CONTO: CONSPIRAÇÃO
Moacyr Scliar
Sempre que faltava um professor, dona Marta o substituía. Lecionava canto; a disciplina era considerada de importância secundária e, além disso, suas aulas eram péssimas – mas, em compensação, ela estava sempre disponível. De manhã, de tarde, de noite. Morava no colégio, praticamente. Quando chegávamos pela manhã, já estava sentada na sala dos professores, sempre com aquele sorriso meio sofrido, meio idiota; e ficava na escola mesmo depois que saíam os últimos alunos do noturno. Esperava um irmão que vinha buscá-la; como ninguém nunca tinha visto esse irmão, circulava a história de que ela dormia no sótão do colégio. Que comia lá, era certo. Ao meio-dia ia para um banco, no pátio, tirava de sua sacola um sanduíche e ficava mastigando melancólica.
Sempre que faltava um professor, dona Marta o substituía. Lecionava canto; a disciplina era considerada de importância secundária e, além disso, suas aulas eram péssimas – mas, em compensação, ela estava sempre disponível. De manhã, de tarde, de noite. Morava no colégio, praticamente. Quando chegávamos pela manhã, já estava sentada na sala dos professores, sempre com aquele sorriso meio sofrido, meio idiota; e ficava na escola mesmo depois que saíam os últimos alunos do noturno. Esperava um irmão que vinha buscá-la; como ninguém nunca tinha visto esse irmão, circulava a história de que ela dormia no sótão do colégio. Que comia lá, era certo. Ao meio-dia ia para um banco, no pátio, tirava de sua sacola um sanduíche e ficava mastigando melancólica.
Um dia não veio a professora de português.
Trouxeram dona Marta. Entrou na sala de aula, no seu andar vacilante,
cumprimentou-nos, pediu desculpas pela ausência da colega. E anunciou que não
nos faria cantar: estava rouca (coisa difícil de comprovar; sua voz tinha
normalmente um timbre enrouquecido. O que era motivo de deboche: Goela
Enferrujada era o seu apelido. Que ela ignorava, ou fingia ignorar).
- Vamos fazer uma coisa diferente – disse.
Tentou fazer um ar misterioso, cúmplice: - Vamos fazer de conta que estamos na
aula de português, certo? Quero que vocês escrevam uma composição. Sobre
qualquer tema, à escolha de vocês. Depois escolherei cinco alunos, ao acaso,
lerão suas composições e o melhor ganhará um prêmio.
Fez uma pausa e acrescentou:
- Aqui está.
Tirou da bolsa um chocolate. Uma barra de
chocolate ordinário, pequena. E aquela barra ela segurou no ar pelo menos um
minuto, sorrindo, feliz.
O
nosso era um colégio de filhos de gente rica. Chocolate, bombons, balas,
tínhamos todo dia, a qualquer hora. Chocolate? Ouvi risinhos de mofa. Mas nesse
momento o diretor apareceu à porta e lançou um olhar severo. Pusemo-nos
imediatamente a trabalhar.
Eu
tinha certeza de que não seria o escolhido para ler. Nunca era escolhido para
nada, e nem queria. Isso, e mais o fato de que na época andava lendo muito
livro de mistério, talvez explicasse o título\da minha composição, “Conspiração
contra os cegos”. Nela eu descrevia um distante país governado por uma casta de
cegos; ministros cegos, generais cegos, todos oprimindo cruelmente o povo. Que
não podia se revoltar, e nem sequer conspirar: os ouvidos aguçadíssimos dos
cegos captavam qualquer murmúrio de descontentamento. Mesmo assim líderes
resolutos conseguiam organizar uma composição, baseada só na palavra escrita.
Livros eram publicados contra os cegos, revistas, jornais. Toda articulação
anticegos era feita por escrito. Finalmente a oligarquia era derrubada e um
novo rei assumia. Seus primeiros atos: destruir as impressoras, fechar os
jornais e declarar ilegal a alfabetização.
Terminei a composição e fiquei quieto,
aguardando. Os outros iam terminando também. Prontos?, perguntou ela. Todos
responderam que sim. Menos eu. Fiquei quieto. E, contudo, foi para mim (muito
azar!) que ela apontou o seu dedo vacilante.
- Você... Como é o seu nome?
- Oscar – respondi (mentira; meu nome
é Francisco Pedro; alguns risinhos abafados se ouviram, mas eu fiquei firme).
- Bonito nome – ela, sorridente. –
Leia sua composição para nós, Oscar.
Não
havia como escapar. Dei uma olhada na folha de papel e, depois de uma pequena
hesitação, anunciei:
- Escrevi sobre um passeio no campo.
Ela sorria, aprovadora. Contei então
sobre um passeio no campo. Descrevi a paisagem: as árvores, o riacho, as vacas
pastando sob um céu muito azul. Concluí dizendo que um passeio no campo nos
ensinava a amar a natureza.
Muito
bonito, ela disse, quando terminei. E acrescentou, emocionada:
-
Eu gostaria de guardar a sua composição.
Não vale a pena, eu disse. Mas
eu quero, insistiu ela. Não vale a pena, repeti. Ela riu: ora, Oscar não seja
modesto, me dê a sua composição.
- A composição é minha – eu
disse – e faço com ela o que quero. Esta aula era para ser de canto, não de
português. A senhora não tem o direito de me exigir nada.
-
Vou pedir pela última vez – disse ela, e sua voz agora tremia – quero sua
composição. Por favor.
Peguei a folha de papel e
rasguei-a em meio a um silêncio sepulcral.
Não disse nada, mas todos podiam ver
as lágrimas correndo-lhe pelo rosto. O que me surpreendeu: eu não sabia,
naquela época, que os cegos podem chorar.
Moacyr Scliar. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
Fonte: Livro- Viva
Português – 9º ano – Língua Portuguesa – Ed. Ática – 2011 – p. 43/44/45.
INTERPRETAÇÃO ESCRITA
1)
Apresente a faixa etária do
narrador-personagem, sua relação com os estudos, seu comportamento moral e
outros dados que você conseguir identificar durante a leitura.
O narrador-personagem é um garoto rico, provavelmente adolescente;
participa das brincadeiras de sua classe; é criativo, mas rebelde; seu
comportamento é irreverente, imaturo e voltado para si mesmo.
2)
No
início do texto, de que forma dona Marta é apresentada pelo narrador?
Para o narrador, dona Marta era de sorriso meio sofrido, meio
idiota, que dava uma matéria de importância secundária. Suas aulas eram
péssimas e ela passava o dia todo na escola. Era alvo de chacota dos alunos.
3)
No texto fica claro que o narrador-personagem
adotou, para o conto, a visão que ele tinha de dona Marta na época em que se
deram os fatos relatados. As características do narrador-personagem nesse tempo
explicam a falta de sensibilidade na caracterização de dona Marta? Justifique
sua resposta.
O narrador-personagem, adotando a visão do adolescente, destaca em
dona Marta aquilo que para ele é estranho e incômodo, aquilo que contraria seus
padrões e os de todos os seus colegas. Daí a maneira fria e completamente
desprovida de sensibilidade para apresentá-la.
4)
Por trás desse narrador-personagem que
apresenta as personagens e os fatos, há um autor que adota uma estratégia
narrativa para surpreender o leitor.
Copie
a alternativa que explica essa estratégia:
a)
Enfatizar a caracterização das personagens,
deixando clara a distância entre elas.
b)
Enfatizar o conflito, destacando a tensão
criada pela discussão entre Francisco Pedro e dona Marta a respeito da entrega
da composição.
c)
Caracterizar dona Marta, apresentar
os comentários sobre ela feitos pelos alunos, descrever sua aula e revelar
apenas no final sua deficiência.
d)
Destacar a agressividade do
narrador-personagem, revelando que ele fazia uma composição tratando da
deficiência da professora e se descontrola quando ela lhe pede a composição.
5)
Ao reler o texto, é possível localizar
diversos dados que antecipam a informação sobre a deficiência visual de dona
Marta. Faça um levantamento de alguns dados indicadores da deficiência da
professora de canto.
Ela ficava no colégio até tarde esperando um irmão que a buscasse;
no dia em que a professora de português faltou, ela foi levada à sala de aula;
seu andar é vacilante; o dedo de dona Marta aponta vacilante.
6)
Releia os seis últimos parágrafos do texto e
responda.
a)
Por que, provavelmente, dona Marta quis
guardar a composição?
Provavelmente por ter se emocionado com a descrição da paisagem.
b)
Por que Francisco Pedro insiste em não
entregar sua composição?
Porque alguém poderia ler a composição e perceber a brincadeira de
mau gosto que fizera com a professora.
c)
Copie o clímax do conto.
“- Vou pedir pela última vez – disse ela, e sua voz agora tremia. –
Quero sua composição. Por favor.
Peguei a folha de papel e rasguei-a, em meio a um silêncio
sepulcral”.
7)
Pode-se afirmar que o desfecho do conto
mostra uma transformação no narrador-personagem. Que transformação é essa?
Dona Marta chora com a situação, com o embate, e o
narrador-personagem pela primeira vez se dá conta de que ela tem sentimentos. A
frieza e o desprezo dão lugar a compaixão.
8)
Marque com um (x) a alternativa correta.
A
transformação do narrador-personagem sugere que até aquele momento ele agia de
maneira:
·
insegura.
·
irreverente.
·
individualista.
·
imatura.
9)
Qual a relação entre o título e o enredo do
conto?
No enredo há duas conspirações: a da classe contra dona Marta e a
“Conspiração contra os cegos”, composição do narrador-personagem.
Mais uma pergunta
ResponderExcluirA)Retire quatro verbos dos dois parágrafos abordados
R= Escolhido, andava, descrevia, e terminei
B)Qual noção de tempo é expressa por esses verbos
R=?
C)Justifique a escolha do tempo verbal desses dois parágrafos e as ideias neles apresentadas.
R=
Me ajudem por favor