Entrevista: O CONTADOR DE HISTÓRIAS
Roberto Carlos Ramos
O
pedagogo Roberto Carlos Ramos emergiu do submundo da violência e das drogas
para uma carreira de sucesso. Ex-interno da Febem, ele ganha a vida contando a
própria história em palestras para executivos.
Mineiro de Belo Horizonte, Roberto
Carlos Ramos não aceitou o destino que parecia estar reservado para ele. Negro,
analfabeto até os 13 anos, drogado, envolvido com assaltos e protagonista de
132 fugas espetaculares da Febem, cansou de ouvir que seu caso era
irrecuperável. O curso de sua vida começou a mudar quando foi adotado por uma
francesa. Hoje, aos 35 anos, Roberto Carlos é uma prova de que é possível virar
o jogo. Ele formou-se em Pedagogia, fez mestrado na Universidade Estadual de
Campinas e pós-graduação em Literatura Infantil na França. Sua atividade
profissional é contar histórias para crianças, gravadas também em CDs, e dar
palestras a executivos das empresas Skol, Petrobras, Companhia Vale do Rio
Doce, entre outras. Ele concedeu esta entrevista em Ibirité, região
metropolitana de Belo Horizonte, onde divide um casarão inacabado com doze
filhos adotivos e a enfermeira Marly, com quem está para se casar.
CLAUDIA – Como você foi parar na Febem?
ROBERTO
CARLOS – Eu morava com minha família numa casa de dois cômodos na favela.
Tínhamos uma vida simples, porém com comida na mesa. Até que meu pai ficou
desempregado e começou a faltar tudo. Minha mãe ouviu falar que na Febem havia
ensino de qualidade, pomar, piscina e esportes. Eu era o caçula e, como minha
mãe trabalhava, não tinha com quem ficar. Aos 6 anos fui para lá.
CLAUDIA – Como foi sua adaptação?
ROBERTO CARLOS – Muito difícil, eu
chorava sem parar. Ficava na creche, sem contato com os meninos maiores e com
os infratores, mas era desprezado e maltratado. Fugi pela primeira vez aos 7
anos. Naquela época existia na TV o Programa da Tia Dulce. Ela era a Xuxa de
Belo Horizonte. Prometeram que, no Dia das Crianças, ela faria um show para a
gente na Febem. Passei noites em claro esperando. No dia aguardado, mandaram
uma tia Dulce falsa. Re- solvi não continuar num lugar onde não me queriam e
ainda por cima me enganavam.
[...]
"Sorte
não existe. A pessoa tem de estar preparada para perceber as oportunidades e
agarrá-Ias. Cada um faz a própria sorte. Eu fiz a minha"
CLAUDIA – Você queria ser adotado?
ROBERTO CARLOS – Apareciam alguns
casais procurando meninos para adotar. Nós ficávamos enfileirados no pátio,
ansiosos. Demorou, mas um casal me escolheu. A tia da Febem me disse que, se eu
fosse bem-educado, não comesse muito e não fizesse coisa feia, teria chance de
ser adotado. Fiquei três dias em jejum e sem fazer xixi e cocô. Me devolveram
achando que eu estava doente. Cheguei a morar com outras famílias, mas não deu
certo. Teve até um homem que tentou me estuprar. Depois disso, não quis mais
ser adotado.
CLAUDIA – Quando você teve o primeiro
contato com as drogas?
ROBERTO CARLOS – Aos 10 anos já usava
cola de sapateiro. Depois, experimentei maconha e gostei. Passei a roubar cada
vez mais para sustentar o vício.
CLAUDIA – Algumas vezes você quis
morrer?
ROBERTO CARLOS – Sempre desejei fazer
parte da turma do Cabelinho de Anjo, o cara mais temido da cidade. Fui
procurá-lo. Para entrar no grupo, eu teria que passar por uma espécie de
batismo de tortura. Eles me bateram até eu desmaiar. Quando acordei, ensanguentado,
fui tomado por uma depressão tão profunda que decidi me matar. Deitei no trilho
e fiquei esperando o trem. Mas ele passou ao lado.
CLAUDIA – Quando você voltou a ter
esperanças?
ROBERTO CARLOS – Tinha 12 anos quando
uma pedagoga francesa chamada Marguerit Duvas foi conhecer o trabalho da Febem.
Ela ouviu alguém dizendo que eu era irrecuperável e quis conversar comigo.
Enquanto falávamos, vi que ela usava uma correntinha no braço e pensei em roubá-Ia,
mas em vez de esconder o ouro como todo mundo fazia, ela acariciou meu rosto e
me convidou para passar uma temporada em sua casa. Achei que ela também ia
querer transa r comigo. Aceitei pensando em roubar a casa e depois me mandar.
Mas, conforme o tempo ia passando, ela se mostrava cada vez mais generosa.
Acabei tirando a ideia da cabeça.
CLAUDIA
– Como era a sua relação com Marguerit?
ROBERTO CARLOS – Ela era carinhosa, mas
rígida, impunha limites. Queria que eu fosse alguém na vida. Contratou dois
professores particulares e em seis meses eu aprendi a ler e a escrever em
francês e em português. Fiz o Primeiro Grau numa escola particular e o Segundo
em Marselha, na França. Sempre discutíamos os meus objetivos, a curto e a longo
prazo. Pela primeira vez, tinha uma perspectiva de futuro. Voltei para prestar
vestibular para Pedagogia.
CLAUDIA – Qual foi a maior lição que
aprendeu com Marguerit?
ROBERTO CARLOS – Estávamos de férias e
ela disse que eu tinha que experimentar as fantásticas uvas de uma região da
França. Antes, viajamos pela Europa, nos divertimos como nunca. Mas eu não
tirava as uvas da cabeça. Até que chegamos no tal vinhedo e, finalmente,
coloquei um bago na boca. Fiquei muito decepcionado. Marguerit perguntou:
"Você não gostou?" E eu: "Ah... gostei, só que são iguais às do
Brasil". Ela me disse que naquele momento eu tinha entendido a essência da
vida. Que a felicidade nem sempre está em alcançar um objetivo, e sim no
caminho da conquista.
[...] ·
"Não
sentia prazer algum em roubar as pessoas. Pelo contrário. Mas, como me negavam,
me ignoravam, me desprezavam, achava justo tirar à força"
CLAUDIA – Logo depois de se formar você
foi estagiar na Febem. Por quê?
ROBERTO CARLOS – Para provar que o menino
irrecuperável tinha vencido.
CLAUDIA – Foi ali que resolveu iniciar
seu trabalho com crianças?
ROBERTO CARLOS – Depois do expediente,
estava saindo da Febem quando um garoto de 9 anos, que roubava, cheirava cola e
cocaína, me pediu dinheiro. Não dei. Ele perguntou: “Já aconteceu de você falar
com alguém na rua e a pessoa fingir que você não existe?" Me lembrei do
quanto doía quando isso ocorria. Convidei o menino para passar uns dias lá em
casa. Ele ficou para sempre. Depois dele, vieram outros onze.
"O brasileiro adora vender uma
imagem de coitado. Por melhor que ele seja, se sente inferior, subestima sua
capacidade e suas qualidades. Isso é cultural"
CLAUDIA – Os seus filhos adotivos são
adolescentes. Como lida om eles?
ROBERTO CARLOS – Eles me chamam de
velho e me respeitam muito. Eu imponho limites, mas dou amor e carinho. Claro
que eles passam pelos problemas típicos da adolescência, mas a gente supera
conversando. Todos têm responsabilidades em casa, são obrigados a estudar e os
mais velhos a trabalhar. O salário de cada um é dividido: 30% para as despesas
pessoais, 30% para terminar a construção da nossa casa, 30% para alimentação e 10%
para um projeto de vida (viagens, cursos, auto-escola).
[...]
CLAUDIA – O que você diria para aqueles
que têm preconceito de adotar crianças mais velhas?
ROBERTO CARLOS – Existem casais que
passam meses, até anos, esperando por um bebê com a cara da família. E eles não
Se dão conta de que, às vezes, o filho tão esperado, que trará muita alegria,
está pronto há seis anos, aguardando para ser adotado.
CLAUDIA – A criminalidade está
aumentando na classe média. Por que isso está ocorrendo?
ROBERTO CARLOS – Os jovens têm estudo,
internet, carro, roupas caras, carinho dos pais, mas falta perspectiva de vida.
As famílias querem proporcionar tudo aos filhos e acabam tolhendo o direito de
lutar para conquistar algo. O resultado é a total desmotivação. O que sobra é o
desejo de se aventurar, de se drogar, de consumir coisas caras. Isso é um
atalho para a criminalidade.
"Ninguém deve tentar chegar
rapidamente ao seu objetivo. Quando se escolhe o caminho mais longo, sobra
tempo para refletir e até mudar de rota"
CLAUDIA – Quando surgiu sua habilidade
para contar histórias?
ROBERTO CARLOS - Cresci inventando
várias histórias. Era uma forma de fugir da realidade, de ser aceito na turma.
Percebi que podia ser um profissional quando conheci uma espanhola que contou
um caso sobre Napoleão e me mostrou um lindo pote que havia pertencido a ele. Ofereci
20 francos pela relíquia. Depois, vi que ela tinha dezenas de potes iguais.
Logo falei: "Você me enganou". Ela respondeu: "Não, você acabou
de comprar uma boa história". Estudei formas de fazer narrativas
interessantes e me apresentava a amigos. Veio o primeiro convite para trabalhar
numa festa. A fama se espalhou e eu não parei mais.
CLAUDIA – E as palestras, de onde veio
a ideia?
ROBERTO CARLOS – Estava contando
histórias para crianças na Fundação Acesita, que mantém escolas em Timóteo
(MG), quando fui convidado a falar aos funcionários da empresa. Eles achavam
que minha experiência de vida ajudaria a aumentar a motivação pessoal e a
produtividade. Funcionou. Hoje recebo vários convites para dar palestras em
empresas.
CLAUDIA – Você é feliz?
ROBERTO CARLOS – Fui batalhando,
correndo atrás de projetos durante anos e nunca havia parado para pensar nessa
resposta. Uma rede de televisão da França veio ao Brasil para documentar o
trabalho que faço. Quando vi o programa editado, não acreditei que o personagem
daquele conto de fadas era eu. Claro que sou feliz ... mas quero muito mais.
Monica
Gailewitch. Cláudia, nov. 2000.
Fonte: Livro-
PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 6ª Série –
Atual Editora -2002 – p. 165-8.
Entendendo a entrevista:
01 – O que significa a sigla
Febem?
Fundação Estadual
do Bem-Estar do Menor.
02 – Em linguagem
jornalística, entrevista é o texto
resultante de um encontro previamente marcado entre duas pessoas, em que uma
interroga a outra sobre sua profissão, suas ações, suas ideias. O entrevistado
é quase sempre uma figura de destaque num determinado campo da vida social e é
ele quem autoriza ou não a publicação de suas declarações. Na entrevista em
estudo:
a)
Quem é o entrevistador?
Monica Gailewltch, jornalista da revista Claudia.
b)
Em que se destaca o entrevistado Roberto
Carlos Ramos?
O entrevistado é uma pessoa que conseguiu se destacar profissionalmente,
depois de ter sido interno da Febem e de ter convivido com a violência e as
drogas.
03 – Essa entrevista foi
publicada numa revista cujo público é predominantemente feminino e adulto. O
título da entrevista, "O contador de histórias", refere-se a uma
habilidade do entrevistado. Levante hipóteses: Por que a jornalista teria
escolhido esse título?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Para atrair a atenção de seu público leitor – mulheres,
profissionais, donas de casa, mães – para o assunto da entrevista.
04 – Abaixo da fotografia do
entrevistado, há um texto que se destaca, escrito com um tipo de letra em corpo
maior. Que tipo de informação ele transmite?
Uma síntese a
respeito do entrevistado.
05 – Antes da entrevista
propriamente dita, há um texto que a introduz. Qual é a finalidade desse texto
introdutório?
Fazer uma
apresentação do entrevistado, dando, em linhas gerais, informações sobre sua
vida pessoal e profissional, e do assunto que será tratado.
06 – Essa entrevista está
sob a forma de perguntas e respostas, precedidas do nome do entrevistado e do
nome da revista que o entrevistador representa. Observe as perguntas feitas ao
entrevistado.
a)
As perguntas demonstram que elas foram
previamente preparadas? Justifique sua resposta.
Sim, pois elas não se repetem e fazem referências à vida pessoal e
profissional do entrevistado, o que mostra que a entrevistadora já tinha
informações sobre o entrevistado.
b)
Com vistas a chamar a atenção do público
leitor da revista – formado principalmente por mulheres adultas –, para que
tipos de assunto as perguntas se direcionam?
Para assuntos como a criminalidade, a Febem, a adoção de crianças
mais velhas, o trabalho voluntário com crianças, como lidar com adolescentes.
07 – Observe as respostas do
entrevistado.
a)
Elas revelam que ele está à vontade diante da
entrevistadora? Justifique sua resposta.
Sim, porque as respostas demonstram que o entrevistado tem
conhecimento do assunto abordado, dá exemplos e opiniões sobre eles.
b)
O entrevistado tem filhos adotivos
adolescentes. Em que se baseia o relacionamento entre o entrevistado e os
adolescentes?
Na colocação de limites, no carinho e no amor, no diálogo, na
cooperação mútua.
08 – Observe a linguagem
empregada pela entrevistadora e pelo entrevistado. Que variedade linguística
ele usam?
A variedade padrão.
09 – Quando conversamos, é
comum interrompermos o pensamento, deixando frases incompletas, empregarmos
gestos no lugar de uma frase, usarmos palavras e expressões como né, então, como eu disse, aí, etc. Nessa entrevista, não há
marcas de informalidade desse tipo. Levante hipóteses: Por que você acha que
elas não apareceram na entrevista escrita?
Resposta pessoal
do aluno.
10 – Reúna-se com seus
colegas de grupo e concluam: Quais são as características da entrevista?
Resposta pessoal do aluno.