ONZE
CONTOS DE RÉIS
...Marcela amou-me durante
quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem
dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de
um capricho juvenil.
--- Desta vez, disse ele, vais para a
Europa; vais cursar uma universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para
homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de
espanto: -- Gatuno, sim senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto...
Sacou da algibeira os meus títulos de
dívida, já resgatados por ele, e sacudiu-nos na cara. – Vês, peralta? É assim
que um moço deve zelar o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganhamos o
dinheiro em casas de jogo ou a vadiar pelas ruas? Pelintra! Desta vez ou tomas
juízo, ou ficas sem coisa nenhuma.
Estava furioso, mas de um furor
temperado e curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da viagem, como de
outras vezes fizera; ruminava a ideia de levar Marcela comigo. Fui ter com ela;
expus-lhe a crise e fiz-lhe a proposta. Marcela ouviu-me com os olhos no ar,
sem responder logo; como insistisse, disse-me que ficava, que não podia ir para
a Europa. [...]
Marcela franziu a testa, cantarolou uma
seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de
aluá. Trouxe-lhe a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus onze
contos. Marcela ofereceu-me polidamente o refresco; minha resposta foi dar com
a mão no copo e a salva; entornou-se lhe o líquido no regaço, a preta deu um
grito, eu bradei-lhe que se fosse embora. Ficando a sós, derramei todo o
desespero de meu coração disse-lhe que ela era um monstro, que jamais me tivera
amor, que me deixara descer a tudo sem ter ao menos a desculpa da sinceridade;
chamei-lhe muitos nomes feios, fazendo muitos gestos descompostos. Marcela
deixara-se estar sentada, a estalar as unhas nos dentes, fria como um pedaço de
mármore. Tive ímpetos de a estrangular, de a humilhar ao menos, subjugando-a a
meus pés. Ia talvez fazê-lo; mas a ação trocou-se noutra; fui eu que me atirei
aos pés dela, contrito e súplice; beijei-lhes, recordei aqueles meses da nossa
felicidade solitária, repeti-lhe os nomes queridos de outro tempo, sentado no
chão com a cabeça entre os joelhos dela, apertando-lhe muito as mãos; ofegante,
desvairado, pedi-lhe com lágrimas que me não desamparasse... Marcela esteve
alguns instantes a olhar para mim, calados ambos, até que brandamente me
desviou e, com um ar enfastiado:
--- Não me aborreça, disse.
Levantou-se, sacudiu o vestido, ainda
molhado, e caminhou para a alcova. – Não! Bradei eu; não hás de entrar... não
quero... Ia a lançar lhe as mãos: era tarde; ela entrara e fechara-se.
Saí desatinado; gastei duas mortais
horas em vaguear pelos bairros mais excêntricos e desertos, onde fosse difícil
dar comigo. Ia mastigando o meu desespero, com uma espécie de gula mórbida;
evocava os dias, as horas, os instantes de delírio, e ora me comprazia em crer
que eles eram eternos, que tudo aquilo era um pesadelo, ora, enganando-me a mim
mesmo, tentava rejeitá-los de mim, como um fardo inútil. Então resolvia
embarcar imediatamente para cortar a minha vida em duas metades, e deleitava-me
com a ideia de que Marcela, sabendo da partida, ficaria ralada de saudades e
remorsos.
[...]
Enfim, tive uma ideia salvadora... [...] Era nada menos que fasciná-la,
fasciná-la muito, deslumbrá-la, arrastá-la; lembrou-me pedir-lhe por um meio
mais concreto de que a súplica. Não medi as consequências: recorri a um
derradeiro empréstimo; fui à rua dos Ourives, comprei a melhor joia da cidade,
três diamantes grandes, encastoados num pente de marfim; corri à casa de
Marcela.
Marcela estava reclinada numa rede, o
gesto mole e cansado, uma das pernas pendentes, a verse-lhe o pezinho calçado
de meia de seda, os cabelos soltos, derramados, o olhar quieto e sonolento.
--- Vem comigo, disse eu, arranjei
recursos... temos muito dinheiro, terás tudo o que quiseres... Olha, toma.
E mostrei-lhe o pente com os diamantes.
Marcela teve um leve sobressalto, ergueu metade do corpo, e, apoiada num
cotovelo, olhou para o pente durante alguns instantes curtos; depois retirou os
olhos; tinha-se dominado. Então, eu lancei lhes as mãos aos cabelos, coligi-os,
enlaceios à pressa, improvisei um toucado, sem nenhum alinho, e rematei-o com o
pente de diamantes; recuei, tornei a aproximar-me, corrigi lhes as madeixas,
abaixei-as de um lado, busquei alguma simetria naquela desordem, tudo com uma
minuciosidade e um carinho de mãe.
--- Pronto, disse eu.
--- Doido! foi a sua primeira resposta.
A segunda foi puxar-me para si, e
pagar-me o sacrifício com um beijo, o mais ardente de todos. Depois tirou o
pente, admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços para mim, e
abanando a cabeça, com um ar de repreensão:
--- Ora você! dizia.
--- Vens comigo?
Marcela refletiu um instante. Não
gostei da expressão com que passeava os olhos de mim para a parede, e da parede
para a joia; mas toda a má impressão se desvaneceu, quando ela me respondeu
resolutamente:
--- Vou. Quando embarcas?
--- Daqui a dois ou três dias.
--- Vou.
Agradeci-lhe de joelhos. Tinha achado a
minha Marcela dos primeiros dias, e disse-lhe; ela sorriu, e foi guardar a
joia, enquanto eu descia a escada.
Machado de Assis. Memórias
póstumas de Brás Cubas.
São Paulo: Moderna, 1984. p. 24-5.
1 – Observe a frase:
“...Marcela amou-me durante
quinze meses e onze contos de réis; nada menos”.
a)
Qual o real significado dessa frase? O que
lhe parece a maneira usada pelo narrador para indicar a duração de seu namoro?
O narrador “mede” a paixão de Marcela pelo tempo que durou a relação
e pelo dinheiro que lhe custou tal capricho.
b)
A expressão que normalmente se usa é “nada
mais, nada menos que”. Por que o narrador omitiu a primeira parte da expressão?
Porque ele parece reforçar a ideia de que Marcela não deixaria por
menos os carinhos que lhe deu em troca dos presentes.
c)
Você diria que o narrador está contando algo
que aconteceu já há algum tempo ou ele ainda está vivenciando a situação
narrada? Justifique sua resposta.
O que ele narra aconteceu há tempos. Segundo o próprio narrador, era
um “capricho juvenil”. Ao mesmo tempo que narra, a personagem avalia o que
aconteceu.
2 – Em “não é outra coisa um
filho que me faz isto...”, que fato
a palavra isto está representando?
O fato de ele ter-se empenhado em dívidas
e assinado alguns títulos.
3 – A repreensão que o
narrador sofre surte efeito? Justifique sua resposta.
Não. Logo em seguida, ele faz outro
empréstimo. Já que teria de viajar, pensava em levar Marcela consigo. Para
convencê-la, compra outra joia.
4 – Que expressões do texto
revelam que a peraltice do narrador apontada pelo pai não era a primeira?
“Desta vez”: significa que houvera outras
vezes. “Pensas que eu e meus avós ganhamos o dinheiro em casas de jogo ou a
vadiar pelas ruas?”: significa que o narrador fazia isso.
5 – As relações entre as
personagens aparecem ser muito diferentes do que realmente são. Como é, de
verdade, a relação entre:
a)
O narrador e seu pai?
O pai finge estar furioso com o filho, mas encobre seus deslizes; o
filho finge que lhe obedece, mas faz o que acha melhor.
b)
O narrador e sua namorada?
O narrador finge que tudo pode para conquistar Marcela, mas está
enterrado em dívidas; ela finge que não liga para os presentes, mas esse é seu
único interesse. Ele, por sua vez, finge acreditar em teu amor, embora saiba
que é falso. Como se percebe, as relações entre as pessoas são absolutamente
hipócritas.
6 – Que atitudes de Marcela
demonstram:
a)
Sua frieza?
Domina sua vontade de olhar a joia.
b)
Sua falsidade?
Dá um beijo ardente no narrador.
7 – As três personagens
apresentam profundas contradições. Quais?
Pai: quer dar boa
educação ao filho, mas não soube impor-lhe limites.
Filho: sabe que Marcela é interesseira,
mas não abre mão de sua “paixão”, mesmo não sendo correspondido.
Marcela: não ama o rapaz, mas alimenta
suas esperanças porque quer continuar tendo suas vantagens.
8 – Com a joia e a promessa
de viagem, o narrador diz ter reencontrado a Marcela dos primeiros dias. Como
estaria sendo, então, a Marcela dos últimos dias?
Provavelmente não era mais carinhosa,
estava mudada, enfastiada.
9 – Embora tenha sido
publicado em 1881, o livro do qual foi tirado o trecho que você leu se mantém
atual em muitos pontos. Você saberia dizer em quê?
Resposta pessoal do aluno. Considerar as
relações entre pai abastado e filho mimado.
10 – Neste trecho, explique
por que o autor escolheu o verbo em destaque: “Ficando a sós, derramei todo o desespero de meu
coração”.
É uma metáfora.
Observar que, antes de dizer isso, o narrador contara sua explosão, ao dar com
a mão no copo de refresco que a mucama lhe trazia. Daí a escolha irônica do derramei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário