terça-feira, 24 de setembro de 2019

CONTO: CONSPIRAÇÃO - MOACYR SCLIAR - COM QUESTÕES GABARITADAS

CONTO: CONSPIRAÇÃO
             
  Moacyr Scliar

     Sempre que faltava um professor, dona Marta o substituía. Lecionava canto; a disciplina era considerada de importância secundária e, além disso, suas aulas eram péssimas – mas, em compensação, ela estava sempre disponível. De manhã, de tarde, de noite. Morava no colégio, praticamente. Quando chegávamos pela manhã, já estava sentada na sala dos professores, sempre com aquele sorriso meio sofrido, meio idiota; e ficava na escola mesmo depois que saíam os últimos alunos do noturno. Esperava um irmão que vinha buscá-la; como ninguém nunca tinha visto esse irmão, circulava a história de que ela dormia no sótão do colégio. Que comia lá, era certo. Ao meio-dia ia para um banco, no pátio, tirava de sua sacola um sanduíche e ficava mastigando melancólica.
        Um dia não veio a professora de português. Trouxeram dona Marta. Entrou na sala de aula, no seu andar vacilante, cumprimentou-nos, pediu desculpas pela ausência da colega. E anunciou que não nos faria cantar: estava rouca (coisa difícil de comprovar; sua voz tinha normalmente um timbre enrouquecido. O que era motivo de deboche: Goela Enferrujada era o seu apelido. Que ela ignorava, ou fingia ignorar).
       - Vamos fazer uma coisa diferente – disse. Tentou fazer um ar misterioso, cúmplice: - Vamos fazer de conta que estamos na aula de português, certo? Quero que vocês escrevam uma composição. Sobre qualquer tema, à escolha de vocês. Depois escolherei cinco alunos, ao acaso, lerão suas composições e o melhor ganhará um prêmio.
       Fez uma pausa e acrescentou:
       - Aqui está.
       Tirou da bolsa um chocolate. Uma barra de chocolate ordinário, pequena. E aquela barra ela segurou no ar pelo menos um minuto, sorrindo, feliz.
       O nosso era um colégio de filhos de gente rica. Chocolate, bombons, balas, tínhamos todo dia, a qualquer hora. Chocolate? Ouvi risinhos de mofa. Mas nesse momento o diretor apareceu à porta e lançou um olhar severo. Pusemo-nos imediatamente a trabalhar.
       Eu tinha certeza de que não seria o escolhido para ler. Nunca era escolhido para nada, e nem queria. Isso, e mais o fato de que na época andava lendo muito livro de mistério, talvez explicasse o título\da minha composição, “Conspiração contra os cegos”. Nela eu descrevia um distante país governado por uma casta de cegos; ministros cegos, generais cegos, todos oprimindo cruelmente o povo. Que não podia se revoltar, e nem sequer conspirar: os ouvidos aguçadíssimos dos cegos captavam qualquer murmúrio de descontentamento. Mesmo assim líderes resolutos conseguiam organizar uma composição, baseada só na palavra escrita. Livros eram publicados contra os cegos, revistas, jornais. Toda articulação anticegos era feita por escrito. Finalmente a oligarquia era derrubada e um novo rei assumia. Seus primeiros atos: destruir as impressoras, fechar os jornais e declarar ilegal a alfabetização.
      Terminei a composição e fiquei quieto, aguardando. Os outros iam terminando também. Prontos?, perguntou ela. Todos responderam que sim. Menos eu. Fiquei quieto. E, contudo, foi para mim (muito azar!) que ela apontou o seu dedo vacilante.
       - Você... Como é o seu nome?
      - Oscar – respondi (mentira; meu nome é Francisco Pedro; alguns risinhos abafados se ouviram, mas eu fiquei firme).
       - Bonito nome – ela, sorridente. – Leia sua composição para nós, Oscar.
       Não havia como escapar. Dei uma olhada na folha de papel e, depois de uma pequena hesitação, anunciei:
      - Escrevi sobre um passeio no campo.
     Ela sorria, aprovadora. Contei então sobre um passeio no campo. Descrevi a paisagem: as árvores, o riacho, as vacas pastando sob um céu muito azul. Concluí dizendo que um passeio no campo nos ensinava a amar a natureza.
      Muito bonito, ela disse, quando terminei. E acrescentou, emocionada:
        - Eu gostaria de guardar a sua composição.
       Não vale a pena, eu disse. Mas eu quero, insistiu ela. Não vale a pena, repeti. Ela riu: ora, Oscar não seja modesto, me dê a sua composição.
       - A composição é minha – eu disse – e faço com ela o que quero. Esta aula era para ser de canto, não de português. A senhora não tem o direito de me exigir nada.
       - Vou pedir pela última vez – disse ela, e sua voz agora tremia – quero sua composição. Por favor.
       Peguei a folha de papel e rasguei-a em meio a um silêncio sepulcral.
      Não disse nada, mas todos podiam ver as lágrimas correndo-lhe pelo rosto. O que me surpreendeu: eu não sabia, naquela época, que os cegos podem chorar.
Moacyr Scliar. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Fonte: Livro- Viva Português – 9º ano – Língua Portuguesa – Ed. Ática – 2011 – p. 43/44/45.

INTERPRETAÇÃO ESCRITA

1)   Apresente a faixa etária do narrador-personagem, sua relação com os estudos, seu comportamento moral e outros dados que você conseguir identificar durante a leitura.
O narrador-personagem é um garoto rico, provavelmente adolescente; participa das brincadeiras de sua classe; é criativo, mas rebelde; seu comportamento é irreverente, imaturo e voltado para si mesmo.

2)    No início do texto, de que forma dona Marta é apresentada pelo narrador?
Para o narrador, dona Marta era de sorriso meio sofrido, meio idiota, que dava uma matéria de importância secundária. Suas aulas eram péssimas e ela passava o dia todo na escola. Era alvo de chacota dos alunos.

3)   No texto fica claro que o narrador-personagem adotou, para o conto, a visão que ele tinha de dona Marta na época em que se deram os fatos relatados. As características do narrador-personagem nesse tempo explicam a falta de sensibilidade na caracterização de dona Marta? Justifique sua resposta.
O narrador-personagem, adotando a visão do adolescente, destaca em dona Marta aquilo que para ele é estranho e incômodo, aquilo que contraria seus padrões e os de todos os seus colegas. Daí a maneira fria e completamente desprovida de sensibilidade para apresentá-la.

4)   Por trás desse narrador-personagem que apresenta as personagens e os fatos, há um autor que adota uma estratégia narrativa para surpreender o leitor.
Copie a alternativa que explica essa estratégia:
a)   Enfatizar a caracterização das personagens, deixando clara a distância entre elas.
b)   Enfatizar o conflito, destacando a tensão criada pela discussão entre Francisco Pedro e dona Marta a respeito da entrega da composição.
c)   Caracterizar dona Marta, apresentar os comentários sobre ela feitos pelos alunos, descrever sua aula e revelar apenas no final sua deficiência.
d)   Destacar a agressividade do narrador-personagem, revelando que ele fazia uma composição tratando da deficiência da professora e se descontrola quando ela lhe pede a composição.

5)   Ao reler o texto, é possível localizar diversos dados que antecipam a informação sobre a deficiência visual de dona Marta. Faça um levantamento de alguns dados indicadores da deficiência da professora de canto.
Ela ficava no colégio até tarde esperando um irmão que a buscasse; no dia em que a professora de português faltou, ela foi levada à sala de aula; seu andar é vacilante; o dedo de dona Marta aponta vacilante.

6)   Releia os seis últimos parágrafos do texto e responda.
a)   Por que, provavelmente, dona Marta quis guardar a composição?
Provavelmente por ter se emocionado com a descrição da paisagem.

b)   Por que Francisco Pedro insiste em não entregar sua composição?
Porque alguém poderia ler a composição e perceber a brincadeira de mau gosto que fizera com a professora.

c)   Copie o clímax do conto.
“- Vou pedir pela última vez – disse ela, e sua voz agora tremia. – Quero sua composição. Por favor.
Peguei a folha de papel e rasguei-a, em meio a um silêncio sepulcral”.

7)   Pode-se afirmar que o desfecho do conto mostra uma transformação no narrador-personagem. Que transformação é essa?
Dona Marta chora com a situação, com o embate, e o narrador-personagem pela primeira vez se dá conta de que ela tem sentimentos. A frieza e o desprezo dão lugar a compaixão.

8)   Marque com um (x) a alternativa correta.
A transformação do narrador-personagem sugere que até aquele momento ele agia de maneira:
·        insegura.
·        irreverente.
·        individualista.
·        imatura.

9)   Qual a relação entre o título e o enredo do conto?
No enredo há duas conspirações: a da classe contra dona Marta e a “Conspiração contra os cegos”, composição do narrador-personagem.






Um comentário:

  1. Mais uma pergunta
    A)Retire quatro verbos dos dois parágrafos abordados
    R= Escolhido, andava, descrevia, e terminei
    B)Qual noção de tempo é expressa por esses verbos
    R=?
    C)Justifique a escolha do tempo verbal desses dois parágrafos e as ideias neles apresentadas.
    R=
    Me ajudem por favor

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