e o canário.
                                     In: Boca de luar. Rio de Janeiro. Record. 1984, p. 96-9.

Bocado: porção de alimento.
Pour Elise: conhecida composição musical de Beethoven.
Regalar: alegrar, causar prazer.
Ventríloquo: aquele que sabe falar sem abrir a boca, de modo que a voz parece sair de outra fonte que não ele.

1 – O narrador atribui a mesma característica ao homem faminto e ao restaurante. Qual?
       A modéstia.

2 – “... saboreando o prato simples que uma senhora desconhecida e falecida lhe despachava do céu.” Explique essa passagem do texto.
       O dono do restaurante considerou que ajudar um faminto seria uma homenagem ao aniversário de sua falecida mãe.

3 – O fato narrado no texto é real ou fictício? Por quê?
       Trata-se de um fato fictício, pois ratos e canários não apresentam as habilidades que lhes são atribuídas na narrativa.

4 – Releia as linhas 43 e 44 e depois o penúltimo parágrafo do texto. A fala final do faminto é esperada pelo leitor ou constitui um “final-surpresa”?
       Constitui um final-surpresa, pois o fato ainda mais inacreditável do que já era.

5 – Para se comunicar, as personagens desse texto utilizam exclusivamente a língua falada: elas dialogam. Transcreva fragmentos das falas do homem faminto que indiquem: julgamento, simples informação, ordem.
       Julgamento: “Sinto que é compreensivo”;
       Simples informação: “Desculpe... Se lhe disser que há cinco dias eu não como propriamente, só estarei falando verdade. Mas o senhor não vai acreditar”.
       Ordem: “Toque, Evaristo”.

6 – O texto prende a atenção do leitor e reserva a ele duas surpresas. Quais?
       Primeiro, a apresentação feita pelos “artistas”. Depois, o final inesperado.

2 comentários:

  1. minha professora pediu pra fazer um texto em cima desse e ela nao gostou por o meu titulo e A MACACA E A TARTARUGA

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