Crônica:
A ilusão do fim de semana – Fragmento
Affonso Romano de Sant'Anna
Há algo errado nisto.
Onde havia florestas construímos
cidades de concreto, asfalto e vidro. Aí vivemos. Ou melhor: trabalhamos. Mas
como o lugar onde trabalhamos não é onde queremos viver, então no fim de semana
rumamos para onde há floresta ou praia, onde, além do verde e do azul, se pode
respirar.
Chegamos. Acabamos de encostar o carro
na garagem da casa de campo, fazenda ou do hotel nas montanhas.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgh1wT-s0SsHVQw1QIGntN0ipkxO0siGTBAWjX4I5yW3SMVWJRFrIkDA8PmKoZtPIaTp0lyylIJ9GDe-dupdVRFXI2H3IZrNW3F5kx-i9CZkvbb7GT05pqfkma5xLkfG6SKqrqFKl-vjhZO9nZ7tgzuZVRYzeLq4vLU0npg4OPEB9hNB9o2JmaL47n7lEM/s1600/campo.jpg
Chegar aqui não foi fácil. Duas, cinco,
às vezes dez horas de engarrafamento. O verde e o azul, lá longe ainda,
difíceis de alcançar. E a gente ali na estrada entalado num terrível rito de
ultrapassagem.
Mas digamos que a viagem foi normal. O
simples fato de nos aproximarmos do verde já muda o clima psicológico dentro do
carro. Vai ficando para trás a fuligem da cidade. E ao subir a serra começa uma
descontração no diafragma. Aqueles que estavam tensos, indo para a natureza, já
tornam suas frases mais macias, já começam a ficar mais amorosos. Algumas
brigas de casal vão se diluindo na passagem da cidade para o campo.
Enfim, chegamos. São desembarcadas as
malas, as portas e janelas da casa e corpo se abrem e a clorofila começa a
entrar pelos poros. As flores continuaram a elaborar suas cores em nossa
ausência. Os pássaros continuaram a emplumar as estações. [...]
À noite pode-se acender a lareira e ali
se ficar prostrado com um copo de uísque ou vinho, uma xícara de chá ou café,
olhando, olhando o fogo como um primitivo na caverna de si mesmo.
Soa uma música ao piano, um concerto de
Boccherini como se houvesse músicas fluindo diretamente do cosmos. [...]
Todavia, essa incursão no paraíso vai
acabar. O fim de semana escoou-se. Já começamos a refazer as malas e a ficar
ansiosos e de mau humor. Vamos começar a descer a serra para retornar ao campo
de concentração urbana. Mal sinalizadas, as estradas vez por outra nos deixam
ver um cão morto no asfalto. [...]
Aproximamo-nos da cidade. A temperatura
começa a subir, um calor abafado vai grudando na pele. O mau cheiro irrita as
narinas, o ruído agride os tímpanos. O ritmo do pulso é tenso e há um cruzar de
buzinas, faróis, anúncios e sempre a possibilidade de uma emergente violência.
Chegamos ao apartamento ou casa.
Descarregamos tudo pelo elevador com ar de vitória e derrota. Na sala, jornais,
correspondência acumulada. O dia seguinte já nos espreita na treva. Aí
começaremos a fazer novos planos para fugir da cidade. Planejaremos outro
feriado e contaremos quanto tempo falta para a aposentadoria.
Há algo de errado nisto. E persistimos.
Sant”anna. Affonso Romano. Porta de colégio e
outras crônicas. São Paulo: Ática, 1997, p. 43-46. (Fragmento).
Fonte: Linguagem em
Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São
Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 56-57.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a principal
crítica social presente na crônica?
A crônica critica
a dicotomia entre a vida urbana e a vida rural, evidenciando a busca incessante
do ser humano por um refúgio na natureza como forma de escapar das pressões da
cidade. O autor questiona a ideia de que o fim de semana seja capaz de
proporcionar um descanso verdadeiro e duradouro.
02 – Como o autor descreve a
jornada para o campo?
A jornada para o
campo é descrita como um processo de transformação gradual. Á medida que se
afasta da cidade, o autor percebe uma mudança no clima psicológico das pessoas,
que se tornam mais relaxadas e menos tensas. No entanto, a beleza da natureza é
contraposta à dificuldade em chegar até ela, com engarrafamentos e estresse.
03 – Qual é o significado da
frase "O fim de semana escoou-se"?
Essa frase simboliza a efemeridade do descanso e da paz
proporcionados pela natureza. O fim de semana, assim como qualquer outro
período de férias, é visto como um momento fugaz que não é capaz de solucionar
os problemas da vida urbana.
04 – Como o autor retrata a
volta para a cidade?
A volta para a
cidade é descrita como um choque, um retorno à realidade. O autor destaca a
poluição, o ruído, a violência e o estresse como elementos característicos da
vida urbana. Essa volta para a rotina é acompanhada por sentimentos de
frustração e angústia.
05 – Qual é o papel da
natureza na crônica?
A natureza é
representada como um refúgio, um lugar de paz e tranquilidade. No entanto, o
autor questiona se a natureza é apenas uma ilusão, uma fuga temporária dos
problemas da vida moderna. A natureza também serve como um símbolo daquilo que
o homem perdeu ao construir as grandes cidades.
06 – Qual é a sensação geral
que o autor transmite ao leitor?
O autor transmite uma sensação de
frustração e impotência diante da realidade. Ele questiona o modelo de vida
atual e a busca incessante por um refúgio. A crônica evoca um sentimento de
melancolia e insatisfação.
07 – Qual é a principal
mensagem da crônica?
A principal
mensagem da crônica é a necessidade de refletir sobre o nosso modo de vida e
buscar um equilíbrio entre a vida urbana e a vida em contato com a natureza. O
autor sugere que a solução para os problemas da sociedade não está apenas em
fugir para o campo, mas em transformar a cidade em um lugar mais humano e
sustentável.